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poema de Joseph Brodski
from PVEC25Abril20
by casadaachada
Não saias do quarto um poema de Joseph Brodski
Não saias do quarto, não cometas o erro de fugir. Se fumas Shipkas, para que precisas de sol? Lá fora, nada faz sentido, especialmente o grito de alegria. Vai até à casa de banho e volta depressa, meu velho.
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Ah, não saias do quarto, não chames um táxi, meu amigo. Porque o espaço é um corredor que termina num contador. E se a tua querida, de ar sorridente, entrar, expulsa-a sem a deixares despir-se.
Não saias do quarto. Finge que tens gripe. Quatro paredes e uma cadeira são o melhor que há no mundo. Para quê deixar este lugar apenas para regressar mais tarde à noite, tal como eras, só que mais abatido?
Ah, não saias do quarto. Dança bossa nova com os sapatos calçados sem meias, com um casaco sobre o teu corpo nu. O átrio tresanda a cera de esqui e a couves. Escreveste muito. Mais será excesso de bagagem.
Não saias do quarto. Deixa que o quarto te diga que ainda tens bom aspecto. Incognito ergo sum, disse o Conteúdo, insolente, à Forma. Não saias do quarto! Lá fora não encontrarás a França.
Não sejas parvo! Sê o que outros não foram. Fica. Não saias do quarto! Deixa a mobília reinar livremente, tenta misturar-te com o papel de parede. Tranca a porta, barrica-te com um guarda-fatos contra cronos, cosmos, eros, raça e vírus.
Brodski escreveu este poema em 1970 (ele foi obrigado a exilar-se em 1972), ironizando sobre a situação dos intelectuais de Leninegrado que só isolados em casa podiam falar abertamente contra o que estava mal na sociedade. Apesar do seu aparente carácter profético nos pandémicos dias de hoje, este é de facto um poema contra o isolamento e a falta de liberdade de expressão, um poema para o pós-covid, que exigirá de todos nós uma grande participação cívica e política.
Revolução, respiração um conto de Jacinto Lucas Pires
De repente, está a correr como um perdido, a fugir deles, a pensar à velocidade do fogo: viro aqui?, onde é que me posso esconder?, eles serão quantos? Dobra a esquina das janelas entaipadas, vira pelo velho arco de pedra e enfia-se na reentrância que alguém escavou ali há uns anos. Algum ilegal, com certeza, ou um par de amantes desesperados. Não pode fazer barulho. Não pode respirar até que eles passem. Costumam ser de quatro os grupos da Polícia Médica, para poderem usar a tática do quadrado. Contra um quadrado, não há palavras que te salvem. Dentro de um quadrado, passas a ser um número. Roberto teve uma sorte danada em topá-los ao longe. Com as ruas vazias, os polícias deslizam silenciosos e matreiros, sem sirenes nem luzes, e apanham os suspeitos por trás. Quando estes dão por ela, estão na sala branca do Hospital Político, presos a uma cadeira, flashados por uma luz má, a tentar não responder às perguntas de um Inspetor-Protetor sobre as razões de andarem na rua, assim soltos e ilegais. Roberto nunca imaginou andar nestas correrias. Mas, passados três anos de isolamento, não aguentou mais e entrou para a Resistência. Faz o que sabe: vai para esquinas com janelas e põe em cena o seu repertório. Neste momento, tem três peças decoradas. À Espera de Godot (de Samuel Beckett, um autor muito famoso no longínquo século XX), Romeu e Julieta (de William Shakespeare, um autor muito famoso dos cada vez menos longínquos séculos XVI-XVII) e o Auto da Barca do Inferno (de Gil Vicente, um autor nada famoso dos séculos XIV-XV). Não sabe o que as pessoas dos prédios apanham dos espetáculos dele, mas sabe que não pode parar. O Estado tornou-se pandémico e não deixa ninguém juntar-se há tempo demais. Roberto não acredita que a peste ainda esteja “ativa”, como a propaganda não se cansa de repetir. “Cuidado, cidadã e cidadão: peste ativa, recolhimento obrigatório, ajuntamentos são crime, voltem para casa já!”, repete a voz maternal nos altifalantes das praças, estações, mercados. O mundo já estava fechado e a pandemia foi o pretexto de que o Estado precisava, na sua ânsia de controlo. Primeiro, Roberto teve medo. Depois, não teve outra saída. A coragem não será, por vezes, uma necessidade, uma fome? Ser ator na Resistência é ajudar a manter um vínculo entre as pessoas, entre as pessoas e as palavras, entre as pessoas e as ideias-emoções, entre as pessoas e o calor de uma voz não gravada, entre as pessoas e a permanente invenção que define o humano, entre as pessoas e o perigo que é estar verdadeiramente vivo. Enfiado na reentrância de pedra, qual Lázaro, Roberto pensa no espetáculo que fez hoje de manhã, numa esquina do Intendente. Um À Espera de Godot, em
que o Godot era o vírus. Para que os andares de cima possam apanhar alguma coisa da sua interpretação, o ator exagera os gestos, abre muitos os braços, abre muito a boca, interpreta as rigorosíssimas ações em traço grosso. De vez em quando, ouve uns aplausos abafados atrás das cortinas ou um “Bravo!” atirado sabe-se lá de onde. E, há uns meses, uma velha encostou a cara ao vidro de uma janela do primeiro andar para lhe dizer, “Precisamos de vós.” Nalgumas noites, Roberto acorda a pensar naquilo. Seria “vós” ou “voz”? Parece não fazer diferença, mas para um ator cada palavra é única e decisiva. Hoje, enquanto brincava a passar do Vladimir para o Estragon, viu uma cara a espreitá-lo do segundo andar de um velho prédio amarelo. Uns olhos pretos, castanhos, normalíssimos, tão bonitos. Uma rapariga de máscara na boca e no nariz, a olhá-lo muito quieta durante a peça toda. Roberto não lhe percebeu a cara, viu só os olhos; ou, menos ainda, percebeu-lhe apenas o tipo de olhar, de uma atenção feliz e inteligente. Mas ficou apanhado. Da próxima vez que sair, volta àquela esquina, está decidido.
Passados três dias, lá está ele, para uma apresentação especial. Vai fazer Shakespeare mas com uma novidade. No clímax da história, interrompe o texto e canta sem instrumentos uma tradução livre de Ain´t No Cure For Love, de Leonard Cohen (um autor do século XXI, menos e mais que famoso). Depois volta ao texto e diz as falas das diferentes personagens, tentando viver mas não comentar, tornar presente mas não normal, aquele amor de teatro. Quando acaba, espera algum sinal dos olhos do segundo andar. Mas, nada, não vem nada. As cortinas de várias janelas fecham-se e Roberto vai-se embora, desiludido. Até que ouve um barulho. Uma coisa mínima; um talvez-som quase metálico, como o ranger de uma porta imaginária. Ele pára, vira-se para trás, vê: a rapariga abrindo a janela, aproximando-se do varandim e retirando a máscara que lhe tapava o nariz e a boca. Milagre! Roberto é um ator pasmado na esquina. No ar livre de Lisboa, a cara nua. A cara da rapariga — nua. De uma nudez impensável, intraduzível, sem fim. Se a rapariga rasgasse a camisa oferecendo o peito à cidade, se soltasse os cabelos e gritasse segredos
inconfessáveis e levantasse as pernas e as abrisse contra o céu, não seria mais nua. Milagre, meu amor! De imediato, Roberto trepa pelo tubo da fachada como um ginasta, como um Romeu, e os dois — atenção, hesitação, inquietação, excitação, resolução — beijam-se.
Nessa noite, Roberto sonha que a vida tem sentido. Imagina países distantes que nunca visitou nem visitará. Vê palavras em fogo viajando pelas ruas da cidade. No dia seguinte, há de voltar lá, à esquina do prédio amarelo. Nem que encham as ruas com tanques da Polícia Médica, há de voltar.
Mas, quando volta, o lugar está tomado por um silêncio esquisito. Um silêncio que cheira a desinfetante. Um silêncio que é um nó, uma mancha mais densa, no silêncio geral de Lisboa. Na porta está afixado um papel oficial a dizer que o prédio foi evacuado, desmantelado, desinfetado, e é agora “espaço morto”, vedado a todos e cada um por ordem superior. “Cidadã e cidadão: peste ativa!” O ator corre dali com uma energia que não sabia que tinha. Corre, sofrendo como um rei shakespeariano e o seu coração não aguenta. O ator sente que não tem coração que chegue para aquilo. E corre ainda mais, como se quisesse fazê-lo rebentar. O seu pobre coração falhado, oh. Até que chega ao lugar que chama casa e cai de joelhos (o gesto de quem, desavisado, dá de caras consigo próprio).
Na colina das hortas junto a via-rápida, no seu casinhoto de madeira, Roberto pensa na nudez da rapariga. Nem lhe perguntei o nome. Matei-a com aquele beijo, se calhar, e nem lhe perguntei o nome. Deitado no seu colchão de todos os dias, o homem pensa na rapariga, presa a uma cama nalguma sala de hospital, a sofrer, a delirar a partir de bocados de palavras, imagens rasgadas. Afinal a pandemia ainda funciona, será? Ele não sabia, não sabia, não sabia. Caem-lhe lágrimas pela cara: lágrimas grossas, salgadas, puras, lágrimas a sério, como não lhe acontecia desde criança. Roberto não sabe o que fazer. Olha para as mãos, toca nos lábios secos. Não sabe o que fazer. Tenta acalmar telepaticamente a rapariga, dizendo-lhe o que lhe vem à cabeça com o máximo de franqueza. Falas que disse mil vezes surgem-lhe agora novas e limpas, tomadas de um espanto que as intensifica e revela. Nunca Gil Vicente lhe pareceu tão vivo. Chh, não tenhas medo, eu salvo-te das barcas más. Chh, chh. O ator da Resistência adormece assim, embalando a rapariga sem nome, lá longe. Sonha que o seu corpo se confunde com o dela, que doença e amor se confundem numa esperança revolucionária, sonha que Romeu e Julieta vivem encaixados na reentrância do arco, respirando boca a boca, enquanto o mal do mundo mirra e morre. Jacinto Lucas Pires