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Glamour da quebrada

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A bola é delas

A bola é delas

por: Lucas Batista

Foto: Daniel Lacerda

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Jovens e adultos da periferia elevam o patamar de qualidade do Distrito Federal com produções independentes, perfeição nos cortes, artistas internacionais e cozinheiro de ponta

“Não tem progresso sem acesso/ Pense no gueto e é isso que eu te peço/ A quebrada produz, e é de qualidade/ Em agradecimento faz a arte da realidade”. Seguindo os ensinamentos dos versos da cantora Marina Peralta, empreendedores, cozinheiros e artistas das periferias do Distrito Federal e Entorno conquistam cada vez mais reconhecimento na capital e até no Brasil, provando que a quebrada tem, sim, produção de qualidade.

A falta de referências conhecidas na mídia faz com que grandes produções intelectuais, e com técnicas de alto padrão não sejam associadas à periferia. Não se espera que nas quebradas haja chefes de cozinha, atores e cineastas nas principais plataformas de streaming, empresários que trazem refinamentos em seus produtos, ou até vencedores nacionais.

Quando se vê alguém da periferia conquistando, é possível sempre escutar uma história de luta ou de reinvenção. São histórias assim as de jovens como Tânia Sarah, 24, Mateus Kili, 27, Naysa Camelo, 20, e William Costa, 26, além dos já mais velhos Adirley Queirós, 50, e Karl

Marx, 49. Elas e eles provam o que pode acontecer quando um periférico sonha e age: pode conquistar, pode ser referência.

Luan Oliveira

Referência afro

Tânia Sarah e Mateus Kili, mais conhecido como Barbeiro de Favela, são cabeleireiros conhecidos em Ceilândia, Distrito Federal. Amigos de longa data e especializados em cabelos afros, já tiveram empreendimento juntos, mas, no fim de 2019, decidiram expandir as marcas e A cabeleireira Tânia Sarah cresceu no ramo após trabalhar separadamente. fazer um curso de empreendedorismo social

Tânia é mais chegada nos cachos, trabalha com coloração, tratamento natu- Já o Barbeiro de Favela teve um ral e corte. A profissão como cabeleireira grande aliado para o empreendimento: foi se tornando realidade de acordo com ensaios fotográficos. Mateus conta que as vivências da empreendedora. “Em 2012 tudo surgiu a partir de uma parceria passei pela transição capilar, quando parei despretensiosa com o amigo e fotógrafo de alisar meu cabelo e comecei a deixar Gabriel Cunha. “Decidi fazer os ensaios natural, durante essa fase comecei a ter porque meu trabalho já era massa, mas mais autoestima. Aprendi sobre empo- não tinha aquele impacto para quem via deramento e queria de alguma forma nas redes sociais. Eu e Gabriel fizemos passar isso para outras mulheres negras. o primeiro, com mulheres com cabelos A ideia é levar para periferia autoestima raspados, deu certo e continuamos”. De com preços acessíveis, além de debates e acordo com o barbeiro, a parceria tem rodas de conversas”, diz. valido a pena: “É uma parceria perfeita, porque eu não mostro só meu trabalho, Gabriel Cunha mostro a beleza, força, a foto, tudo que engloba”. Mateus avalia que chegou ao patamar de referência tanto pela qualidade de trabalho, quanto pela carência de barbeiros afros no Distrito Federal. “A galera de Brasília é carente. Então acaba que sou só eu para atender a toda uma galera de pretos que gosta de fazer uma parada massa no cabelo”, reflete.

