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Além da telona

Por: Gabriel Pinheiro

Foto: Gabriel Pinheiro

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Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, mas e o coronavírus? Covid-19 afeta a cadeia cinematográfica, que busca novos caminhos

Ao passo em que, no dia a dia, os cidadãos poderiam estar se sentindo em um filme, por conta da pandemia de coronavírus, os que trabalham com cinema no país foram atirados em uma dura realidade, a paralisação total das atividades profissionais. Trabalhadores que estavam em pré-produção ou filmagem foram enviados para casas, e sem possibilidade de trabalhar em home office, pela natureza da atividade. O Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual (Sicav) destaca que os ocupados nessa atividade somam mais de 300 mil no Brasil.

Do outro lado da cadeia do cinema, as salas de exibição foram fechadas. Sem poder funcionar, não se pode contar com o dinheiro dos ingressos, fator essencial para manter funcionando bem uma rede de profissionais. O setor audiovisual já vinha sofrendo uma recessão muito forte desde 2018, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) teve as atividades reduzidas e muitos projetos ficaram parados em diversas etapas. Por outro lado, uma crise política, ataques por parte do governo de Jair Bolsonaro ao setor foram feitos. O presidente apresentou um projeto que previa corte de quase 43% no FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), a maior fonte de fomento do cinema nacional.

A Ancine determinou que os efeitos da crise serão levados em conta em processos de fiscalização, regulação e de prestação de contas, mas, para tanto, será necessário um pedido formal com justificativa. Isto se aplicará, por exemplo, para pedidos de dispensa de cumprimento de obrigações, como a suspensão de prazos para conclusão de projetos para captação de recursos.

Outra medida anunciada propõe diálogo com o Ministério da Economia, através de uma Secretaria Executiva, para que sejam analisados os impactos da crise da pandemia do novo coronavírus sobre o audiovisual. Desta forma,

as medidas econômicas apropriadas poderão ser articuladas. As 88 salas de cinema do Distrito Federal foram fechadas por decreto do governador do DF, Ibaneis Rocha.

Em uma carta aberta às produtoras e profissionais do audiovisual brasileiro, Sonia Santana, presidente do Sindcine, sindicato que reúne trabalhadores da área, advertiu que todas as produtoras deveriam implementar e intensificar medidas para propiciar um ambiente seguro de trabalho aos

“Todas as produtoras deveriam implementar e intensificar medidas objetivando propiciar um ambiente seguro de trabalho aos profissionais” Sonia Santana, presidente do Sindcine profissionais, ao mesmo tempo em que colaboram para que o vírus não fosse disseminado.

“Preferencialmente, as filmagens devem ser realizadas em local aberto e quando não for possível devem ser instalados equipamentos permitindo a circulação do ar; todos os equipamentos profissionais devem ser previamente higienizados e também higienizados após o seu uso; a higienização do set de filmagem é fundamental e deve ser constantemente realizada”, detalha Sonia.

“Vale entender que o que está em risco com este baque provocado pela pandemia não é só o fazer audiovisual, mas toda de toda a sua cadeia produtiva” Guilherme Lobão, jornalista e professor

Gabriel Pinheiro

Linha do tempo do Cinema Brasileiro

Bruno Torres (à direita) estava em pré produção de uma série em Alto Paraíso chamada “A Sustentável Leveza do Ser”, para o Canal Futura

1936: Governo Getúlio Vargas cria o Instituto Nacional do Cinema Educativo (Ince) para promover e orientar a utilização do cinema como auxiliar do ensino

1896: Primeira exibição de cinema no Rio de Janeiro, por iniciativa do exibidor itinerante belga Henri Paillie 1947: O escritor Jorge Amado, como deputado federal, propõe a criação do Concine, para cuidar da política de governo do cinema. Em 1966 o Concine é incorporado ao INC, antigo Ince

Kal Visuals/UnsplashCrise na pele Bruno Torres é ator, produtor e cineasta. Brasiliense. Seu desempenho no papel de Fê Lemos no longa-metragem “Somos Tão Jovens”, uma biografia sobre a juventude de Renato Russo, lhe rendeu uma indicação na categoria de melhor ator coadjuvante ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, o mais importante do país. Ele concorreu com Jesuíta Barbosa, Wagner Moura, Antônio Calloni e

