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Agora não consigo

“Agora não consigo...”

Enza Campino e Riccardo Campino

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Com Riccardo Campino | Orvieto. 2011

“Agora não consigo pensar para além do amanhã quando espero a prova da tua vida pela boca de outros” Depois de termos lido os delicadíssimos versos de Carmen que concluem o poema dedicado a Luis investe-nos a enorme responsabilidade de utilizar com maior consciência as palavras escolhidas para o recordar. E soa incrivelmente autêntica a definição concebida por um outro ilustre poeta, Attilio Bertolucci, “ausência mais aguda presença”, para todos aqueles que o amaram mesmo não gozando da sua constante proximidade! Nós, livreiros, tentamos honrar Luis Sepúlveda cuidando para que nunca faltem todos os seus livros nas nossas lojas, prontos para serem entregues aos leitores que os pedem, ou expondo-os com o maior cuidado possível para atrair a atenção de quem não o conhece. Na nossa consciente loucura sabemos bem que quem lê um determinado livro nunca mais será a mesma pessoa, a sua vida vai ficar mais rica e a sua alma nutrida. Luis, generoso, sempre reconheceu este papel aos livreiros, e todos nós tivemos com ele uma relação especial. Os seus livros inflamaram-nos desde o início, mesmo sem o conhecermos pessoalmente sentíamos que éramos membros do mundo editorial em que cada elemento leva a bom termo a sua própria missão como numa estafeta: alargar a base dos leitores, conquistar continuamente leitores novos e veicular palavras e pensamento dos autores em que acredita, tarefa que Luis Sepúlveda nos facilitou. Não creio que existam leitores de um único livro seu. Quer se tenha iniciado com um romance, com contos, com uma fábula, não parou aí. E depois, os seus livros são daqueles que fazem bem mesmo fechados, uma vez terminados ou mesmo antes de serem lidos, mantidos perto como fonte de energia que se pode tocar a cada momento, carburante puro! Quando sobre eles se pousa o nosso olhar vêm à tona todos os estímulos que nos transmitiram, o prazer que sentimos ao comprá-los, ao lê-los, e somos literalmente inundados por um sentimento de gratidão. Eu e o meu irmão Riccardo, livreiros desde sempre, temos o privilégio de organizar encontros entre escritores e leitores que não são simples apresentações de livros mas, agora temos a certeza,

