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Sepúlveda, sem meias-palavras
Sofia Branco
Não me lembro bem da primeira vez que o li, mas sei que já foi em idade adulta, provavelmente durante a universidade e depois de ler Gabriel García Márquez pela primeira vez. Seria este autor a guiar-me na descoberta daquilo a que se convencionou chamar literatura latino-americana (com todo um continente de diversidade dentro). Ainda que esta possa ser uma coletivização abusiva, que homogeneíza o que é necessariamente distinto, não deixa de nos colocar num universo muito próprio, de língua, metáforas, imagens, ambientes. Que viria a encontrar em Sepúlveda – assim só, sempre me referi a ele apenas por este nome. Gabriel García Márquez fazia parte do currículo de jornalismo na universidade, sobretudo porque A notícia de um sequestro é todo um manual. Sepúlveda não estava lá, mas podia ter estado por aquilo que nos podia ensinar sobre o escrutínio, a vigilância, a atenção aos detalhes, o dar voz aos marginais (como ele próprio os identificava), o exercício da memória e a preservação da História. O jornalismo deve fazer tudo isso. Após essa primeira descoberta de uma outra literatura, mais solta e colorida, movendo-se no universo do realismo mágico, mas também mais ativista e combativa do que a que havia lido até aí, procurei autores vários para provar os matizes desse universo comum. Assim me perdi pelas páginas dos brasileiros (Jorge Amado, sobretudo), dos argentinos (Jorge Luis Borges, mas confesso que a custo), dos peruanos (Mario Vargas Llosa), dos cubanos (Guillermo Cabrera Infante), dos mexicanos (Laura Esquivel e Octavio Paz, que me fez companhia durante a minha viagem solitária pelo México, um mês de mochila às costas), dos uruguaios Mario Benedetti e Eduardo Galeano (está tudo em Las venas abiertas de América Latina, que deve ser lido em espanhol). Do Chile viria também a ler muito de Isabel Allende, que ainda hoje é presença assídua nas estantes da minha mãe, e Pablo Neruda, a espaços. Dos livros para a realidade, Cuba foi a minha porta de entrada na América Latina (e que porta de entrada…). Fiquei com o bichinho daquela cultura. É um continente com cheiro, som e sobretudo cor. Que no México é explosiva, como nos quadros de Frida Kahlo e nos murais de Diego Rivera. Já pus o pé no Brasil, no México, na Argentina, no Uruguai…. E fiquei sempre com vontade de voltar, desse logo porque um pé não chega para alguns destes países-muitos. Visitei o Chile em novembro de 2007, uma primeira e até agora única vez. Foi uma visita-relâmpago, em trabalho, para acompanhar a XVII Cimeira Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, que ficou conhecida pelo incidente entre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e o rei Juan Carlos de Espanha, que perguntou ao primeiro “¿Por qué no te callas?”. Em Santiago, a formalidade do Palácio de La Moneda contrastava com o protesto dos pintores na Plaza de Armas, que, à época, reclamavam ter sido perseguidos em ditadura e continuarem a ser perseguidos em democracia. Creio que se ouvia Victor Jara nas poucas ruas de Santiago que tive oportunidade de calcorrear.
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Mi canto es de los andamios Para alcanzar las estrellas Que el canto tiene sentido Cuando palpita en las venas Del que morirá cantando Las verdades verdaderas No las lisonjas fugaces Ni las famas extranjeras Sino el canto de una lonja Hasta el fondo de la tierra
Estava Michelle Bachelet no poder e lembro-me de sentir orgulho por isso – uma mulher na liderança do país de Salvador Allende, esse mito dos revolucionários.
Y ahora el pueblo que se alza en la lucha con voz de gigante gritando: ¡Adelante! El pueblo unido jamás será vencido, ¡el pueblo unido jamás será vencido! (canção de protesto chilena)
À primeira e rápida vista, achei o Chile mais contido, mais higiénico, mais europeu, como costumam dizer os vizinhos. Mas, à mesa do restaurante Ligúria, entre pisco sours e carne com sabor e aspeto disso, a algaraviada estava lá também. À mesa, ali como aqui é onde a cultura se come e bebe. Vista a Plaza de Armas, a estátua de Salvador Allende, as praças, as avenidas, os jardins, as esculturas, os chistes solta-
Na casa de Neruda em Cantalao. O Quisco | Valparaiso. 2015
Na casa de Neruda em Cantalao. O Quisco | Valparaiso. 2015
dos das paredes pintadas, desenhas, rabiscadas dos bares…, Santiago não seria a primeira razão para voltar ao Chile. A duas horas de carro e todo um país pelo meio, estava Isla Negra. Ali chegados, Pablo Neruda e uma casa-barco que se espraia em direção ao mar, pelo meio relva, flores coloridas, sinos, uma locomotiva, uma âncora enterrada na terra, o túmulo do poeta e da sua mulher, coberto de bromélias.
