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Manuel Alberto Valente A Obra de Luis Sepúlveda
A Obra de Luis Sepúlveda na Edição Portuguesa
Manuel Alberto Valente
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A história é por demais conhecida: em 1988, com o romance O Velho que Lia Romances de Amor, Luis Sepúlveda, um jovem chileno exilado em Hamburgo, vencia o Prémio Tigre Juan, criado por destacadas personalidades da vida cultural de Oviedo. O livro foi publicado pelas Ediciones Júcar, cuja distribuição era muito deficiente, pelo que passou completamente despercebido em Espanha (soube, entretanto, que no mesmo ano apareceu uma edição chilena). É nesse momento que entram em cena duas mulheres que vão ser fundamentais no percurso do autor: a agente literária alemã Ray-Güde Mertin e a editora francesa Anne Marie Métailié. Ray-Güde Mertin é procurada em sua casa pelo jovem autor, percebe imediatamente a qualidade do livro e recomenda-o à editora francesa, cujo catálogo privilegiava muito a literatura latino-americana. Esta não demora a concluir que tem nas mãos uma verdadeira joia e decide traduzir e publicar o livro. O êxito em França é retumbante e a fama do romance começa a ser, como hoje se diria, “viral”. Os direitos são imediatamente vendidos para Itália, Portugal e Espanha (agora na Tusquets de Beatriz de Moura). Tive (tenho) a sorte de ser amigo de Anne-Marie, num tempo em que os editores partilhavam as suas descobertas e os seus entusiasmos. “Tens de publicar este livro!”, disse-me ela. Li-o de um jacto e publiquei-o, recorrendo aos talentos de um poeta e tradutor como Pedro Tamen. Em 1991, eu tinha entrado para a Asa com o encargo de criar a partir do zero e com total independência um catálogo literário. Entre as várias colecções que fui criando, tornou-se icónica a “Pequenos Prazeres”, esses livrinhos pretos concebidos pelo (grande) designer João Machado. Foi aí que saiu Um Velho que Lia Romances de Amor, em Setembro de 1993. O livro teve em Portugal um êxito imediato, com edições atrás de edições, o que se intensificou com as visitas que Luis Sepúlveda foi sucessivamente fazendo ao nosso país, a partir daquela primeira em que, entrando por Vila Real de Santo António, vindo de Huelva, nos fez parar em Grândola, para, de punho erguido junto à placa toponímica da terra, registar para a posteridade a sua homenagem ao 25 de Abril. (Segundo os arquivos, incompletos, que conservo, em Janeiro de 2001 o livro ia já na 18ª edição, com cerca de 90 000 exemplares vendidos). Como não tenho diários, e mesmo as agendas vão para o lixo mal o ano termina, não me é fácil hoje reconstituir todos os passos do percurso português de Sepúlveda. Mas para lá das suas inúmeras presenças na Feira do Livro de Lisboa e da sua participação, desde o primeiro ano (e com poucas excepções) nas Correntes d’ Escritas da Póvoa de Varzim, lembro-me de três momentos particularmente significativos: uma sessão na Biblioteca de Guimarães, a presença na Guarda, em 2016, para receber o Prémio Eduardo Lourenço e, sobretudo, a sua vinda a Portugal, em 2003, para sessões evocativas do 30º aniversário do golpe de Pinochet e lançamento do livro O General e o Juiz. Vale a pena desenvolver este ponto. O programa desta visita consistia basicamente em três acontecimentos: uma sessão no Teatro Garcia de Resende, em Évora, pelas 18h30 do dia 15 de Setembro, com apresentação do Professor Antonio Sáez Delgado; uma passagem pela Livraria Fonte das Letras, em Montemor, às 21h30 do mesmo dia; e, no dia seguinte, uma sessão no Museu da República e Resistência, em Lisboa. Apesar do êxito de todas as sessões (recordo particularmente as dezenas de pessoas que se acumulavam, já de noite, para receber o autor em Montemor), demorar-me-ei um pouco mais no caso de Évora, por ter sido um dos momentos mais memoráveis da minha vida de editor. Tínhamos sido contactados pela livraria Som das Letras (era um tempo em que ainda havia livrarias!) no sentido de levar a Évora Luis Sepúlveda. Combinada a data (o tal 15 de Setembro), partimos de Lisboa pensando que a sessão decorreria nas instalações da livraria. Só que, à chegada, os proprietários informaram-nos de que a sessão decorreria no Teatro. Dirigimo-nos a pé até lá e sentámo-nos numa mesa do bar, pensando que era ali que a sessão decorreria. Quando, chegada a hora, nos disseram que era altura de entrarmos na sala, o meu coração gelou – o Garcia de Resende tinha uma lotação a rondar os 400 lugares e seria uma humilhação confrontar o autor com uma sala quase vazia. Entrámos pela porta principal, percorrendo todo o corredor central que dava acesso ao palco. E de repente
