4 minute read

Quando Lucho me levou ao

Next Article
Agora não consigo

Agora não consigo

Quando Lucho me levou ao cinema

Manuel Alberto Valente

Advertisement

A minha amizade com Luis Sepúlveda, para lá do mundo da edição, propiciou-me experiências inesquecíveis, momentos únicos de cumplicidade e partilha, e também o encontro com pessoas que se tornaram centrais na minha vida. Na impossibilidade de falar aqui de tudo isso (que foi tanto e tão bom), gostaria de recordar que foi pela sua mão que tive direito a conhecer “por dentro” o para mim fabuloso mundo do cinema. Por duas vezes. Em 1999, Miguel Littín (o conhecido cineasta chileno sobre quem García Márquez escreveu em 1986 o livro La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile) realizava o filme Tierra del Fuego, a partir do romance homónimo de Francisco Coloane. O guião era assinado pelo próprio, por Sepúlveda e por essa grande figura da cultura italiana que foi Tonino Guerra. As filmagens principais tinham já decorrido na Patagónia, mas a história exigia que um conjunto de cenas fosse filmado na Galiza. Lucho, Daniel Mordzinski e eu encontrámo-nos em Santiago de Compostela e seguimos no meu carro até Lugo. As filmagens decorreriam não muito longe, em duas pequenas aldeias, A Fonsagrada e Cereixido. Graças a Lucho, claro, Littín recebeume com extrema afabilidade e fez de mim um falso assistente, permitindo-me estar ao seu lado durante as rodagens, inclusive numa cena em que, pela intimidade exigida entre um casal, todas as pessoas foram mandadas afastar-se. Fiz também de figurante num enterro, percebendo como uma cena quase irrelevante pode demorar uma tarde a filmar, com o director de fotografia (Giuseppe Lanci, uma “lenda” que tinha trabalhado, entre outros, com Marco Bellocchio) medindo a luz e obrigando a suspender e a retomar a cena vezes sem fim. Mas o momento “glorioso” veio depois. Filmava-se à noite uma festa de passagem de ano – precisamente do ano que dava início ao século XX. Várias pessoas da aldeia iriam participar como figurantes e a dada altura, para minha surpresa, Littín disse à responsável do guarda-roupa que me vestisse de padre – e lá desencantaram uma batina que, com a ajuda de uns alfinetes e de uns pontos de costura, se conseguiu acomodar ao meu corpo franzino. Depois, nesse cenário repleto de luz e pompa, ergui várias vezes a minha taça de champanhe, gritando como todos os outros “Dios bendiga a Julius Popper, pacificador de Patagonia!”. No centro da acção, maquilhada como uma mulher já velha, estava...Ornella Muti. Já não era, claro, a Ornella Muti que Francesco Rosi dirigira dez anos antes, mas mantinha a sua pose de estrela. Mal falei com ela, mas recordo-a acompanhada do seu cabeleireiro italiano, a quem chamava “amore!, amore!”, e deslocando-se num Mercedes 500 para percorrer uns meros cem metros desde o Hostal Cantabrico, onde estava instalada a zona de vestuário e maquilhagem, para que os fotógrafos não a pudessem apanhar com um rosto de velha. Senti-a como uma glória em decadência que numa aldeia perdida da Galiza conseguia ser de novo o centro do mundo.

Manuel Alberto Valente durante as filmagens de Nowhere | Santiago de Compostela. 2001 Manuel Alberto Valente durante as filmagens de Nowhere | Fonsagrada. 2001

Com Ángela Molina e Manuel Alberto Valente nas filmagens de Nowhere | Santiago de Compostela. 2001

Luis Sepúlveda deve ter ficado com essa minha imagem de padre na cabeça e decidiu pregar-me uma partida. Em 1998, realizou ele próprio o filme Nowhere, que tinha como principal protagonista nada mais nada menos que Harvey Keitel. Mais uma vez as filmagens decorreram na Patagónia, mas um par de cenas veio depois a ser filmado em Barcelona. No jardim de um velho convento, um par de resistentes a Pinochet pedia a intervenção de um padre estrangeiro radicado no Chile para tentar a libertação de um companheiro preso. Esses resistentes chamavam-se Angela Molina e Manuel Bandera. O padre estrangeiro e altamente reacionário...era eu. Luís Sepúlveda pregara-me esta partida, mas fizera-o como mandam as regras. As minhas medidas tinham sido enviadas para um alfaiate de Roma e tinha à minha espera um hábito que me assentava como uma luva. Instalaram-me num hotel, onde um carro da produção me ia buscar para as filmagens. Tive, evidentemente, de decorar o meu papel, num espanhol com sotaque que a condição estrangeira do padre perdoava. Quando cheguei ao local da maquilhagem, Angela Molina estava na cadeira ao lado (a Angela Molina de Carne trémula, de Pedro Almodóvar, lembram-se?). Apresentou-se como se eu não a conhecesse e, com uma humildade que não esqueço, propôs-se “repassar” comigo os diálogos que dali a pouco iríamos gravar. Gravámos a cena em meia dúzia de takes, creio, e no fim tive direito à cerimónia usual de quando um actor termina a sua participação num filme. Ao meu lado, estavam Daniel Mordzinski, Anne-Marie Metailié (a editora francesa de Lucho, que tinha ido de Paris), o saudoso Antonio López Lamadrid, da Editora Tusquets, e muitos outros novos amigos – esse milagre que Lucho sempre fazia acontecer. Nunca mais encontrei Angela Molina, mas recordo-a com saudade e respeito – pelo exemplo da enorme actriz que se põe ao nível de um jovem aprendiz de feiticeiro. Na Barcelona que sempre amei, ela era precisamente o contrário da curvilínea italiana que gritava amore! amore! a um cabeleireiro gay numa aldeia perdida da Galiza. Eram milagres destes que a amizade e a generosidade de Lucho propiciavam. Como esquecê-lo?

This article is from: