9 minute read

Com Sepúlveda na nascente do

Com Sepúlveda na nascente do Ave

Pena Real

Advertisement

O Armindo tem, de há muito, o hábito de, nos primeiros dias de férias (uma semana, semana e meia…) se ausentar, sozinho, para um sítio ermo: nem jornais, nem televisão, nem rádio – nenhum contacto com o mundo. É uma espécie de necessidade profilática de desintoxicação da overdose de informação com que diariamente coabita. Quando, no início de agosto de 98, se refugiou, como sempre, na aldeia de Agra, nas fraldas da Cabreira, levava consigo sete “sepúlvedas” – O Velho que Lia Romances de Amor, Mundo do fim do mundo, Nome de Toureiro, Patagónia Express, História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar, Encontro de amor num país em guerra e Diário de um Killer sentimental (por ordem de publicação) – que tinha adquirido mas que até essa data se mantinham em lista de espera. Eram a parte principal da sua bagagem. A mulher e a filha pequenita, que lá o levaram, bem queriam encher-lhe a casa, uma das muitas que a aldeia recuperara para acolher visitantes, mas ele teimou em ficar apenas com a roupa necessária para uns dias (não sabia quantos) de calor intenso em meio serrano. Da alimentação cuidaria a D. Conceição, a tecedeira da aldeia e dona de um pequeno café, que se comprometera a levar-lhe a casa, às horas normais, a refeição combinada. Em menos de 24 horas, o Armindo leu o primeiro livro, o dO Velho que Lia Romances de Amor. Disse que leu? Disse mal – eu acho que ele devorou aquilo: leu como um faminto, tanto que no primeiro dia não saiu de casa e nem à refeição (em que mal tocou) parou de ler. Adormeceu com o livro nos braços e, poucas horas após, retomou a leitura, que concluiu ao almoço do segundo dia, uma terça-feira. Aí sim, saciado o espírito e porque a fome apertava, até a generosa travessa de costelas de cordeiro assado no forno se tornou escassa: nem as batatas, a condizer, escaparam. E, ao início da tarde, com Mundo do fim do mundo debaixo do braço, o Armindo lá foi, carreiro acima, por entre carvalhos, faias e bétulas, desviando-se dos fetos e das urzes que lhe escondiam a passagem, espreitando aqui e além o prado onde pachorrentas vacas minhotas pastavam com as suas crias inquietas, sobressaltando-se uma e outra vez com o movimento da vegetação rastejante por efeito da fuga de uma cobra assustada ou pelo despertar ruidoso da perdiz que, receosa, fugia do ninho… Encontrado entretanto o rio que descia, e que vira na aldeia sob a ponte de Parada e ao lado de moinhos há muito desaprendidos da função, foi pelo leito do rio, cada vez mais menino, que o Armindo subiu, saltitando de pedra em pedra, um peixinho aqui, outro ali, rãs ao sol que de imediato mergulhavam nas pequenas poças entre pedras, cobras a nadar tranquilas na água tépida, tão cristalina que apetecia bebê-la. “Comê-la” – disse o Armindo quando falou da pureza daquela água, que ele imaginava impossível naquele rio, que só conhecia negro e pútrido no seu leito terminal, onde a sua Póvoa se abastecia. “Comê-la”, insistiu, como quando se referia a outras bebidas com que igualmente se deleitava. Lembrou-se da filha, menina de 6 anos, que meses antes, ao ver o Ave, entre Santo Tirso e Famalicão, vestido de um negro com que só a abundante espuma contrastava, e ao saber que era daquela água que os poveiros e vilacondenses bebiam, lhe disse – Ó pai, mas então esta água tem de ser muito bem lavada… – Pois tem, minha filha – E a conversa entre eles lá desaguou na problemática da poluição, que o Armindo com dificuldade explicou a uma menina cujos olhos puros tinham dificuldade em compreender tanta maldade humana sobre a natureza – e logo sobre a água, que depois tinha de ser lavada… Após uma hora bem esforçada, estava o Armindo no alto da serra, donde brotam, feitas água, as lágrimas da Cabreira que, perdido o cavaleiro por quem se apaixonara, ali ficou eternamente a chorar – e chora tanto que gerou um fio de água permanente, a que se juntam, serra abaixo, os de outras apaixonadas preteridas. E ao rio que as suas lágrimas originaram, e a quem imploram que as leve, a voar, ao encontro dos seus distantes amados, chamaram Ave, não sei que ave, se a mais esbelta, que dizem ser o canário, se a mais capaz de agarrar o amado e o trazer de volta, o falcão ou outra das poderosas rapinantes que por aqui vivem. Depressa o Armindo se esqueceu da mitologia do lugar. Sentado numa pedra, no meio das primeiras águas do rio, à sombra de um ramo de amieiro, embrenhou-se no Mundo do fim do mundo, que era outro bem distante mas podia muito bem ser aquele onde se encontrava. Até ao crepúsculo daquela