aconteceu o inacreditável: quando Sepúlveda surgiu à entrada da sala, os presentes puseram-se de pé, aplaudindo e gritando pelo seu nome – o Garcia de Resende estava completamente lotado por uma multidão que estava ali para ouvir o escritor e o homem que estivera ao lado de Salvador Allende. Voltemos atrás. Depois de O Velho que Lia Romances de Amor, a tradução e publicação dos livros de Lucho foram-se sucedendo: Mundo do Fim do Mundo (1994, tradução de Pedro Tamen), Nome de Toureiro (1995, tradução de Pedro Tamen), Patagónia Express (1996, tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra), História de Uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou a Voar (1997, tradução de Pedro Tamen), Encontro de Amor num País em Guerra (Desencuentros na edição original, 1998, tradução de Pedro Tamen), Diário de Um Killer Sentimental (1999, tradução de Pedro Tamen), As Rosas de Atacama (2000, tradução de Pedro Tamen), O General e o Juiz (La Locura de Pinochet y otros artículos no original, 2003, tradução de Helena Pitta), Uma história suja (2004, tradução de Maria do Carmo Abreu), Os Piores Contos dos Irmãos Grim, com Mario Delgado Aparaín (2005, tradução de Henrique Tavares e Castro), O Poder dos Sonhos (2006, tradução de Henrique Tavares e Castro), Crónicas do Sul, no original Los Calzoncillos de Carolina Huechuraba y otras crónicas (2008, tradução de Henrique Tavares e Castro). Em 2003, no 10º aniversário da sua primeira edição portuguesa, saiu uma magnífica edição especial de O Velho que Lia Romances de Amor, ilustrada por Pedro Proença, com todos os exemplares numerados e assinados pelo autor. Paralelamente, em 2001 e 2002, a Asa publicou dois volumes de contos colectivos em que Luis Sepúlveda participava: Contos Apátridas, com Bernardo Atxaga, José Manuel Fajardo, Santiago Gamboa e Antonio Sarabia (tradução de Jorge Fallorca) e Histórias do Mar, com Mario Delgado Aparaín, Ramón Díaz Eterovic, José Manuel Fajardo, Mempo Giardinelli, Rosa Montero, Alfredo Pita, Hernán Rivera Letelier e Antonio Sarabia (tradução de Luís Filipe Sarmento). E houve ainda, em 2000, o álbum Os Rostos da Escrita – fotografias de escritores portugueses e latino-americanos, de Daniel Mordzinski, que Luis Sepúlveda prefaciou ao lado de João Soares e Lídia Jorge. Sepúlveda tinha-se tornado, como então se disse, “o mais português dos autores latino-americanos”. As visitas a Portugal eram frequentes e estreitava-se a sua relação de amizade com diversas personalidades portuguesas (Fernando Assis Pacheco, Miguel Sousa Tavares, Lídia Jorge, João Soares, Tomás Vasques, entre outros); tudo isso lhe dava um “sentimento de pertença”, que o levou a ponderar fixar residência em Lisboa e até (pasmese) a discursar espontaneamente numa acção de campanha de João Soares na sua candidatura a Presidente da Câmara. Mas há outro aspecto que importa sublinhar: generoso e solidário como era, Sepúlveda foi responsável pela publicação em Portugal (e pela Asa) de muitos autores latino-americanos que eram para nós desconhecidos: foi por seu conselho e incitamento que publiquei nomes como Mario Delgado Aparaín, Elsa Osório, Santiago Gamboa, Antonio Sarabia, Ramón Díaz Eterovic, Eugenia Almeida, Alfredo Pita ou Karla Suárez. E foi graças ao Salón del Libro Iberoamericano que, mais tarde, começou a organizar em Gijón (onde fixou residência), e a que sempre compareci, que conheci e publiquei autores espanhóis como Rosa Montero ou José Manuel Fajardo. Quando abandonei a Asa (depois da sua integração no grupo Leya) e assumi funções de direcção editorial na Porto Editora, Lucho foi o primeiro autor a dizer-me que seria eu o seu editor, estivesse onde estivesse. E, por isso mesmo, um dos primeiros títulos que, sob a minha responsabilidade, começaram a sair na PE em 2008 foi A Lâmpada de Aladino (tradução de Helena Pitta). A partir daí reeditou-se praticamente toda a sua obra e foram-se publicando os livros novos entretanto escritos: A Sombra do Que Fomos (2009, Prémio Nacional de Narrativa, tradução de Helena Pitta), Histórias Daqui e Dali (2010, tradução de Henrique Tavares e Castro), Últimas Notícias do Sul, com Daniel Mordzinski (2012, tradução de Henrique Tavares e Castro), Palavras em tempos de crise (2013, tradução de Henrique Tavares e Castro), História de um caracol que descobriu a importância da lentidão (2014, tradução de Helena Pitta), A Venturosa História do Usbeque Mudo (2015, tradução de Helena Pitta), Uma Ideia de Felicidade, com Carlo Petrini (2015, tradução de Regina Valente), História de Um Cão Chamado Leal (2016, tradução de Helena Pitta), O Fim da História (2017, tradução de Helena Pitta) e o derradeiro História de uma Baleia Branca (2019, tradução de Helena Pitta). Entretanto em 2018, em edição cartonada, saía Todas as Fábulas, reunião num só volume das quatro primeiras histórias juvenis do autor, e O Velho que Lia Romances de Amor, em edição de bolso, passava a integrar a colecção “Miniatura” da chancela Livros do Brasil. Duas notas adicionais: à excepção de História de Uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou a Voar, que na Asa saiu com pequenas ilustrações a preto e branco de Simona Mulazzani e, na Porto Editora, com as hoje icónicas ilustrações de Sabine Wilharm (usadas na edição alemã da editora Fischer), todos os restantes livros juvenis de Sepúlveda foram ilustrados, em Portugal, por Paulo Galindro, o que criou entre autor e ilustrador uma cumplicidade e uma amizade crescentes. A segunda nota tem a ver com Helena Pitta, a principal tradutora de Lucho. Quando História de Uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou a Voar estava já em produção, recebi uma carta de uma senhora, para mim desconhecida, que me dizia ter traduzido espontaneamente esse livro e que recomendava convictamente a sua publicação. Respondi-lhe que chegara tarde – o livro estava já traduzido e prestes a sair – mas que talvez pudéssemos contar com o seu trabalho no futuro. Na verdade, veio a ser ela a partir daí a tradutora da maioria dos livros do autor, de certo modo iniciando uma notável carreira de tradutora de autores espanhóis e latino-americanos que continua nos dias de hoje.
Com Manuel Alberto Valente | Póvoa de Varzim. 2018
Olhando para trás, é-me fácil concluir que a obra de Sepúlveda marcou decisivamente os hábitos de leitura de várias gerações de portugueses. E continuará certamente a fazê-lo, não só pela mensagem humanista que transmite, mas também pelo facto de um livro como História de Uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou a Voar estar hoje incluído nas metas curriculares do ensino básico. Luis Sepúlveda foi sobretudo um grande contador de histórias: nos livros e na vida real. As suas raízes estariam em autores como Salgari, Julio Verne ou Coloane (seu patrício e mestre), muito mais do que no chamado “realismo mágico”. Escritor do pós-boom, atraía-o mais, como alguém escreveu, a “magia da realidade”. As suas histórias eram em grande parte alimentadas pela memória: do combate político, das errâncias do exílio, da militância ecológica. Ele sabia que os livros não mudam o mundo, que quem pode mudar o mundo são os cidadãos. O seu alter-ego Belmonte, que aparece primeiro em Nome de Toureiro e reaparece em O Fim da História, diz em determinado momento deste livro: “Não. Não conseguimos fugir da sombra do que fomos.” A obra de Luis Sepúlveda nunca fugiu do homem que era e tinha sido – e talvez precisamente por isso tenha conquistado em todo o mundo milhões e milhões de leitores. Ter sido o seu editor português, e ter usufruído do privilégio de ser seu amigo, foi mais do que uma honra. De tal modo que, precisamente no dia da sua morte, começou em mim a lenta percepção de que o meu caminho de editor se aproximava do fim. O que veio a acontecer alguns meses depois.
O presente texto tentou, com a objectividade possível, “fixar” o quadro da publicação em Portugal da obra de Luis Sepúlveda. Depois de o terminar, relendo-o, encontrei nele uma “frieza” que pode chocar aqueles que sabem que, além de seu editor, era seu amigo. Noutros textos e em algumas entrevistas (e também num poema que é aqui (re)publicado) permiti que o factor emocional prevalecesse; aqui tentei ser apenas o cronista de um percurso feliz, em que me coube, por sorte, um dos papéis principais.
Manuel Alberto Valente (Vila Nova de Gaia, 1945) tem dedicado grande parte da sua vida à atividade editorial, em editoras como a Dom Quixote, a Asa e, mais recentemente, a Porto Editora. Também poeta, a sua obra está compilada em Poesia Reunida – O pouco que sobrou de quase nada (Quetzal, 2015). Em 2008, foi agraciado pelo Governo Francês com o grau de Cavaleiro das Artes e das Letras.