Sem salário, trabalhadores do setor ficam sem Matheus Nachtergaele ao troféu, vencido opções por Wagner Moura. Torres estava em pré-produção de “É curioso, não existe uma série em Alto Paraíso, chamada “A Sustentável Leveza do Ser”, para o Canal uma pessoa que não Futura, porém, com a pandemia, tudo esteja consumindo foi paralisado. “Além dela, eu estou com meu primeiro longa-metragem como cultura neste momento, diretor, A Espera de Liz, pronto para neste sentido, a ser lançado comercialmente, estávamos escolhendo datas, e agora só vamos paralisação tem seu definir quando os trabalhos forem retomados”, conta. Ele também atuaria lado benéfico e cumpre em um longa em junho. “Tudo ficou o seu papel: pendente, prejuízos são inevitáveis, porém, eu tenho uma visão otimista nos torna conhecidos e disso tudo”. valorizados” Para o ator e cineasta, a humanidade vem sendo avisada há tempos de

Bruno Torres, ator, produtor e cineasta que nossa relação com o planeta gera

sobrecarga. “Acho válido tudo o que está acontecendo, embora seja muito triste ver diversas vidas em jogo. As produções no Brasil todo foram paralisadas, e tem que ser mesmo. É momento da gente rever também a maneira que produzimos o audiovisual no Brasil e no mundo”, afirma. Ele classifica como nocivo o impacto ambiental de muitas produções.

Bruno Torres acrescenta que a paralisação é um grande desafio pessoal para os profissionais e para o setor como um todo, mas espera lições positivas. “É curioso, não existe uma pessoa que não esteja consumindo cultura neste momento, neste sentido, a paralisação tem seu lado benéfico e cumpre o seu papel: nos torna conhecidos e valorizados. Importantíssimo esse dado neste momento, pois a importância da cultura e do setor vem sendo questionado há um tempo, e estávamos vindo com um histórico de censura de forma quase nazista”, analisa.

Para ele, é importante ressaltar que o setor audiovisual “não foi paralisado na pandemia, foi paralisado antes, pelo governo Bolsonaro”. Torres afirma que bilhões de reais estão retidos no Fundo Setorial do Audiovisual desde 2019. A

1969: Criada a produtora estatal Embra lme. O Estado passa a nanciar a produção, enquanto o Concine se preocupa com a legislação do setor

1992: Apenas três lmes brasileiros chegaram às telas. Começa a ser produzida a Lei do Audiovisual, que entraria em vigor no governo de Fernando Henrique Cardoso.

1990: Na presidência de Fernando Collor, são extintos Embra lme, Concine, Fundação do Cinema Brasileiro, Ministério da Cultura e as leis de incentivo à produção

2001: Substituindo a Embra lme, é criada a Ancine, agência do governo federal para executar a política nacional de fomento ao cinema

Arquivo pessoal que financia atividades culturais) ano passado, e por mais que esse ano está programado ter um, não sei como ele ficará após essa crise do vírus”. Por lei, o dinheiro destinado ao Fundo de Apoio

“Tudo isso gera uma incerteza e uma ansiedade, ainda mais no contexto onde eu acabei de me formar”, à Cultura não pode ser usado para outra afirma Marisa Peixoto finalidade. assessoria de imprensa da Ancine, no está parada”. O diagnóstico do jornalista “Tudo isso gera uma incerdia 22 de abril, afirmou que a diretoria é enfático, o audiovisual já sofreu um teza e uma ansiedade, ainda mais no colegiada da agência aprovou medi- duro golpe, do cineasta independente contexto onde eu acabei de me formar das para a reorganização do FSA e o aos festivais, passando pelas grandes e fico com a sensação de ‘será que restabelecimento de suas linhas de produções. conseguirei exercer minha profissão investimento. “Estamos diante de uma nova em algum momento?’. Por outro lado,

O jornalista e professor de cursos virada no sistema produtivo, seme- Marisa admite que o audiovisual está de Comunicação Social Guilherme lhante ao da recessão de 1929. Veremos circulando em diversas esferas. “Aulas, Lobão avalia que há muito em perigo falências de pessoas, de estúdios e de consultas, trabalho e entretenimento. neste momento: “Vale entender que salas de cinema”. Ele observa que, A procura para empresas gravarem e o que está em risco com este baque neste momento, o exibidor que era editarem aulas para EaD está crescendo provocado pela pande- considerado extinto é muito. Com as pessoas consumindo mia não é só o fazer “Aulas, consultas, o único que subsiste: o conteúdo com muito mais força, existe audiovisual, mas toda Cine Drive-in, em Brasí- uma demanda para novos conteúdos, e a sua cadeia produ- trabalho e lia. “Eis um modelo de existe também uma maior validação de tiva”. Para ele, vale entender que cultura entretenimento. exibição que pode se tornar o novo normal que o streaming é, sim, uma plataforma viável de distribuição, coisa que nem tem uma participação A procura para da experiência de ir ao todos os cineastas ou órgãos públicos enorme na economia mundial, para além empresas cinema”, aposta Lobão, que prevê desconfiança entendem”. do que um olhar reducionista faz ver. “O audiovisual é afetado da mesma forma que todas as demais gravarem e editarem aulas para EaD está e insegurança dentro de uma sala de cinema por causa do coronavírus. Como prevê Lobão, a crise afeta a todos, Arquivo pessoal correntes produti- crescendo muito” independentemente vas. E, como todos Marisa Peixoto, recém-graduada do tempo de mercado. os demais serviços, o em cinema Marisa Peixoto, 22, audiovisual precisará recém-graduada em se reinventar.” cinema e assistente de direção, comenta