Todos fueron entrando al barco. Mi poesía en su lucha había logrado encontrarles patria. Y me sentía orgulloso (Pablo Neruda, Los españoles del ‘Winnipeg’)
Senti-me em casa, olhos postos naquele mar parecido com o da Póvoa, revolto e insubmisso. Suponho que Sepúlveda gostasse tanto da Póvoa também por isso. Não me lembro que livro de Sepúlveda li primeiro, mas apostaria na História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar, que por certo lerei ao meu filho daqui a uns anos.
Demos-te todo o nosso carinho sem nunca pensarmos em fazer de ti um gato. Queremos-te gaivota. Sentimos que também gostas de nós, que somos teus amigos, a tua família, e é bom que saibas que contigo aprendemos uma coisa que nos enche de orgulho: aprendemos a apreciar, a respeitar e a gostar de um ser diferente.
Creio que depois terei enveredado pelo Sepúlveda das inesquecíveis crónicas de viagens, do qual destaco Patagónia Express. Creio que levei este livro para a viagem no comboio real Expresso do Oriente, que liga Istambul a Budapeste.
– Este livro será um convite para uma grande viagem. Promete-me que a farás. – Prometo. Mas para onde vou viajar, avô? – Possivelmente a lado nenhum, mas garanto-te que vale a pena.
O Velho que Lia Romances de Amor é o livro de Sepúlveda mais original.
– Olha, com toda a confusão do morto já quase me esquecia. Trouxe-te dois livros. Os olhos do velho iluminaram-se. – De amor? O dentista fez que sim. Antonio José Bolívar Proaño lia romances de amor, e em cada uma das suas viagens o dentista abastecia-o de leitura. – São tristes? - perguntava o velho. – De chorar rios de lágrimas - garantia o dentista. – Com pessoas que se amam mesmo? – Como ninguém nunca amou.
Em 1997, o jornalista Torcato Sepúlveda (juntaram-se dois) relatou, nas páginas do Público, um episódio singular sobre uma passagem do escritor chileno por Lisboa. À chegada ao aeroporto da Portela, mostrou o passaporte. “O agente abriu lentamente o passaporte, folheou-o, olhou demoradamente a fotografia, encarou o sul-americano que tinha à frente com a minúcia de um cão de fila. Sepúlveda pensou que o esperava o calvário de Madrid. Engoliu invectivas contra a puta da vida, contra os países do Sul da Europa que cada vez mais se parecem com os do Norte, e contra o capitalismo internacional, até. O agente da fronteira, tímido, ousou perguntar: ‘O senhor chama-se Luis Sepúlveda?’ – ‘Sim’, regougou. ‘O senhor é romancista?’ – ‘Sou’, replicou já um tanto amaciado. ‘É autor de um livro chamado O Velho que Lia Romances de Amor?’ – ‘Sou’, disse já espantado. ‘Então, passe, seja feliz em Portugal, e escreva um livro sobre nós’”. Cheguei finalmente ao Sepúlveda que acabaria por me marcar mais: o ativista político, social, ambiental (chegou a integrar as fileiras do grupo ecologista Greenpeace). Sepúlveda não é um escritor neutro, tem convicções, toma posições. Sepúlveda esteve preso e foi torturado nos cárceres de Augusto Pinochet, general que liderou o golpe que viria a derrubar, e assassinar, Salvador Allende, e que se transformou num dos mais sanguinários e longevos ditadores do mundo. Antiimperalista, escreveu em Uma história suja:
Onde está a América Latina? Não a procurem no mapa planetário, mas no universo da incerteza. (...) A América Latina faz fronteira a norte com o ódio e não tem outros pontos cardeais.
As Rosas de Atacama resultaram de uma visita ao campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, onde descobriu gravada numa pedra a frase: “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história”. Decidiu contar a história de “todos aqueles que não aparecem nos noticiários, que não têm biografias, mas apenas uma esquecediça passagem pelas ruas da vida”. Sepúlveda emprestava a voz aos marginais –e só por isso já mereceria ser lido.
Sofia Branco nasceu na Póvoa de Varzim. É Jornalista e Presidente do Sindicato dos jornalistas desde janeiro de 2015. Vive em Lisboa mas não perdeu o sotaque, nem a têmpera do Norte. É feminista e ativista por um mundo mais justo e paritário, à espera que a História se escreva com relato de homens e mulheres.