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Esperança no quadradinho
from Revista Redemoinho ano 11 nr 17
by IESB
por: Guilheme Simmer
Arte: Flávia Campêlo
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Ao completar 60 anos, Brasília tem grande população em situação de rua, mas a solidariedade traz alento ao centro da cidade
Cidade planejada e repleta de identidade, com traços arquitetônicos assinados por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, Brasília completou 60 anos em 2020. Mesmo com o pouco tempo de existência, a capital do Brasil carrega adjetivos e simbolismos que exaltam a sua modernidade.
No entanto, os traços únicos da cidade em formato de avião - considerada em 1987 como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco - não se refletem em sua região central. E a cidade caracterizada pelo moderno, se equipare a outras metrópoles quando se trata de problemas com pessoas em situação de rua, drogas e prostituição.
De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social do DF (Sedes), cerca de 3 mil pessoas vivem em situação de rua em todo o Distrito Federal. Os dados são de 2019. Porém, a concentração maior ocorre na área central do Plano Piloto, que une Setores Comercial e Bancário Sul e Norte e a rodoviária.
“A gente fala muito de Brasília que é a cidade da arquitetura e da modernidade, mas infelizmente faz parte de uma sociedade que ainda tem muito preconceito com quem está na rua. Falta um olhar do governo para essa população. Espero que a pandemia sirva de lição para ajudar esse povo, que eles usufruam dos direitos que merecem”, afirma Fredy Ayvar, peruano de 34 anos, ex-morador de rua.
No meio das asas do avião, a rodoviária é o ponto de entrada de muitas pessoas na capital e também de ligação para os outros setores da área central. O local, ponto de movimentação e de comércio, tem uma de suas maiores problemáticas ligadas à grande quantidade de pessoas que vivem desabrigadas. A circulação diária de pessoas na rodoviária é na casa das 700 mil, de acordo com levantamento da Agência Brasília.
Foi lá que Fredy se abrigou entre o fim de 2019 e o início deste ano. Peruano - como é conhecido - chegou ao país em julho do ano passado com o sonho de
acompanhar a final da Copa América de futebol entre Brasil e Peru, mas teve a mochila com pertences e dinheiro roubada em Rio Branco (AC).
“Me restou só um pouco de dinheiro na carteira e acabei ficando dois dias na rua até que uma pessoa deixou eu ficar na casa dela. De lá decidi continuar a viagem atrás do meu sonho e fui pegando carona até chegar em Brasília”, lembra. Aqui, as coisas não saíram como planejado e ele acabou morando por quase dois meses na rodoviária, depois de ficar 15 dias na estação de metrô do ParkShopping.
Arte: Flávia Campêlo
Banho e cultura Fontes: Sedestmidh, 2019 e projeto No Setor Para ajudar pessoas como Freddy e outros tantas que precisam de mais atenção na Taguatinga, outro ponto característico da que procuram estes locais para buscar rodoviária, a empresária Adriana Calil população em situação de rua. O ônibus alternativas de subsistência. A questão Amorim comprou há cerca de dois anos conta com quatro chuveiros e um espaço não é nova e nem exclusiva de Brasília. um ônibus modificado para oferecer para corte de cabelo. A Inspirados pelas espaço para banho a quem está em situ- iniciativa também faz “Tenho certeza grandes transformações ação de rua. Nasceu assim o Banho do Bem. “O que me motivou (criar o Banho doações de marmitas, roupas e de produtos de que estamos urbanas realizadas nos centros de Nova Iorque do Bem) é a gratidão por minha própria higiene pessoal, além da aqui não só de e Londres, Caio Dutra, vida. É uma forma de agradecimento por não me faltar nada”, explica. lavagem das peças usadas das cerca de 50 pessoas passagem e por Felipe Veloso e Ian Vianna decidiram em meados de
“Tenho certeza, que estamos aqui que são atendidas todos isso precisamos 2015 traçar um plano para não só de passagem e por isso precisamos os domingos. O Banho do reestruturar o SCS por ajudar os menos favorecidos. É a nossa Bem já contabilizou mais ajudar os menos meio da cultura. A ideia maior tarefa aqui na Terra”, afirma Calil. Focado inicialmente na região de 5.700 atendimentos. Perto da rodoviáfavorecidos. É passa por tentar diminuir ao máximo os efeitos da central de Brasília, o projeto agora ria, milhares de pessoas a nossa maior gentrificação (veja box atende também na Praça do Relógio, em Reprodução/Instagram passam todos os dias em uma região que concentra escritórios, órgãos e sedes de empresas. No Setor Comercial Sul (SCS) estima-se que 200 mil pessoas tarefa aqui na Terra” Adriana Calil, fundadora do Banho do Bem Saiba mais). Surgiu daí o Instituto Cultural e Social No Setor. A ideia é promover reestruturação urbana por meio da cultura e transfortransitam diariamente, de mação social para quem acordo com o projeto No Setor. está em situação de rua, além de usar os Aliada a outras problemáticas como eventos culturais promovidos, como o pontos de tráfico e uso de drogas, o centro Setor Carnavalesco Sul, para gerar renda Ação do Banho do Bem na Praça do Relógio da cidade é morada de muitas pessoas, para essa população.