O Barbeiro de Favela fez sucesso com o ensaio mostrando cortes em mulheres carecas

Diferencial na moda

Uma brincadeira de infância virou uma forma de renda para a empreendedora Naysa Camelo. A costureira costumava criar as roupas das bonecas, a partir das

Tamires Vitória aprendizado e resiliência. Sempre curioso, Marx aproveitou o primeiro emprego no restaurante francês Maison de France, para aprender a base que utiliza até hoje. “Fui contratado para limpar o chão, mas eu andava com meu caderninho e ia anotando, o ajudante de cozinha me passava alguns ingredientes que o chef colocava e eu aprendia. Quando o chef A moradora do Jardim Ingá Naysa Camelo decidiu ficava de folga, os cozinheiros me chamaproduzir calças para ter um diferencial na marca vam para participar, e fui vendo que tinha Trappo Company jeito. Até que o dono me viu, levei uma instruções da mãe, também costureira. bronca, mas disse que aquilo não ia me Naysa cresceu e evoluiu, passou a traba- impedir de aprender”, lembra. lhar com a máquina de costura, e o que A atitude fez com que Karl ganhasse era divertimento se tornou uma marca. uma vaga na cozinha, mas com o mesmo

Em menos de um ano, ela supe- salário. A dedicação o levou a seguir rou as expectativas que tinha ao lançar a carreira mesmo após o fechamento do Trappo Company. A costureira faz entre- restaurante. “O dono decidiu seguir gas no centro de Brasília, mas mora no apenas com a sede no Rio de Janeiro e Jardim Ingá, Entorno do DF, e também fechou a de Brasília. Mas ele gostou tanto usou um ensaio fotográfico para impul- do meu aprendizado que me indicou para sionar os negócios. “Quando se faz fotos um teste no Hotel Nacional”, conta. profissionais, você consegue chamar mais No hotel, Marx cresceu, se especiaatenção do público. Se eu tirasse as fotos lizou e foi de auxiliar a subchefe, até que com meu celular, com certeza teria vendas assumiu o cargo de chefe executivo por 10 menores”. anos. No local, fez cardápios para a posse

Além das fotos, a empreendedora do ex-presidente Lula, artistas do Festival contou com outro artifício: o diferencial de Brasília do Cinema Brasileiro, e atletas da marca. “Eu percebi que muita gente que passavam pela capital. estava lançando marcas de camiseta, se Karl atribui parte do sucesso a um eu também fizesse isso, seria mais do fator: ser ceilandense. “Eu sou de Ceilânmesmo. Por isso pensei no diferencial e dia, não abaixo minha cabeça para nada, decidi trabalhar apenas com calças”. Hoje e essa minha atitude chamou atenção de a costureira tem no catálogo calças xadrez, muitas pessoas que possibilitaram meu refletivas – que refletem quando bate a crescimento”, explica. luz – e coloridas em tactel. Hoje, o chefe de cozinha retribui o carinho pela cidade com comida boa. Na Do chão ao fogão Praça da Bíblia, o point da alimentação é O nome Karl Marx chama atenção por certo: a Tenda do Chef Karl Marx, onde toda bagagem histórica do filósofo, soci- se pode encontrar comida de grã-fino, ólogo e revolucionário socialista alemão. mas na quebrada. “O pessoal de Ceilândia Mas em Ceilândia, o Karl Marx é outro, merece comida boa, mas com preço que um chef de cozinha, com história de luta, eles podem pagar”.

“Eu sou de Ceilândia, não abaixo minha cabeça para nada, e essa minha atitude chamou atenção de muitas pessoas que possibilitaram meu crescimento”

Karl Marx, chef de cozinha

Arquivo pessoal

Karl Marx iniciou a carreira na cozinha como auxiliar de serviços gerais, e conseguiu chegar ao cargo de chefe executivo do Hotel Nacional

Quebrada no streaming

O cineasta Adirley Queirós e o ator William Costa têm carreiras bem diferentes. O jovem William tem 26 anos, nunca fez faculdade e conheceu a arte na infância, e desde então não perdeu contato.