Lobão aponta para o fortaleci- que os problemas não são apenas pela mento das plataformas de streaming Covid-19, mas começaram há dois neste período. “O Disney + sem anos, com ataques e falta de apoio do querer chegou no momento de grande governo. “Infelizmente, ainda dependemanda, mas é preciso saber que demos de recursos governamentais mesmo estes dependem muito de toda para realizarmos o nosso trabalho. Em Max já comentou a cerimônia do Oscar em 2019, a cadeia profissional, que no momento Brasília mesmo não tivemos FAC (edital ao vivo pela TNT Brasil

Chris Greene/FreeImages

Vírus também evidenciou a importância do setor

Mesmo diante de todo o caos e incerteza, Maria Peixoto conta que não perde as esperanças de que esse momento irá mostrar, principalmente para o governo e as empresas privadas, que investir em audiovisual e cultura não é desperdício. “Iremos, sim, passar por uma crise, como qualquer outro setor, mas acho que isso está mostrando a importância que o audiovisual tem na vida de todos, e que temos que lutar para isso continuar crescendo”, finaliza.

Nova realidade

Max Valarezo é criador do canal EntrePlanos, que já tem mais de 280 mil inscritos no Youtube. Por lá, ele faz análises aprofundadas semanais sobre filmes e o mundo do cinema. O brasiliense, que criou o projeto como trabalho de conclusão do curso de jornalismo na Universidade de Brasília , afirma que hoje o canal é seu trabalho integral. Ele apresenta uma perspectiva um pouco diferente para a pandemia: “Neste período de coronavírus, para mim, na minha rotina de trabalho de produzir conteúdo, não mudou absolutamente em nada.”

Desde o início do projeto, Max já trabalha de casa e o tempo inteiro sozinho. “Eu tenho dois editores de vídeo, mas já faz mais de dois anos que a gente trabalha só remotamente”, explica. O trabalho dele, que se encontra na parte da cadeia audiovisual encarregada de pensar e refletir o meio, pôde facilmente se adaptar ao período, porém, em termos pessoais, ele diz sentir a diferença de forma mais acentuada. “Tá sendo chato não poder sair para ver os amigos, passar mais tempo com outros familiares que não estão aqui em casa, poder sair para andar de bicicleta, que era o meu exercício diário.” CINEFILIA DE QUARENTENA

Muitas pessoas em suas redes sociais relataram durante o período da pandemia que tiveram tempo de atualizar a lista de filmes assistidos. O cinema em casa ganhou força com o isolamento social. Max Valarezo, criador do canal EntrePlanos, que em 2019 comentou a cerimônia do Oscar ao vivo na TNT Brasil, fez uma seleção para o leitor da Redemoinho ver durante a pandemia. Confira!

Enigma de Outro Mundo (The Thing) - 1982: “Você tem um grupo de pessoas que fica isolado no meio da Antártida. Ver esse filme nesse período acaba dialogando um pouco com o que a gente tá vivendo, porque é um filme que você tem um uma ameaça invisível e você fica meio desconfiado, não sabe quem tem ou não a ameaça.

Esqueceram de Mim (Home Alone) - 1990: “Um garotinho isolado na casa dele e se divertindo às custas de dois ladrões que querem invadir a casa. Aí o isolamento passa ser uma coisa de ‘tô aqui na minha casa, preciso proteger meu território, eu vou usar isso aqui como a minha base para me sentir bem e estruturado’”.

Náufrago (Cast Away) - 2001: “É um filme que você olha e percebe que a nossa situação com o coronavírus poderia ser pior. Você tem um cara que tá isolado da modernidade, sem poder ter acesso a eletricidade, internet e tudo o mais. Podemos pensar, poxa pelo menos estamos vivendo um momento em que a gente tem muitas opções e possibilidades”.

O Iluminado (The Shining) - 1980: “Esse é pra quem quer realmente chafurdar na lama! O Iluminado é sobre como alguém pode simplesmente perder a cabeça no meio do isolamento social. Para esse tipo de filme tem que gostar da tensão”.

Na Natureza Selvagem (Into the Wild) - 2007: “Ele mostra para gente que estar sozinho não necessariamente precisa ser algo triste e horrendo, pode sim ser muito bom e, muitas vezes, necessário. Talvez esse filme possa trazer uma perspectiva diferente sobre como é não ter ninguém à sua volta”.

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