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Luis e o cinema
Massimo Vigliar
A primeira vez que conheci Luis Sepúlveda, há mais de vinte anos, tinha-me ido buscar ao aeroporto de Oviedo, nas Astúrias, e uma das primeiras coisas que me disse foi “eu sou muito amigo do Vittorio Gassman, em casa mostro-te as fotografias”. Quando entrei naquela casa tão cheia de literatura, de sentimento, de poesia, apresentou-me a sua encantadora mulher, Carmen, e mostrou-me imediatamente a fotografia dele com Vittorio Gassman. “É uma fotografia do meu amigo Daniel Mordzinski”, disse-me, “quando o conheceres, passará também a ser teu amigo”, acrescentou. Luis era um apaixonado pelo cinema italiano, tinha crescido com o neorrealismo e os grandes filmes do pós-guerra, mas a sua paixão era a “comédia à italiana”, que fazia rir e onde ao mesmo tempo eram muitas vezes denunciados os abusos e as baixezas da nossa classe política. Conhecia todos os filmes de Risi, Monicelli, Scola, dizia que “Tão amigos que nós éramos” era um filme imenso, com um guião incrível. Quando Luis passou três meses em Roma, em minha casa, em 2000, fomos várias vezes convidados para jantares ou festas com gente da área: atores e realizadores ficavam muito emocionados por conhecer aquele grande escritor sul-americano tão amado em Itália, Luis ficava contentíssimo por conhecer personagens que tanto tinha admirado no ecrã. Conhecer Gillo Pontecorvo foi muito emocionante para Luis; quando lhe apertou a mão disse-lhe que A batalha de Argel era um dos melhores filmes que tinha visto. Também com Nino Manfredi, com Giuliano Montaldo, com Alessio Boni, com Ornella Muti se encontrou muitas vezes e passaram horas a conversar. Instaurou-se uma grande simpatia entre ele e Ettore Scola: começaram a falar e nunca mais pararam. Recordo-me, anos mais tarde, em 2015, quando Luis estava em Pordenone por ocasião de um festival literário, que a minha mulher, Stefania, organizou em nossa casa, em Roma, um jantar com Ettore Scola, as filhas e Gianni Minà, à base das suas tão amadas mozzarelle de búfala: infelizmente foi atacado pela primeira maldita pneumonia e ficou internado uma semana no hospital. O grande interesse de Sepúlveda pelo cinema, pelo teatro, pelo espetáculo em geral é demonstrado também pelo facto de a sua carreira ter começado muito jovem na rádio chilena, onde o seu primeiro trabalho foi contar aos ouvintes histórias e filmes com grande sucesso. Os seus livros são a prova tangível de que quando escrevia tinha em mente uma estrutura cinematográfica. De facto, quando decidimos tentar fazer um filme retirado do livro Diário de um killer sentimental todos os argumentistas a quem confiámos a primeira versão nos responderam: este livro já é um guião. E foi o guião que cruzou os nossos caminhos. Luis tinha aceitado escrever um guião a partir do livro Terra do fogo, de Francisco Coloane, e foi durante aquele trabalho que nasceu a nossa amizade. Naquele período fui com ele ao Chile para um encontro com Coloane: foi um dos primeiríssimos regressos ao Chile depois do seu exílio. A viagem, apesar de maravilhosa, foi difícil devido às muitas recordações que encontrou. Mostrou-me o sítio onde o prenderam, a horrível villa Grimaldi onde Carmen foi torturada, todas as zonas de Santiago lhe recordavam um período empolgante primeiro, trágico depois. Fomos ter com o grande mestre Coloane que para Luis era um farol; consideravao o Manzoni da América do Sul, mas o grande mestre era tranquilo, admirava Sepúlveda e a sua história de ecologista, o seu percurso com a Greenpeace pela defesa das baleias. Falaram da forma como Sepúlveda tencionava estruturar o guião de Terra do fogo e Coloane estava de acordo. No fim, no momento das despedidas, o velho de cabelos brancos não se levantou da poltrona, viu-nos ir embora e disse “por favor, Sepúlveda, las balleñas, las balleñas”. Era uma recomendação para tratar bem as suas amadas baleias. Viajávamos muito pela Patagónia com o nosso amigo Daniel Mordzinski, naquele período. Um dia decidimos alugar um pequeno avião para atravessar o estreito de Magalhães e ir a Porvenir, a terrinha mais ao sul do mundo. Parece incrível, mas foi ali que abriu em 1905 o primeiro cinema do continente sulamericano: ainda me lembro da emoção de Lucho ao acariciar a câmara Pathé, uma das primeiras. Depois da experiência da Terra do fogo Lucho apresentou-me um tema intitulado Ninguna parte que ele queria levar ao cinema e fazer disso o seu exórdio como realizador. Comecei então a procurar apoios financeiros e pré-vendas televisivas, mas para isso precisávamos de apresentar uma primeira versão do guião. Luis veio para Roma e começou a trabalhar. Enquanto esteve em nossa casa, recebi um convite para participar na festa dos 80 anos do meu amigo Tonino Guerra, o grande argumentista que vivia em Pennabilli, na Romagna. Perguntei se podia levar Sepúlveda, até para ele pedir conselhos ao mestre. Tonino ficou entusiasmado com aquele encontro. Foram três dias de grandes emoções para todos, a começar pelo bilhete de parabéns que Luis escreveu, desejando a Tonino que completasse “todos os anos que tinha de completar”. À noite não conseguia levá-lo para o hotel porque continuava a perguntar
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Com Massimo Vigliar e Miguel Littín durante as filmagens de Tierra del Fuego | Punta Arenas. 1998