Imagem de arquivopessoa ali tem seu motivo. Não adianta, não tem como você pegar uma solução e tentar aplicar para todas”, explica Caio. Hoje, o Instituto Social No Setor trabalha com quatro projetos de inclusão social: Festuc (futebol), Setor de Capacitação Social (geração de renda), Tour SCS (capacitação de pessoas em situação de rua para guiar passeios pelo SCS) e Escuta e Apoio (apoio psicológico). O diretor social do No Setor, Rogério Barba, já esteve em situação de rua e hoje tenta mudar a vida de quem está nesta condição. Abandonado pela mãe nas ruas da Vila Mariana, em São Paulo Festuc, pelada com população em situação de rua foi pontapé inicial para o No Setor (SP), quando ainda era criança, Barba passou mais de 20 anos perambulando
“A gente solicita para as empresas de O No Setor deu o pontapé inicial entre a fome, as drogas e a solidão. limpeza e montagem de estruturas/som, justamente no esporte mais popular do “Minha primeira cama foi a rua. que no mínimo 30% dos funcionários que país: o futebol. Como tentativa de inclusão Alguém passou por lá e me levou para vão trabalhar sejam pessoas em situação para as pessoas em situação de rua, foram um orfanato onde morei até meus 18 anos de rua e tentamos colocar os comerciantes iniciadas “peladas” semanais, que permi- e nunca conheci meu pai ou minha mãe”, locais para trabalhar também nos nossos tiam também conhecer essas pessoas e conta Barba, que após deixar o orfanato eventos, crescendo e ganhando junto com identificar suas necessidades. se envolveu com o crack. a gente”, detalha Caio. A iniciativa já resul- “É muito louco, porque as pessoas Ele relata algumas das experiências tou em trabalho para cinco pessoas que tendem a generalizar, tendem a falar: que teve na rua: “Assim, vivi muito tempo antes estavam em situação de rua. ‘fulano tá ali por causa de droga’. Mas cada da minha vida na rua e é um mundo muito terrível, tive que comer muita Arquivo pessoalcomida do lixo. Passei frio e fome, levei facada, paulada e até tiro. Só em 2014 que consegui vencer as drogas e o álcool. Foi nessa época que eu decidi lutar por políticas públicas voltadas para a população de rua”. Hoje, fora das ruas e livre das drogas, Barba tem feito parcerias pelo No Setor, como Bike Geração de Renda, que fornece qualificação, celulares e bicicletas para os assistidos trabalharem com serviços de entregas. “Hoje 24 pessoas fazem parte do projeto, onde a gente entrega bikes e celulares para que elas trabalhando consigam O peruano Fredy Ayvar veio parar no Brasil por conta da Copa América e acabou em pelo menos o básico, que é pagar aluguel situação de rua e ter alimentação “, detalha.
Arquivo pessoal
Através do projeto de Rogério Barba (primeiro plano), Fredy conseguiu sair da rua
Uma destas pessoas é justamente Fredy, o Peruano. Por meio do projeto, ele conseguiu deixar as ruas e mora há seis meses em um quarto na Asa Norte. “Depois de quase dois meses morando em uma casa de acolhimento comecei a trabalhar como entregador, só que a pé. Foi quando conheci o Barba e ele me conseguiu uma bicicleta e um celular que era o que mais eu precisava. E hoje estou aqui”, lembra o peruano.