“Minha mãe gostava muito de desenhar. Um dia mostrou as obras dela para mim e meus irmãos, e nós tentamos imitá-las. Também me desenvolvi nas

brincadeiras, a ausência de brinquedos caros na infância fez com que eu começasse a usar a imaginação para fazer de Felipe Duque lápis de cor e potes de creme personagens em minhas brincadeiras. Muitas vezes pegava fios de cobre e fazia meus bonecos para brincar. Essa parte da minha vida é muito importante porque vejo que a arte sempre supria uma falta de algo. O que pra muitos era dado, eu tinha que fazer”, Morador de Samambaia, o ator William Costa tem lembra William. participações em séries na Globoplay e HBO

Aos 50 anos, Adirley já passou por diversas profissões que não tinham popular e pela crítica. Desde então decidi ligação com a arte, quase foi jogador seguir carreira”, conta. de futebol profissional, e se encontrou Mesmo com trajetórias diferentes, no curso de cinema na Uninversidade as histórias dos dois têm semelhanças. de Brasília, onde se formou. “Entrei para “Vejo que a arte Ambos vêm de periferias, William de o cinema bem tarde, sempre supria uma Samambaia, Adirley aos 35 anos, e antes da Ceilândia, e atinnão tinha nenhuma falta de algo. giram um ponto alto relação com a arte. Fiz o curso mais O que pra muitos era no mercado audiovisual: entrar para um para conhecer, mas dado, eu tinha que catálogo de streaming. na universidade fiz o filme ‘O rap, canto da fazer o meu” O diretor de cinema está pela segunda vez Ceilândia’, que foi meu William Costa, ator disponível na Netflix trabalho de formação com o filme “Branco e ganhei o Festival de Brasília do Cinema sai, preto fica”, e o ator está nas plataformas Brasileiro como melhor curta em júri Globoplay, interpretando o personagem Arquivo pessoalCleiton na série Segunda Chamada, e HBO, com o personagem Piolho em Pico da Neblina. Sempre que atinge uma conquista, William faz questão de lembrar sua origem para mostrar que a periferia também pode vencer. “É importante levar o nome do lugar onde você nasceu e cresceu para o Brasil inteiro. Quando um sobe e fala o lugar de onde veio é para que olhem para lá e vejam que neste local O cineasta Adirley Queirós venceu o Festival de não existe só um. Pelo contrário, lá tem

Brasília do Cinema Brasileiro, uma das maiores um que teve sorte e é a sorte que, infelizpremiações do cinema nacional mente, o sistema não oferece para todos”.

RESSIGNIFICAÇÃO PERIFÉRICA

Com a falta de acesso a cursos, muitas das referências das regiões administrativas do Distrito Federal são autodidatas, aprenderam com pais ou fizeram oficinas gratuitas. O programa Jovem de Expressão (JEX), por exemplo, realiza uma série de atividades relacionadas à produção cultural e empreendedorismo social em Ceilândia, o que pode dar um norte na carreira de muitos talentos.

Desde 2007, o JEX atua como espaço de acolhimento e capacitação na Praça do Trabalhador, no centro da cidade. Criado pelo Instituto Caixa Seguradora, o projeto é fruto de uma pesquisa que demonstrou como a violência afeta a juventude periférica.

Para mudar esse panorama, o programa trabalha estimulando o potencial criativo da juventude, oferecendo cursos, oficinas e equipamentos que ajudam a evidenciar a inteligência dos jovens da região. O JEX conta com apoio da Rede Urbana de Ações Socioculturais (Ruas) que realiza uma série de atividades como eventos culturais na mesma praça do Jovem de Expressão.

Assim, o projeto oferece curso pré-vestibular, Fala Jovem, uma adaptação da terapia comunitária com objetivo de ouvir os integrantes do programa, o Sabadão Cultural, que compartilha cultura, arte e lazer, incentivando o protagonismo juvenil, e palestras e cursos que ensinam sobre produção cultural e empreendedorismo.

O Jovem de Expressão também oferece atendimento psicológico e terapia holística gratuitamente no espaço, com o projeto Periferia Viva. Todas as atividades e divulgações de inscrições são compartilhadas no perfil @jovemdeexpressao.

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