Com Massimo Vigliar e Ornella Muti durante as filmagens de Tierra del Fuego | Punta Arenas. 1998
a Tonino: como nasceu Amarcord de Fellini? Como conseguiste escrever a cena de amor dos dois velhos em A noite de São Lourenço dos irmãos Taviani? Parecia que nunca mais acabava. A curiosidade infantil apenas ressurge num adulto quando está realmente empolgado para conhecer qualquer coisa que ainda lhe é estranha. Luis era assim com o cinema. Por fim, a estrutura inicial do guião ficou terminada e regressámos a Pennabilli cheios de entusiasmo: Luis estava mesmo feliz, sobretudo por entrar no mundo cinematográfico através da inteligência, da cultura e da ajuda do homem que tinha escrito a maior parte das grandes obras-primas do cinema italiano do pós-guerra, de A aventura de Antonioni a Matrimónio à italiana, de De Sica, de O navio de Fellini a Nostalgia de Tarkowsky, e tantos outros. Naquela altura começou a preparação do filme e Lucho parecia então uma criança feliz com os seus brinquedos: falava com os técnicos, com o futuro diretor da fotografia (o grande Beppe Lanci), com o compositor Nicola Piovani, premiado com um Óscar. Perguntava tudo e informava-se sobre tudo, queria chegar bem preparado à primeira claquete: também na escolha dos atores foi minucioso, vimos praticamente todas as atrizes italianas antes de escolhermos Caterina Murino. A história de Ninguna parte centra-se na detenção de quatro revolucionários chilenos que são encerrados numa prisão horrível, na sua relação humana com os seus próprios carrascos. Um papel importante é o de um personagem bizarro, pertencente à resistência contra a ditadura, que ajuda os prisioneiros a fugir do campo. Sepúlveda pensou para este papel no grande ator americano Harvey Keitel. Fomos à Sicília, a uma pequena aldeia nas encostas do Etna onde Keitel estava a rodar um filme: conversou toda a noite com Luis sobre o papel que deveria interpretar e depois saiu porque estavam a filmar de noite. Para nossa surpresa, na manhã seguinte quando acordámos às 7.30 para partir encontrámos um belíssimo pequeno almoço preparado por Keitel. Partimos depois para uma viagem de duas semanas no norte da Argentina à procura de lugares, juntamente com Daniel e Roberto Manni (o produtor executivo). Finalmente, a dez quilómetros de Salta, uma fantástica província no norte da Argentina, encontrámos um local desértico que nos parecia perfeito para construir o acampamento militar e a prisão. Um mês depois começou o filme: no primeiro dia de filmagens eu olhava para ele de longe, sem lhe falar, porque sabia que estava por um lado concentrado no seu trabalho e por outro aterrorizado por poder cometer erros. Tinha uma relação maravilhosa com toda a equipa que realmente o adorava. Tínhamos alugado uma casa, o Luis, o Daniel e eu. Quase todas as noites, eu cozinhava a massa que tinha levado de Itália e que Sepúlveda adorava (especialmente alla Amatriciana). Daniel e eu estávamos mortos de cansaço e ele continuava a rever algumas cenas e a preparar outras novas. Ao fim de seis semanas mudámo-nos para Espanha, para Barcelona, onde teriam lugar as últimas cenas com Angela Molina. Durante a montagem Luis confiou muito no responsável pela edição, manteve-se quase à parte por respeito profissional. Finalmente o filme saiu, mas infelizmente não foi um grande sucesso, o que não tocou de maneira nenhuma a nossa simpatia e respeito mútuo. A nossa amizade continuou com muitos encontros, viagens e novos projetos. No verão daquele ano, o diretor do Festival de Cinema de Veneza pediu-lhe para fazer parte do júri: ele ficou muito feliz porque ia ter oportunidade de ver muitos filmes de qualidade. Fomos depois contactados por um jovem chileno, Diego Meza, que queria fazer um documentário sobre a expropriação das terras chilenas por parte de multinacionais americanas e canadianas para a criação de fábricas de alumínio. Andámos a passear pelo Chile durante um mês e foi uma experiência fantástica, especialmente a nível humano, conhecemos pessoas que vivem de simplicidade, camponeses do sul profundo, apaixonados pela sua terra e receosos de a ver desaparecer. Recordarei sempre a frase de um deles: “não é preciso ser astrónomo para amar as estrelas” O documentário resultou muito bem, mas a coisa mais importante é que Corazon Verde, como se intitula, teve sucesso na incrível empresa de bloquear a construção das centrais de alumínio, deixando assim a terra às pessoas que nela habitavam. Ultimamente estávamos a preparar um novo documentário, Um dia na vida de um Mapuche: a história de um dia inteiro deste povo maravilhoso, com as suas tradições e os seus ritmos de vida. Este trabalho permitiria combinar a sua paixão pela terra, pelo Chile e pela arte, e iniciar aquela que seria a sua última viagem de regresso à terra onde tinha nascido o seu sangue.
Tradução de Regina Valente
Massimo Vigliar produtor e distribuidor italiano apaixonado pela cultura e língua espanholas, produziu numerosos filmes na Argentina, Chile e Espanha. Distribui um catálogo impressionante de 600 filmes italianos em todo o mundo. Produziu os dois filmes de Luis Sepúlveda como realizador: Ninguna Parte e o documentário Corazon Verde, e, como guionista, Tierra del Fuego.
Francisco Coloane. St Malo
Vigliar e Littín (em pé) durante as filmagens de Tierra del Fuego | Punta Arenas. 1998