Quem também conseguiu sair da rua foi Hebert Renault, 58, que diz ter perdido tudo para a bebida. Após pedir para ser internado em uma clínica de reabilitação em 2018, em Ceilândia, e passar por idas e vindas morando de favor, Hebert foi parar na rua no fim de 2019.
Nesse período, Hebert conheceu Barba e entrou no Bike Geração de Renda. Agora, trabalha fazendo entregas por meio de aplicativos e mora em um apartamento na região de Vicente Pires. “Já não tô mais na rua, nem de favor. Enfim, tenho minha bike que é do projeto, tenho minha bag, meu telefone e assim consigo correr atrás de um dinheiro”, comemora.
Hebert elogia quem atua em projetos voluntários de resgate social e os compara a iniciativas de governo. “A
“É muito louco, porque as pessoas tendem a generalizar, tendem a falar: ‘fulano tá ali por causa de droga’. Mas cada pessoa ali tem seu motivo. Não adianta, não tem como você pegar uma solução e tentar aplicar para todas” Caio Dutra, um dos idealizadores do No Setor
gente lá (espaço do Estado) é tratado só como mais um número, não como pessoa. É um trabalho desempenhado de forma automatizada, sabe? Não é como tapar um buraco na rua. Eles estão lidando com seres humanos e essas pessoas já são sofridas”, desabafa.
Arquivo pessoal
Hebert Renault se viu na rua após perder tudo para o mundo do alcoolismo
Igor KishiPandemia Os problemas sociais de Brasília, em 2020 se somou a pandemia do coronavírus, que exigiu isolamento social para tentar conter o avanço da Covid-19. Neste contexto, as iniciativas da sociedade ganham ainda mais importância para a população em situação de rua, que nem sempre tem acesso a materiais de proteção, como O Tour SCS é um dos projetos do No Setor máscara e álcool em gel.
Rogério Barba, ex-morador de rua e diretor social do No Setor
No período da pandemia, o Banho do Bem passou a fornecer cestas básicas e marmitas para as 87 famílias cadastradas, apesar da redução de 100 para 14 no número de voluntários. Já o No Setor criou uma rede de arrecadação e distribuição de alimentos em vários pontos do DF. Além disso, o projeto, em parceria com o Conselho das Empresárias Mulheres do Distrito Federal, reformou o banheiro público do SCS para que a população de rua da região possa utilizar.
Barba explica ainda que a ideia é pensar também no futuro dessas pessoas. “Nós temos uma conta para, mais na frente, tentarmos cuidar da saúde da população de rua. Porque além do problema do coronavírus, que é uma realidade, a gente também tem uma outra preocupação, porque a população de rua tem muitas doenças que nunca foram tratadas, como tuberculose e DSTs”, encerra.
Divulgação
O Setor Carnavalesco Sul reuniu mais de 350 mil pessoas somando todos os eventos de carnaval organizados no local
Agência Brasília
Ponto de entrada para muitas pessoas na capital, a Rodoviária do Plano Piloto concentra número grande de pessoas em situação de rua
Agência Brasília SAIBA MAIS
Gentrificação: Processo de recuperação do valor imobiliário e de revitalização da região central de uma cidade após período de degradação; enobrecimento de locais anteriormente populares, de acordo o dicionário Aulete.
Lado do governo. O principal apoio à população em situação de rua do DF são os Centro Pop (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua) localizados na Asa Sul e em Taguatinga, pontos com maior concentração de pessoas nessa situação.
Lá são ofertados atendimentos individuais e coletivos, oficinas, atividades de convívio e socialização, além de ações que incentivem o protagonismo e a participação social das pessoas em situação de rua.
O Centro Pop é um espaço de referência que funciona como ponto de apoio para a guarda de pertences, higiene pessoal, alimentação (café da manhã, almoço e lanche) e provisão de documentação, além de informar e orientar sobre os direitos e o acesso a benefícios socioassistenciais.
Centro Pop Brasília, na 905 sul As pessoas atendidas nos centros são adultos, idosos e famílias que utilizam as ruas como espaço de moradia e sobrevivência. O Centro Pop funciona em duas localidades no DF: na Asa Sul (Centro Pop Brasília - 903 sul) e em Taguatinga (na QNF).