Revista Correntes d'Escritas 2021

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Correntes D’Escritas 84

Sepúlveda, sem meias-palavras

Dossier

Sofia Branco Não me lembro bem da primeira vez que o li, mas sei que já foi em idade adulta, provavelmente durante a universidade e depois de ler Gabriel García Márquez pela primeira vez. Seria este autor a guiar-me na descoberta daquilo a que se convencionou chamar literatura latino-americana (com todo um continente de diversidade dentro). Ainda que esta possa ser uma coletivização abusiva, que homogeneíza o que é necessariamente distinto, não deixa de nos colocar num universo muito próprio, de língua, metáforas, imagens, ambientes. Que viria a encontrar em Sepúlveda – assim só, sempre me referi a ele apenas por este nome. Gabriel García Márquez fazia parte do currículo de jornalismo na universidade, sobretudo porque A notícia de um sequestro é todo um manual. Sepúlveda não estava lá, mas podia ter estado por aquilo que nos podia ensinar sobre o escrutínio, a vigilância, a atenção aos detalhes, o dar voz aos marginais (como ele próprio os identificava), o exercício da memória e a preservação da História. O jornalismo deve fazer tudo isso. Após essa primeira descoberta de uma outra literatura, mais solta e colorida, movendo-se no universo do realismo mágico, mas também mais ativista e combativa do que a que havia lido até aí, procurei autores vários para provar os matizes desse universo comum. Assim me perdi pelas páginas dos brasileiros (Jorge Amado, sobretudo), dos argentinos (Jorge Luis Borges, mas confesso que a custo), dos peruanos (Mario Vargas Llosa), dos cubanos (Guillermo Cabrera Infante), dos mexicanos (Laura Esquivel e Octavio Paz, que me fez companhia durante a minha viagem solitária pelo México, um mês de mochila às costas), dos uruguaios Mario Benedetti e Eduardo Galeano (está tudo em Las venas abiertas de América Latina, que deve ser lido em espanhol). Do Chile viria também a ler muito de Isabel Allende, que ainda hoje é presença assídua nas estantes da minha mãe, e Pablo Neruda, a espaços. Dos livros para a realidade, Cuba foi a minha porta de entrada na América Latina (e que porta de entrada…). Fiquei com o bichinho daquela cultura. É um continente com cheiro, som e sobretudo cor. Que no México é explosiva, como nos quadros de Frida Kahlo e nos murais de Diego Rivera. Já pus o pé no Brasil, no México, na Argentina, no Uruguai…. E fiquei sempre com vontade de voltar, desse logo porque um pé não chega para alguns destes países-muitos.

Visitei o Chile em novembro de 2007, uma primeira e até agora única vez. Foi uma visita-relâmpago, em trabalho, para acompanhar a XVII Cimeira Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, que ficou conhecida pelo incidente entre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e o rei Juan Carlos de Espanha, que perguntou ao primeiro “¿Por qué no te callas?”. Em Santiago, a formalidade do Palácio de La Moneda contrastava com o protesto dos pintores na Plaza de Armas, que, à época, reclamavam ter sido perseguidos em ditadura e continuarem a ser perseguidos em democracia. Creio que se ouvia Victor Jara nas poucas ruas de Santiago que tive oportunidade de calcorrear. Mi canto es de los andamios Para alcanzar las estrellas Que el canto tiene sentido Cuando palpita en las venas Del que morirá cantando Las verdades verdaderas No las lisonjas fugaces Ni las famas extranjeras Sino el canto de una lonja Hasta el fondo de la tierra Estava Michelle Bachelet no poder e lembro-me de sentir orgulho por isso – uma mulher na liderança do país de Salvador Allende, esse mito dos revolucionários. Y ahora el pueblo que se alza en la lucha con voz de gigante gritando: ¡Adelante! El pueblo unido jamás será vencido, ¡el pueblo unido jamás será vencido! (canção de protesto chilena) À primeira e rápida vista, achei o Chile mais contido, mais higiénico, mais europeu, como costumam dizer os vizinhos. Mas, à mesa do restaurante Ligúria, entre pisco sours e carne com sabor e aspeto disso, a algaraviada estava lá também. À mesa, ali como aqui é onde a cultura se come e bebe. Vista a Plaza de Armas, a estátua de Salvador Allende, as praças, as avenidas, os jardins, as esculturas, os chistes solta-


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