verdadeiros encontros de amor. Sabe-o bem quem neles participa com entusiasmo e emoção. No Golfo de Gaeta, há 28 anos, e em Orvieto durante um vinténio, demos vida a manifestações que levaram a estas zonas autores provenientes de todos os cantos do mundo, entre os quais Amin Maalouf, David Grossman, Tahar Ben Jelloun, Carlos Ruiz Zafon, Bjorn Larsson, Paulo Coelho, Robert Harris, ‘Alaa Al-Aswani, e muitos outros. Em 1998, em particular, começámos a “cortejar” Luis Sepúlveda. Estivemos com ele em Roma num evento especial e levámos-lhe de presente um livro de fotografias sobre a cidade de Gaeta. Folheou-o e disse-nos logo: “Está bem, eu vou!”. Era o nosso primeiro convidado internacional! Preparámos o evento com um cuidado quase obsessivo, o local escolhido foi o encantador espaço exterior da Igreja de San Francesco em Gaeta, que enchemos com centenas de cadeiras e um estrado colocado mesmo em frente à entrada. Luis ficou espantado. Lembro-me claramente que a certa altura deu uma estrondosa gargalhada: “Ah, se o meu avô me visse!”, comentou, e explicou-nos logo a seguir que se tratava de um “anarquista devorador de sacerdotes” o qual, quando ele era criança, o incitava a fazer chichi em frente às igrejas. Ele, apesar de ser bastante tímido, acabava por ceder. Nas fotografias tiradas naquela ocasião parecemos todos um pouco suspensos entre o céu e a terra, no fundo uma posição ideal para falar de liberdade e humanismo, tal como aconteceu naquela noite com ele e Santiago Gamboa. Interminável o tempo dos autógrafos, dos apertos de mão, dos abraços. Momentos verdadeiramente inesquecíveis! E digo-o com conhecimento de causa, porque desde o dia do seu desaparecimento temos recolhido muitos testemunhos dos leitores presentes nessa altura e nas ocasiões posteriores em que tiveram a possibilidade de estar com ele: as lágrimas, os pensamentos afetuosos. Muitos até nos enviam a fotografia do livro que autografou naquela noite. O ator Edoardo Siravo (que emprestou a sua voz aos audiolivros italianos de Sepúlveda) dedicou-nos um vídeo com a sua fascinante interpretação de um excerto de Histórias daqui e dali. As recordações de todas estas pessoas estão de tal maneira vivas, palpitantes, ricas de histórias e pormenores que fazem pensar num evento ocorrido no verão passado e não há 23 anos atrás... Naquela mesma noite Luis prometeu-nos que voltava. No ano seguinte manteve o compromisso, mas comunicou-nos a data escolhida com apenas uma semana de antecedência. Fizemos todos os possíveis por publicitar o evento com panfletos distribuídos nas praias, anúncios de megafone junto dos estabelecimentos balneares, automóveis com altifalantes às voltas pela cidade, passa-palavra entre amigos, telefonemas (nessa altura eram estas as redes mais sociais) e também daquela vez conseguimos reunir centenas de leitores de todas as idades. A sua gaivota era já muito amada, e por isso também vieram muitas crianças. Antes do banho de multidão com os leitores levamo-lo a dar um passeio num veleiro para que pudesse admirar o Golfo do mar, a Montagna Spaccata, (a lenda segundo a qual os piratas encontravam refúgio na Gruta do Turco acendeu a sua fantasia), moradias e mausoléus de cônsules romanos, o bairro medieval do Castello Angioino-Aragonese: ficou encantado. Disse-nos que aquela paisagem lhe fazia lembrar Gijón, a terra espanhola que tinha escolhido para morar anos depois de ter sido obrigado a deixar o Chile: sentia-se verdadeiramente em casa e nós não podíamos estar mais felizes. No fim de contas, esta é a sensação que desejamos que possam experimentar os autores que convidamos para o nosso evento “Livros na crista da onda”: a perceção de um lugar que está à espera deles, cheio de leitores conscientes da maravilha de poder partilhar algumas horas com alguém que ficará na sua memória para sempre. Quando termina o encontro os leitores vão-se embora, mas nós, livreiros, permanecemos os fidelíssimos guardiões das suas obras extraordinárias. Há escritores com os quais se instaura ao longo dos anos uma relação quase de parentesco, mesmo que não se esteja muitas vezes com eles. Nós vivemos com os livros e todos os dias, quando os mudamos de sítio, os expomos, os aconselhamos, passamos ao lado deles, nos apercebemos do valor da presença de quem os escreveu nas nossas existências. Luis fez com que a nossa comunidade, depois de o ter escutado e lido, ficasse ainda mais coesa. Depois connosco conheceu Orvieto, pequena cidade medieval no centro de Itália, onde durante uns decénios gerimos uma livraria no histórico Palazzo dei Sette. Na primeira vez veio com os seus amigos escritores Herman Rivera Letelier, Alfredo Pita e Santiago Gamboa para se encontrar com os leitores por ocasião do terceiro aniversário da antologia ‘La frontiera scomparsa’ dirigida por ele para a editora Guanda. Chegaram todos ao entardecer diante da majestosa catedral da cidade, numa praça considerada uma das mais belas de Itália: recebemo-los, como mereciam, rodeados de beleza. Mas a verdadeira surpresa foi o percurso que seguimos para chegar ao Palazzo del Popolo, onde se realizou o encontro. Pelo caminho havia, dos dois lados da rua, muitas lojas típicas em cujas montras estavam expostos os seus livros. O espanto que manifestaram quando viram alguns exemplares a espreitar pelo meio de lingerie requintada, de esculturas de madeira ou de produtos típicos tais como salsichas de javali e queijos locais, para além da famosa pastelaria Montanucci onde se destacava um gigantesco bolo com uma grande fénix de chocolate, símbolo da editora. Alegria e doce barrigada coletiva. Com estas premissas, o encontro foi magnífico e emocionante, de tal maneira que os participantes nunca mais os queriam deixar ir embora... Posteriormente Luis regressou a Orvieto por ocasião da publicação de outros livros seus e apresentou-nos Carmen, a sua metade nesta terra, a sua consorte (nomem omen, precisamente aqueles com quem se partilha a sorte): a partir daí ficámos ainda mais ligados. Depois veio com Daniel Mordzinski, e foi outra das suas dádivas apresentar-nos uma pessoa dotada também de

Com os livreiros Enza e Riccardo Campino, Carmen Yáñez e Paola Avigdor | Orvieto. 2011

um coração grande e generoso. E que encontro! Enquanto conversávamos sobre o seu livro, as fotografias de Daniel enchiam um enorme ecrã, permitindo aos presentes fazer uma viagem inesquecível nas suas vidas. Mais tarde convidámo-lo juntamente com Carlo Petrini, o fundador de Slow Food: pontos de vista comuns, empenhamento e militância por um mundo melhor. Toda a vida de Luis foi dedicada a este valor. Voltámos a encontrar-nos depois por ocasião de muitos festivais, edições da Feira do Livro, eventos especiais organizados pelo seu editor que sempre nos incluiu, bondade sua, quando Luis e Carmen vinham a Itália. Nós levávamos-lhe sempre o chocolate de que ele tanto gostava em embrulhos amarrados com um marcador de livros impresso para o efeito com uma frase sua. Assim, dizia-nos ele, interrompíamos as suas boas intenções de dieta. A última vez que nos encontrámos foi por ocasião do seu septuagésimo aniversário, que privilégio! Os seus abraços tão envolventes, gargalhadas, histórias, comoção, bolo com velinhas, brindes e uma dedicatória canora, ‘Gracias a la vida’. Ça va sans dire, querido Luis! Contei estes pequenos episódios estritamente pessoais, mas tenho a certeza de que muitos livreiros em todo o mundo viveram coisas semelhantes, porque ele entrou em todas as livrarias que conseguiu, consciente da importância de olhar nos olhos os seus próprios leitores. “Se há uma coisa de que sempre me arrependi é de não ter mantido uma lista das livrarias que visitei nos últimos trinta anos, no meu caminho de escritor que se encontra com amigos e que o faz em sua casa, porque é isso que são as livrarias: a casa, a morada fora do tempo do escritor, e os livreiros e as livrarias são os guardiões que, quando regressa, lhe dizem: está tudo em ordem, podes receber os teus amigos”. Luis, estarás sempre nas nossas casas de livros e é precisamente aqui que aquilo que um outro amigo teu, Paco Taibo II, define como ‘a república democrática dos leitores’ vem honrar-te, adquirindo um livro para si ou para oferecer, dando um outro sentido a este gesto que, ainda que simples, é mágico e importante.

Tradução de Regina Valente

Enza e Riccardo Campino, livreiros desde sempre entre Gaeta, Formia e Orvieto organizam manifestações literárias e feiras do livro ao ar livre durante o período estivo. São uns dos fundadores da Scuola Librai Italiani, curso de alta formação que prepara os que querem enveredar por esta profissão fascinante. Tiveram a seu cargo uma rubrica do setor no Il Sole 24 Ore, importante jornal diário económico, e são membros dos júris de vários prémios literários de prestígio.

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