longa tarde foram quase cem as páginas atentamente lidas e anotadas. As restantes duas dezenas leu-as calmamente, em casa, na manhã do dia seguinte. E decidiu que ia ser essa a sua disciplina de leitura ao longo daqueles dias: sempre naquele pequeno paraíso da nascente do Ave, sentado na mesma pedra, com os pés no fio de água acabada de nascer, à sombra do frondoso ramo do amieiro. Um livro cada dia, iniciado ali, após a caminhada digestiva, cuja duração entretanto se ia abreviando, e concluído na manhã do dia seguinte, em casa. Nome de Toureiro, Patagónia Express, Encontro de amor num país em guerra e Diário de um killer sentimental, foram, por esta ordem, os “sepúlvedas” que, um por dia, acompanharam o Armindo naquelas tórridas tardes. Fugindo à sequência cronológica da publicação – que era, por norma, o critério ordenador da leitura – deixou para o fim a História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar. Ele desconfiava que essa era uma história interessante para contar à filha, e queria tê-la fresca na memória quando ela viesse, com a avó e a mãe, resgatá-lo deste exílio. E quando tal aconteceu, ao fim da tarde do sétimo dia, acabadinho de ler o sétimo “sepúlveda”, o Armindo desafiou a filha, que havia concluído o primeiro ano da primária, a ler a “História da Gaivota”, acentuando “…e do gato que a ensinou a voar”. – O gato ensinou a gaivota a voar? – Sim – Ai quero saber como foi – Então lê – Ó pai, o livro é grande, lê tu, que lês mais depressa. E, estendidos na cama, o Armindo lá começou a leitura, a filha muito atenta (– Ó pai, então se a gaivota vai morrer, como é que o gato a vai ensinar a voar? – Não, filha, esta é a gaivotamãe; a que o gato vai ensinar a voar é outra, a filha dela, que vai nascer do ovo que a mãe confiou ao gato – Ah, está bem…) e o Armindo tramado, porque percebeu logo que a Raquel lhe não consentiria o golpe que o sono recomendava: saltar páginas, para abreviar. Tinha que ler tudo, e certinho, porque ela, além de atenta, estava entusiasmada com a fidelidade do Zorbas aos compromissos assumidos, sob juramento, perante a gaivota-mãe. – Ó pai, este é que é um gato sério. Um gato a defender e a criar uma gaivotinha! Se fosse um dos nossos, se calhar, matava-a – Pois, os nossos são gatos do campo; este é da cidade, aliás nem é bem da cidade, é do porto de mar, onde há muitas gaivotas, mas também há muita comida para os gatos, bem melhor que as gaivotas. Sucediam-se as peripécias do processo educativo da gaivota, para o qual o Zorbas convocou os seus amigos Secretário, Sabetudo, Barlavento e Coronello, que em concílio se entendiam sobre a melhor técnica de ensinar a gaivota a levantar voo, primeiro um voozinho, depois um mais longo. A Raquel entusiasmava-se com as peripécias que eles engendravam, particularmente o sábio Sabetudo – Nome bonito, pai – Pois, mas numa equipa também é necessário um Secretário. E, para os gatos que vivem num porto de mar, é importante um Barlavento. Sabes o que é um Barlavento? – Não – Barlavento é o lado de onde sopra o vento. Se o gato tem esse nome, é certamente porque nos barcos onde acompanhava os pescadores era colocado no bordo desse lado – Ah… – O Armindo continuava a leitura; e a filha: – Ó pai, porquê isto? Ó pai, porquê aquilo?, Ó pai volta a ler… – . As 120 páginas pareciam intermináveis, era alta madrugada, o Armindo caía de sono, e a filha, impiedosa quando o pai deixou cair o livro sobre o peito: – Ó pai, vamos ler outra vez! – Filha, agora lê tu – Não, pai, eu quero viver a história. E contigo a ler é melhor… – Fizeram um acordo: agora só liam as partes da história que tinham despertado mais atenção à pequena. Era quase todo o livro, mas o Armindo ia saltando capítulos, como ela bem percebia: – Ó pai, estás a fazer batota. Não foi isso que combinámos – E zangava-se, exigindo que o pai voltasse atrás. Foi uma segunda leitura quase integral do livro, concluída já de manhã, o Armindo perdido de sono, a filha fresca que nem uma alface, mortinha por contar à mãe e à avó a história de um gato que era muito diferente dos que ela conhecia – Ó pai, este livro é para mim, que o quero ler às minhas amigas – E assim foi. De manhã, desafiou a mãe e a avó a ouvirem-na, deleitadas, a ler como gente grande; e à tardinha, mal chegou a casa, correu a reunir-se com a Sofia e a Sara, que, segundo contou, a ouviram com edificante atenção. Quando o Armindo contou a história destas férias com “sepúlvedas” na nascente do Ave, foi tão expressivo na narração do episódio de leitura com a filha que a Manuela Ribeiro logo o desafiou: – Ó Armindo, tens de escrever isso para a revista do “Correntes”, que este ano é sobre o Sepúlveda. – O Armindo disse que sim, mas eu, que o conheço, percebi logo que não: continuaria nas suas escritas menores e burocráticas. Cada vez que o interpelava sobre esse compromisso, melhor percebia que ele, por modéstia, se não atreveria a colocar-se ao lado de autores com vasta obra publicada, de quem não ousava sequer aproximar-se para pedir que lhe autografassem os livros que comprara. Em defesa da honra dele, atrevi-me eu a contar, o mais fielmente que pude, o essencial duma história em que um livro, parecendo uma fábula, mas sendo efetivamente uma parábola, reaviva a esperança de que este mundo pode ter salvação, e não apenas no campo ficcional. A filha do Armindo, que recomendou este “sepúlveda” a incontáveis amigos, reforçou, graças a ele, a decisão de se tornar militante das causas ambientais. É, há alguns anos, engenheira do ambiente.

This article is from: