Luis Sepúlveda “Porque mientras los nombremos y contemos sus historias, nuestros muertos nunca mueren”
C E C20 Fevereiro 2021
Alejandro Céspedes | Anne Marie Métailié | Carmen Yáñez | Daniel Mordzinski | Enza Campino | Francisco Guedes | Ilide Carmignani Iñaki Abad | José Luís Peixoto | José Manuel Fajardo | Karla Suárez Lídia Jorge | Lucas Chiappe | Luís Ricardo Duarte | Luís Sepúlveda Manuel Alberto Valente | Manuela Costa Ribeiro | Maria do Rosário Pedreira | Mario Delgado Aparaín | Massimo Vigliar | Mempo Giardinelli | Miguel Rojo | Ondjaki | Pena Real | Riccardo Campino Rosa Montero | Sofia Branco | Víctor Andresco | Yuri-Soria Galvarro
ISSN 1645-667X
Correntes D’Escritas Revista de cultura literária da Póvoa de Varzim
Fevereiro 2021
E C C 20
Correntes D’Escritas Revista de cultura literária da Póvoa de Varzim
8
José Manuel Fajardo
10
Mario Delgado Aparaín Los hermanos Grim y el...
14
Mempo Giardinelli
Lucho aprendió a volar y anda... 60
19
Yuri-Soria Galvarro
La patria esquiva de Luis...
64
22
Lucas Chiappe
Un tal… Lucho
66
24
Karla Suárez
Un personaje de novela
70
Mi hijo vuelve a Chile
25
Iñaki Abad
No hemos venido para quedarnos 72
Carmen Yáñez
Mi compañero de vida: Luis...
27
Ilide Carmignani
Companheiros de viagem
76
Éramos tan felizes e no lo...
29
Pena Real
Com Sepúlveda na nascente do...
78
Memorial
29
Enza Campino
Menú del día
30
e Riccardo Campino
“Agora não consigo…”
81
Disculpe…, ¿se puede?
32
Sofia Branco
Sepúlveda, sem meias-palavras
84
Manuel Alberto Valente Lucho
40
Manuel Alberto Valente Quando Lucho me levou ao...
Ondjaki
43
Massimo Vigliar
Luis e o cinema
44
Rosa Montero
Lo bastante joven para saberlo... 96
Escrever/viver
46
Miguel Rojo
Penúltimo Viaje
98
Továrich Lucho
49
Francisco Guedes
A Viagem
100
Daniel Mordzinski
A modo de introducción...
Manuela Costa Ribeiro São de ar as palavras Luís Ricardo Duarte
A arte de saber perder
Manuel Alberto Valente A Obra de Luis Sepúlveda... Anne Marie Métailié
Luis Sepúlveda
Lídia Jorge
Luis Sepúlveda
Luis Sepúlveda
Alejandro Céspedes
‘amizade(s)’ | para Lucho
Maria do Rosário Pedreira Um pequeno milagre
José Luís Peixoto Víctor Andresco
Luis Sepúlveda a orillas del rio... 52 56
88 90
FICHA TÉCNICA | TÍTULO Correntes D’Escritas 20 | COORDENAÇÃO Manuela Costa Ribeiro | CURADORIA Daniel Mordzinski e Manuel Alberto Valente | FOTOGRAFIAS: Daniel Mordzinski | DESIGN Henrique Cayatte com colaboração de Pedro Gonçalves e Sara Gonçalves | PRÉ-IMPRESSÃO e IMPRESSÃO Norprint - a casa do livro | TIRAGEM 1000 Exemplares | ISSN 1645-667X | Depósito LEGAL 175790/02 Nota Todos os textos publicados respeitam a grafia adotada pelos autores
Correntes D’Escritas 3
Na abertura da 22ª. edição do Correntes d’Escritas Não sei como descrever-vos a sensação que me domina, quando me vejo a falar para quem não vejo – mas como se tivesse perante mim uma multidão. Será que tenho? Ou estarei a repetir, em pose institucional, a figura histriónica daqueles que, antes da comunicação sem fios, víamos nas ruas a falar sozinhos? (Sim, que hoje toda a gente anda na rua a falar – e eu desconfio bem que, de entre os muitos que realmente estão a falar com alguém, haverá seguramente uns quantos que, com o telemóvel espalmado entre a boca e o ouvido, mais não fazem que uma imitação, falando sozinhos para não ficarem mal entre a multidão de falantes, que é aquilo que somos: uma multidão de falantes – e, apesar disso, porventura a geração que menos próxima está daqueles com quem fala). Qual é a função da palavra, se não aproxima? E como, e com quem, havemos de a usar, se a pandemia nos confinou, limitando ou impedindo o exercício do que verdadeiramente nos define como humanos? É que falar só, ou falar com, não são a mesma realidade. Falar é comunicar (pressupõe, portanto, um ou mais recetores), desejavelmente sob a forma que mais nos humaniza: a da conversa, porventura a do debate. A palavra deseja a proximidade, o encontro. Por isso, à festa da palavra que há 22 anos aqui tem lugar chamamos “Correntes”. Porque não só nos reúnem (re-unem), como nos aprisionam, tal é a necessidade que sentimos de, perante os melhores oficiantes da palavra, fazermos este ritual litúrgico de celebração da sua beleza. A palavra precisa, de facto, de ser celebrada, para ser reabilitada: no seu bom uso, no seu bom nome, na sua honra. No seu bom uso, porque há cada vez mais quem, sobre a fragilização do suporte cultural que é essencial a uma vivência comunitária assente no respeito pelos valores da dignidade e dos direitos humanos, construa e alimente discursos de ódio, que se propagam de forma imparável e à escala global num campo comunicacional que nenhum poder dimanado da cidadania até hoje regulou nem escrutina. A dinâmica das redes sociais promove, por algoritmo, esse discurso – o mais atraente para os utilizadores, filhos da cultura inculta que as reformas escolares das décadas de 70 e 80 produziram; e o mais lucrativo para os gigantes tecnológicos, cujo poder, crescente, se reflete (em jeito de aviso ao mundo) não só na decisão de silenciar o (então ainda) Presidente da nação mais poderosa do mundo, como igualmente (e de forma bem mais preocupante) no facto de, talvez impercetivelmente, estarmos a ser despojados de identidade e de liberdade por entidades desconhecidas que, à margem de qualquer legalidade e escrutínio, dominam a acumulação de dados e a circulação de informação nas redes globais de comunicação. Se a civilização industrial cresceu aprisionando a natureza, a nova vaga destes poderes (o “capitalismo de vigilância” de que fala um recente grande livro) aprisiona a natureza humana, sem nos dar nada em troca senão a ilusória partilha de informação. O mau uso da palavra conduziu ao sequestro da literatura por outras linguagens, mais consentâneas com a superficialidade e a pressa com que hoje se vive. Ora, “o ofício de pensar o mundo existe graças aos livros e à leitura, ou seja, quando podemos ver as palavras e refletir devagar sobre elas, em vez de nos limitarmos a ouvi-las pronunciadas no veloz rio do discurso” – lembra, e adverte, Irene Vallejo, a autora de outro grande livro bem recente, O infinito num Junco. Ao mau uso, que gerou excrescências sociais e políticas que tornaram o mundo bem mais instável e perigoso, contrapunhamos, na política e na literatura, o bom uso da palavra. É que o género humano – de que nós, em diferentes
Correntes D’Escritas 4
campos, cuidamos – mostra crescente tendência para descer de nível, promovendo o que há de pior em cada momento. Mais que nunca, a palavra é uma arma, que temos de usar bem. Reabilitemos o bom nome da palavra, vinculando-a ao serviço da verdade. Que a única exceção a esta regra seja a da criação literária, na sua vertente ficcional. Que só neste domínio, bem demarcado, a imaginação floresça, se afirme e cresça, dando-nos a dose de fantasia que tempere e suavize a dureza da realidade. Os criadores divinizam a palavra quando por ela nos transportam a um nível superior da realidade. No campo literário a ficção é redentora. Fora dele, designadamente na vida social e na gestão dos povos, a mentira, e sobretudo a que se acumula até atingir aparência de verdade e resistir ao embate com a realidade, tem de ser combatida. Em nome do bom nome da palavra, que é sacrilegamente profanada quando o negacionismo impera e conduz à eleição de mentirosos compulsivos. Para estes, sempre é preferível uma impossibilidade plausível a uma possibilidade improvável: é na subtil artimanha deste ilogismo que o negacionismo, construtor de um universo paralelo, vem prosperando – porque as pessoas acreditam mais facilmente numa mentira que parece verdade do que numa verdade menos evidente. E a desfaçatez dos guionistas deste mundo paralelo vai ao ponto de já não temerem ser descobertos. Agora sabem que, arvorados em ficcionistas da vida real, podem efabular qualquer teoria, dizendo e contradizendo na mesma frase: para os seus fieis não há nisso qualquer problema. A pergunta que todos nós – os que da palavra, ainda que em contexto diferentes, fazemos uso regular e principal ferramenta de trabalho – devemos colocar-nos é esta: como foi possível consentirmos a construção de uma sociedade em que a verdade subjetiva e particular (leve como a espuma e inconsistente como o vento) prevalece sobre a verdade objetiva? Como foi possível acreditarmos tão convictamente que a televisão, o digital, os computadores, a internet, o correio eletrónico e as redes sociais construiriam o “novo homem”: um cidadão mais culto, mais informado, mais feliz? O problema, meus amigos, foi a morte lenta da palavra. Porque é dentro dela que as crises permanecem… Como foi possível, então, aceitarmos que uma imagem valha mais que mil palavras? É que foi com palavras que, ao longo dos tempos, o ser humano sentiu, partilhou, aprendeu, cresceu, viveu… O homem é o único animal que fala – a palavra é a nossa grande diferença, a nossa maior vantagem sobre os restantes seres vivos. Como consentimos então que a palavra se submetesse à imagem? (A imagem esplendorosa; a palavra seca, breve e leve). Porque, mais do que para ser entendidos, falamos para ser vistos!
Correntes D’Escritas 5
Com a morte da palavra, morre o pensamento, morre a inteligência, morre a verdade. E daqui à morte das ideologias (que alguns já decretaram) será um passo breve, com o triunfo, então consumado, do pensamento único. Temos de barrar esse caminho, que construiria sociedades sem capacidade crítica, manipuladas e submissas. Sociedades onde a criação artística e literária, suprema realização do espírito e maior glória do modelo civilizacional que construímos e em que nos sentimos felizes e realizados, estaria seriamente ameaçada. Sociedades onde o modelo de organização e de governo seria rapidamente substituído por formas autocráticas, cerceadoras das liberdades cívicas e políticas. Nas democracias, onde os cidadãos dão a alguns a responsabilidade de falar em nome de todos, assiste-se a um fosso crescente entre os que julgam saber e os que não querem ouvir, a ponto de os primeiros já só falarem entre si e os segundos estarem cada vez mais distantes. Da abstenção política ao desinteresse geral vai o espaço, curto, que os adversários da democracia depressa ocupam. Reabilitar a palavra (no seu bom uso, no seu bom nome, na sua honra), é, nos dias que correm, a forma mais eficiente de salvar a liberdade. E neste combate, que a todos convoca, não podemos, infelizmente, contar com três bravos soldados da palavra que recentemente nos deixaram: Luis Sepúlveda, um dos grandes ficcionistas do nosso tempo; Rubem Fonseca, o homem para quem não havia palavras proibidas – e que a todas cultivou e honrou com mestria insuperável; e Eduardo Lourenço, um dos mais respeitados pensadores europeus e, particularmente, da nossa condição portuguesa. Em campos diferentes (Sepúlveda e Rubem na liberdade criadora da ficção, Lourenço na interpretação analítica da realidade), todos fizeram sublime uso da palavra, todos lhe prestigiaram o nome, todos lhe creditaram honra. Sepúlveda, Rubem e Lourenço são os grandes ausentes-presentes desta 22ª edição do Correntes d’Escritas – um encontro diferente, pela razão de sempre: a palavra feita literatura.
Póvoa de Varzim, 26 de Fevereiro de 2021 O Presidente da Câmara
Aires Henrique do Couto Pereira
Luis Sepúlveda com Luís Diamantino | Póvoa de Varzim. 2011
Correntes D’Escritas 7
A Luis Sepúlveda Há pessoas que passam por este mundo como se não tivessem existido, mas há outras que, ao passar por aqui, conseguem tocar-nos, transformar cada gesto nosso num ato único e motivador. De Gijon à Póvoa foi um momento, diria mesmo um piscar de olhos e uma amizade para toda a vida, ou para além dela. Nenhum de nós pode esquecer os momentos cúmplices que vivemos contigo, ninguém pode esquecer as palavras encantatórias que nos oferecias com toda a amizade, em cada mesa das Correntes e quando, fora das Correntes, vinhas lançar um novo livro. As salas cheias para te ouvirem a falar da Odisseia da tua vida, que era a vida de um povo, que era e é a vida dos que lutam pela Liberdade. Tenho sempre na memória os momentos das chegadas à Póvoa e de braços abertos abraçavas toda a cidade e vivíamos uma semana embalados pelas tuas histórias fantasticamente verdadeiras e pelos versos envolventes da Carmen, que nos deixavam o desejo da repetição constante como as ondas do nosso mar. Um momento passado a ouvir-te num almoço na Póvoa, ou antes do jantar do teu aniversário numa varanda de um restaurante em Lisboa, tendo como testemunhas a estátua do nosso Eça de Queiroz e o nosso muito amigo Manuel Valente, dizia eu, um momento passado a ouvir-te fazia com que cada encontro fosse uma descoberta de outros mundos. Quero agradecer-te o muito que nos deste, a tua imaginação que continua a inundar-nos de amor, liberdade, luta e resistência. Guardo a tua imagem e as tuas palavras rodeadas de livros na nossa Biblioteca Municipal, local em que temos os teus tesouros. Guardo, para sempre, o momento último e irrepetível, naquela noite de sábado, em que nos abraçámos como se fosse o abraço eterno com a tua promessa de voltar este ano e tu aqui estás comigo, connosco, mais presente que nunca, marcando profundamente o número 22 das nossas Correntes Poveiras, que também são muito tuas. Até sempre! O teu amigo
O Vereador do Pelouro da Cultura
Luís Diamantino Batista
Correntes D’Escritas 8
A modo de introducción: Hotel Chile
Dossier
Daniel Mordzinski Se llamó Luis y fue cocinero. Uno de los mejores. A finales de los años 40 recibió la proposición de trabajar en el hotel-restaurante Francisco de Aguirre, en La Serena, en el norte chico de Chile, a orillas del Pacífico. Lo consultó con Irma, su mujer, y juntos decidieron dejar Santiago para probar suerte. La noche anterior al viaje, Luis no durmió. Acarició las orillas del vientre sietemesino de Irma, imaginó el rostro de su primer hijo y se dijo que había tomado la buena decisión. El viento de los Andes, el puelche, soplaba con fuerza, siguiendo su eterno recorrido desde la Cordillera hacia el mar. Remolinos de aire golpeaban contra los rubores de sus mejillas. Pero no fue ese viento el que le nubló la vista, fueron los recuerdos de su pasado, que no le dejaban echarle llaves a su casa de la calle Pedro Mira. El Ford Custom estaba impoluto, lo había revisado y lustrado a conciencia para el largo periplo que les esperaba. Terminó de cargar el coche y, sin mirar atrás, acarició la mano de Irma y arrancó. Tomaron la Carretera Panamericana, la mítica Ruta 5 que cruza el país de extremo a extremo, la que tantas veces recorriera para llegar a la Patagonia. Sólo que esta vez lo hizo en dirección opuesta. Rumbo al norte. Condujo despacio para evitar los sobresaltos y los mareos de su esposa. Los primeros 400 kilómetros fueron suaves y todo fue bien, hasta que, a la altura de Ovalle, Irma comenzó a sentir fuertes dolores. Decidieron hacer una pausa en el primer hotel que encontraron. Llamaron a un doctor. Llegó una partera. Dos días después, el 4 de octubre de 1949, el parto tuvo lugar. Le podrían haber puesto Ulises, pero lo llamaron Luis: Luis Humberto Sepúlveda Calfucura. Una vida de viajes y aventuras, como habría de ser la suya, no podía comenzar de mejor manera, ni en otro lugar que no fuera el Hotel Chile. Ahora que se ha ido, cuesta tanto evocar el rastro de vida que dejó desde sus primeros llantos en aquel hotel de Ovalle, hasta su último suspiro en Oviedo, del otro lado del mundo… Sin embargo, eso es precisamente lo que se propone este número monográfico dedicado a Luis (Lucho) Sepúlveda: mantener vivas su voz, su sonrisa, su aliento, su energía, y que el lector pueda encontrar en estas páginas las claves de su obra y de su vida. Hemos querido hacer una revista plural a la imagen del homenajeado y del mestizaje cultural de Correntes d’ Escritas. La publicación reúne textos y narraciones originales, nunca antes
publicados, de escritores, lectores, traductores, editores, libreros, gente de cine, amigos, familia, que nos permite descubrir nuevas facetas de Luis Sepúlveda. Además, ofrece un cuento inédito suyo, así como un texto donde Alejandro Céspedes nos introduce en el universo poético de Lucho y presenta algunos de sus poemas, también inéditos, escritos entre 1967 y 1999. En fin, hemos querido hacer una publicación que permita al lector disfrutar y conocer mejor la huella del escritor y la del hombre solidario y siempre comprometido. La revista nació en Póvoa de Varzim, la Capital Literaria de Portugal, frente a un mar de una ciudad que él amaba, y lo hizo para celebrar, ante todo, a un gran escritor. Inevitablemente, la tercera persona de la narración de las andanzas de Lucho se mezcla con la primera persona de cada uno de nosotros, que atesoramos testimonios y complicidades de quien siempre fue radicalmente generoso y nunca olvidó que para nacer encontró el abrigo inesperado de un hotel. Quiero agradecer el apoyo total de la Câmara Municipal de Póvoa de Varzim, de Luís Diamantino, de Manuela Ribeiro, de Manuel Valente, amigo y editor de toda la obra de Lucho en Portugal por haber aceptado coordinarla conmigo y de toda la maravillosa familia de Correntes d’ Escritas, así como la ayuda incondicional de la poeta Carmen Yáñez, compañera, esposa y amor de Luis Sepúlveda. Y por supuesto, agradezco a cada uno de los colaboradores de esta revista que generosamente participaron con sus textos, dando así forma a este necesario monográfico. En mi caso, es también un doble tributo a tres décadas de amistad: como amigo y compañero de ruta de muchos de sus viajes, y como fotógrafo que tuvo el privilegio y la oportunidad de documentar, con total libertad creativa, la crónica subjetiva, personal y inevitablemente sentimental de aquellos años felices. Es una publicación que, estoy seguro, servirá para recordarlo y estudiarlo. Un proyecto transversal en el que escritura y fotografía se entrelazan en un diálogo fértil. El amor, la pasión, la lealtad, el compromiso, el talento y la libertad se conjugan en estas páginas. Bienvenidos al Hotel Chile. Casi me parece escuchar la voz de Lucho, desde las páginas de su relato La lámpara de Aladino, diciendo que “mientras los nombremos y contemos sus historias, nuestros muertos nunca mueren”. Madrid, 1 de enero 2021
Dossier
Correntes D’Escritas 9
Com Daniel Mordzinski | Patagónia. 1999
Daniel Mordzinski (Buenos Aires, 1960) conocido como “el fotógrafo de los escritores”, trabaja desde hace más de cuatro décadas en un ambicioso ‘’atlas humano’’ de la literatura. Publicó junto a Luis Sepúlveda el libro Últimas Noticias del Sur, editado en Portugal por Porto Editora.
Correntes D’Escritas 10
São de ar as palavras Manuela Costa Ribeiro
Manuela Costa Ribeiro | Póvoa de Varzim. 2008
São de ar as palavras que ainda me martelam o peito e me sufocam o “nó de sangue na garganta”. Desde final de fevereiro de 2020. Desde que recebemos a notícia de que o escritor Luis Sepúlveda estava com Covid-19. A bomba caiu-me no colo e não para de rebentar-me o coração. Por isso ainda não encontro palavras para falar do Luis Sepúlveda. Ainda não encontro um discurso coerente e que faça sentido para escrever da nossa amizade. Sei que sou sua amiga. E sei que é meu amigo. Sim, é, no presente. É como se o meu subconsciente se recusasse a falar no passado. Acredito que a amizade que começou um dia lá atrás e que se foi construindo, alimentando, não se perde com esta partida sem volta. Tece-se de presente e futuro a amizade. Persistirá para além da morte. É assim com os nossos, com aqueles de quem gostamos, que fazem parte da nossa vida, que deixam a sua matriz tatuada na nossa pele. É assim com os nossos, que nos faltam e vão acumulando vazios. Herdamos as suas marcas. Carregamo-los com as nossas.
Em fevereiro, no final de mais uma edição das Correntes, quando abracei o meu amigo Lucho, sabia que aquele era mais um dos muitos abraços que daríamos de todas as vezes que nos encontrássemos. E vamos continuar a fazê-lo. É desta forma que nos cumprimentamos. Desde que nos conhecemos, em 2000, na primeira edição destas Correntes que nos prenderam desde o primeiro instante. Gostamos de abraços o Lucho e eu. Somos feitos de toques e de sensibilidades, apesar da timidez que também nos caracteriza, embora ninguém acredite. São muitas as diferenças entre nós: cara fechada, ele, de sorriso fácil, eu, aparentemente distante, ele, e eu, com a presunção de estar sempre pronta para as dificuldades, os mimos, as extravagâncias dos outros. Com a pretensão (às vezes, certa) de que não tenho problemas e apenas soluções… Muito diferentes os dois, mas de gargalhada aberta, ambos. Cúmplices e costurados de verdade e emoção de quem se entrega às causas em que acredita, de corpo inteiro.
Correntes D’Escritas 11
Carlos da Veiga Ferreira, Manuel Moya, Carmen Yáñez, João Rodrigues, Inês Pedrosa, Rosa Montero, nas costas, Antonio Sarabia, Lauren Mendinueta, Lucho, Manuel Alberto Valente e Maria João Machado | Lisboa. 2012
É de tecido sensível o Lucho e atento, perspicaz, ativo, comprometido. Com os amigos, com a literatura, com a política, com o planeta, com a justiça, com a liberdade. Assim, sem ordem, ou com uma ordem que é a sua. Como se todas fossem prioritárias, mesmo que aparentemente aleatórias. Mas sempre disposto a colocar-se inteiro, o homem, o artista, o poeta, o romancista, o jornalista, o ativista, em tudo o que faz. Como se orientado pelo poema de Ricardo Reis/Fernando Pessoa: “Para ser grande, sê inteiro: nada/ Teu exagera ou exclui/ Sê todo em cada coisa/ No mínimo que fazes./ Assim em cada lago a lua toda/ Brilha porque alta vive.” Não há neutralidade na vida e na obra de Luis Sepúlveda. Na vida compromete-se com o mundo. Na literatura compromete-se com a vida. Tenta criar paradigmas num tempo em que é difícil ter opinião. Em que é mais comum não tomar posição nenhuma para estar dos dois lados da mesma faca de dois gumes. Luis Sepúlveda não é pessoa pequena. Lucho é um gigante silencioso. Contido mas solto, observador atento e calado mas
conversador nato e fluente, simples no olhar, sincero na expressão, firme nas convicções. Jorge Palma é um dos meus autores/cantores de eleição. Nunca me poderei esquecer da felicidade que senti quando um dia, em Paris, sentada com amigos num café do Bairro de S. Germain, entrou o Jorge Palma e ficou sentado numa mesa ao lado. Depois disso já tive oportunidade de o ver pessoalmente. De lhe falar, até. Naquele dia, em Paris, senti um “brilhozinho nos olhos” (em momento nenhum pensei ser, um dia, amiga do Sérgio Godinho, outros dos meus cantores/autores de sempre). Enquanto escrevo este texto, vem-me à memória a música “Passos em Volta” e penso que Jorge Palma a escreveu para o Lucho: “(…) Acabou-se a angústia dos seus passos em volta Dum amor com que ele apenas sonhou Pela primeira vez tinha o futuro nas mãos Abriu a janela e voou ...”
Correntes D’Escritas 12
Dossier
É que “voar, ter asas, não é só levantarmo-nos no ar, é caminharmos com passos próprios. Elevarmo-nos confiando apenas nas nossas próprias forças” (in Público de 11.06.2013, trabalho de Rita Pimenta). Acredita na força da liberdade o Lucho. Das liberdades. Individuais e coletivas. Suas e dos outros. São também de gratidão as palavras que lhe dirijo. Sempre. Sei da importância da sua presença nas primeiras Correntes. Tinha quase 10 anos a primeira edição do seu romance O Velho que Lia Romances de Amor (assinalou-se o 10º aniversário da primeira publicação em Portugal, com uma edição especial, numerada e autografada pelo autor, cujo lançamento foi feito nas Correntes, em 2003), com muitos exemplares vendidos, um
Francisco Guedes e Manuela Costa Ribeiro | Matosinhos. 2008
sucesso a que Portugal não estava propriamente acostumado. Foi o Luis Sepúlveda que criou as primeiras filas de leitores para autógrafos nas Correntes. O Velho que Lia Romances de Amor era o livro mais procurado e mais vendido. Luis Sepúlveda o escritor mais solicitado. Pelo público, pelas escolas, pelos jornalistas. Viveram-se momentos únicos ao longo destes 21 anos. Antes, durante e depois das sessões. Foram longos os dias. Foram mais longas as noites. Tinha uns anos menos, em 2000, muito “verde” nestas questões dos eventos literários – era o primeiro Encontro de Escritores que se organizava em Portugal, a juntar autores das várias geografias de Expressão Ibérica, num país demasiado centralista. A Póvoa – aquela pequena cidade, no norte do país, periférica – atrevia-se a organizar um Encontro de Escritores!
A esta distância, penso no tamanho daquela ousadia! E tudo se fez com muito pouco tempo entre a data da apresentação da ideia até à realização do projeto e a sua concretização. De outubro a fevereiro. Sorte que o Francisco Guedes tinha os contactos dos autores. Sorte que o Francisco Guedes era da área da edição, amigo do editor português do Luis Sepúlveda e de outros autores da América Latina. Sorte que o Zeferino Coelho, editor dos escritores africanos, conhecia a dinâmica da Póvoa de Varzim. Mas terá sido realmente sorte? Não terá antes sido sabedoria aliada a esforço, trabalho, dedicação total e abnegada? Ou será que o atrevimento foi ao contrário? Há uns tempos, numa intervenção sobre as Correntes e a sua génese, ocorreu-me que talvez não tenha sido a Póvoa de Varzim a decidir criar as Correntes. É como se as Correntes (não com esta designação, claro. Ou talvez sim!) já andassem por aí. À espera de uma oportunidade. É como se tivessem sido as Correntes a escolher a Póvoa. A ideia vinha de Gijón, da casa do escritor Luís Sepúlveda e da poeta Carmen Yáñez, ou melhor, do Lucho e da Pelusa, na sequência de uma noite longa de churrasco e de conversas. Aí se cozinhou o conceito. Animaram-se o Francisco Guedes e o Manuel Valente. A ideia andou a amadurecer sem encontrar poiso. E foi na Póvoa de Varzim que o encontrou. Anos depois, numa conversa entre o Vereador Luís Diamantino e o Francisco Guedes, marcada pelo amigo comum Lopes de Castro. Conjugaram-se as constelações. Alinharam-se os planetas. Luis Sepúlveda esteve, pois, na génese desta ideia. O Luis Sepúlveda foi fundamental para o sucesso da primeira edição das Correntes – e de todas as outras – que se realizou apesar das vozes mais céticas de muitos “velhos do Restelo” centralistas de um país pequeno onde tudo converge para a capital. Sorte a minha de ter tido oportunidade de fazer parte deste plano. Fui abençoada pelos astros ao ter sido escolhida pelo Luís Diamantino para trabalhar neste projeto. E assim começamos, eu e o Francisco, ou melhor, o Chico. Ousámos. Construímos a nossa própria passarola, deixámo-nos seduzir pelas Correntes do vento e voamos. Voamos. No presente. No futuro. O passado é uma parte de nós, como a sombra que temos, que nos acompanha e da qual não é possível escapar. Sei que é assim que o Lucho vê o passado. Mas contagia-nos com o futuro porque tenho a certeza de que, como eu e como a canção, sabe que “o sonho é uma constante da vida”. E o sonho compromete-se sempre com o que virá. Connosco ou sem nós. Ai se as paredes do hotel falassem! Quantas histórias, quantas vidas, quantas personagens. Quantas memórias contadas e por
Correntes D’Escritas 13
o povo. “Não gosto nada que me deem ordens e de ser obrigado a fazer o que quer que seja”, ouvi-o dizer para um dos seus companheiros. Ouvi e calei. E respeitei. E respeitou-me. Depois, mais tarde, percebeu a importância da minha atitude. Não precisámos nunca de falar sobre o assunto. Sabíamos que o outro sabia. O olhar bastava. É estranho este ano de 2020. Tempo de perdas, de incertezas, de distanciamento, de ausências, de silêncios. Contido, comedido, entristecido. Vi partir o Luis Sepúlveda, o Rubem Fonseca, o Eduardo Lourenço e muitos outros. Não posso deixar de citar estes que me deram tanto. Que estarão sempre presentes. Quero apropriar-me “dos sentimentos e das ideias
Dossier
contar. Pela primeira vez, em Portugal, se juntaram, em total cumplicidade profissional e pessoal, autores dos três lados do Atlântico. De África, da América, da Europa. O Mar os separava. A Póvoa os juntou. Nas suas Correntes. Com as diferentes formas de encarar a vida e a literatura, de contar e encantar histórias. O Luís Sepúlveda, o Corsino Fortes, o João Ubaldo Ribeiro, o Manuel Rui, o Onésimo Teotónio Almeida, o Ivo Machado, a Ana Paula Tavares, a Vera Duarte, a Armandina Maia e muitos outros. Ai se a paredes do hotel falassem! Falarão um dia. Tanto para dizer! Diriam, por exemplo, que na primeira edição das Correntes tive de telefonar para os quartos da maioria dos convidados para os acordar. Aproximava-se a hora da Cerimónia de Abertura, no edifício da Câmara Municipal, com o Sr. Presidente da Câmara e os Vereadores à espera de receber os participantes na primeira edição das Correntes d’ Escritas – I Encontro de Escritores de Expressão Ibérica – e contavam-se pelos dedos de uma mão os que tinham descido. Creio que não cometerei nenhuma inconfidência se contar este episódio do distante 2000. O Vítor aguardava na receção. O Carlos tinha o autocarro pronto para transportar os convidados. Eu e a Clara aguardávamos a sua chegada, no edifício dos Paços do Concelho. Nem meia dúzia se apresentaram no hall do Hotel Vermar. Foi então que de cima da minha inexperiência e da minha intuição, decidida a encontrar uma solução, saí da Câmara Municipal em direção ao Hotel. Pedi os contactos de cada quarto – convenci o reticente rececionista a ceder-me os números e a usar o telefone da receção – e comecei a ligar um a um. Desconcertei os convidados. Não tinham pedido serviço despertar. Muito menos estavam à espera que alguém da organização os acordasse. Daquela forma. Para confirmar que o autocarro estava prestes a sair e aferir se estariam presentes na Cerimónia Oficial de Abertura do Encontro. Coloquei nas palavras todo o meu ar circunspecto, assertivo, mas com alguma da informalidade que me caracteriza. Convicta de que os estava a acordar. Soube depois que a noite fora longa e que já era dia quando foram para os quartos. Tanto para contar e escutar. Tanto vivido para partilhar. Foram longas todas as noites a seguir. Foi difícil a despedida. Com a promessa de voltar no ano seguinte. E “uma promessa é uma promessa.” Ficaram atrapalhados com o meu telefonema e acabaram por descer todos. Salvei desta forma a sessão que poderia ter sido um fracasso. Um fracasso que poderia ter ditado o fracasso do próprio evento. Visivelmente ensonados, deitando-me olhares desconfiados, foram entrando no autocarro. Em silêncio. Exceto o Luis Sepúlveda que não é de mandar dizer por ninguém o que lhe vai na alma e tem o coração na boca, como diz
Eduardo Lourenço | Matosinhos. 2007
plasmados” nas suas obras. Quero “saborear as suas palavras lentamente, “murmurando-as a meia voz” como fazia o velho Antonio José Bolívar Proãno. E mais não digo, porque se falo, “a chama mexe-se e mexem-se-me as letras”. (in O Velho que Lia Romances de Amor).
Manuela Costa Ribeiro licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de estudos portugueses e franceses, na Faculdade de Letras do Porto. É coordenadora, desde a sua génese, do projeto Correntes d’ Escritas, Encontro de Escritores de Expressão Ibérica, cuja 22ª edição se celebra em 2021, e da revista Correntes D’Escritas. Recebeu a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura em fevereiro de 2017 e foi condecorada com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em 2019.
Correntes D’Escritas 14
A arte de saber perder Os libelos, as fantasias e as fábulas de Luis Sepúlveda
Dossier
Luís Ricardo Duarte Houve um tempo, não muito distante do nosso, em que se pensou que a História tinha finalmente terminado. Caído o muro de Berlim, as aspirações totalitárias tornar-se-iam matéria de arquivo e o mundo poderia abrir-se a um futuro sem obstáculos, com a democracia liberal a fazer o seu caminho, sem aborrecimentos, nem sobressaltos. E mesmo o extinguir da política tal como a conhecíamos, aquela que durante décadas foi agente de mudança e de rutura, seria compensado pelas alegrias de uma sociedade de mercado autorregulamentada. Foi esta visão idílica e ingénua, como o tempo se encarregou de demonstrar, que a obra de Luis Sepúlveda veio estilhaçar. Publicada desde o final dos anos 80, mostrou quão frágil e parcial era este pensamento mágico que inebriou políticos e intelectuais um pouco por todo o mundo. Ao acabar com a História, as teses de Fukuyama e dos que as propalaram, inclusive em leituras enviesadas, apagavam também o passado. Isto é, os horrores, os crimes e as injustiças do passado. Numa única imagem, os contos, as novelas, os romances, as narrativas infantis e os escritos jornalísticos que publicou ao correr de 30 anos são manifestações de quem nunca pôde, nem quis tolerar essa opção. Representam um grito de revolta contra um mundo em que os poderosos se tornam cada vez mais poderosos e os fracos cada vez mais esmagados. Um grito de memória, também, lançado por quem sofreu e viu sofrer, por quem escolheu não se calar. Numa Europa presa a uma certa imagem do realismo mágico que vinha da América do Sul, a obra de Luis Sepúlveda impôs novamente a ideologia e o humanismo como matéria literária. Mais do que batida, a oposição entre bons e maus é cada vez mais necessária, dizem-nos os seus livros, sobretudo numa época em que a estetização do crime está presente em romances escritos a metro e em infindáveis horas de streaming. Para uma América do Sul a tentar virar a toda a brida a página da ditadura, a sua obra, a par da de outros, forçou uma reflexão sobre o passado, sobretudo quando autores de incontáveis crimes e desaparecimentos permanecem impunes. “Quando a democracia abriu as pernas para que o Chile pudesse estar nela, disse primeiro o preço, e a divisa com que se fez pagar
chama-se esquecimento”, dirá uma das suas personagens de Nome de Toureiro. Luis Sepúlveda é, inquestionavelmente, um escritor político, mas apenas na justa medida em que foi um autor profundamente humano. Só assim se poderá perceber como conquistou tantos leitores, ao ponto de se ter tornado, na viragem do milénio, num dos autores latinos mais conhecidos em todo o mundo. Os seus protagonistas são homens e mulheres simples, é certo, muitas vezes perdidos na vida, mas nunca alheados de sólidos princípios éticos. Em libelos, fábulas e fantasias, Luis Sepúlveda fez dos seus livros um espelho lançado ao leitor. Um espelho que pergunta: De que lado estás? O que dizem de ti os teus atos? Que futuro queres? Continuar a lê-lo é procurar dentro de nós a mais pessoal, mas também a mais universal, das respostas, aquela em que cada um possa ser nem mais nem menos do que o seu semelhante. A sua poética é a dos vencidos, dos derrotados, dos que foram deixados para trás, mas que ainda assim souberam conservar a maior das dignidades: a arte de saber perder. A máfia do esquecimento O termo é seu, e surge num prefácio à edição comemorativa dos 20 anos de O Velho que Lia Romances de Amor, romance que o revelou ao mundo em 1989. “A máfia do esquecimento”. Foi contra ela que Luis Sepúlveda viveu, quer resgatando máquinas de escrever em antiquários, quer permanecendo fiel a um conjunto de temas que percorrem a sua obra. Nessa obra inaugural, aliás, afirmam-se os arquétipos que iremos encontrar de livro para livro. A nota do autor é sintomática do seu posicionamento: “Quando esta novela estava a ser lida em Oviedo pelos membros do júri que poucos dias depois lhe atribuiria o Prémio Tigre Juan, a muitos milhares de quilómetros de distância e de ignomínia um bando de assassinos armados e pagos por outros criminosos mais importantes, daqueles que usam fatos de bom corte, unhas cuidadas e dizem atuar em nome do ‘progresso’, liquidavam a vida de um dos mais lídimos defensores da Amazónia, e uma das figuras mais destacadas e consequentes do Movimento Ecologista Universal”.
Quem esteve na última edição das Correntes d’Escritas, que acabou por ser a sua derradeira intervenção pública, pôde confirmar a coerência da sua militância. “Todos os silêncios são cúmplices e têm uma quota parte de responsabilidade”, denunciou na altura, referindo-se aos muitos ecologistas “feitos desaparecer” nos últimos meses e sobre os quais ninguém queria falar, sobretudo na imprensa europeia, sempre guardiã das melhores práticas editoriais, mas afinal presa fácil de engenhosas propagandas. “A história tem uma dimensão cíclica. Os avanços são importantes, mas os regressos manifestam-se terrivelmente. Há cinco anos ninguém acharia possível que os livros voltassem a ser proibidos num país ocidental. E, no entanto, isso está a acontecer. Obras que fazem parte do património da humanidade estão a ser afastadas dos leitores. E lembrem-se: da proibição dos livros à proibição das pessoas é um passo muito pequeno”, acrescentou. Fazer da sua escrita um libelo foi, assim, um dos primeiros meios que Luis Sepúlveda encontrou para combater a longeva “máfia do esquecimento”, com tentáculos em todos os continentes. Felizmente para o leitor, isso não significou transformar os seus contos e romances em panfletos políticos. Teve mais influência na forma como as personagens se apresentavam. Como aprende O Velho que Lia Romances de Amor, há que saber distinguir “quem são os bons e quem são os maus”. Neste aspeto, Luis Sepúlveda nunca confundiu o leitor. Ainda nesse primeiro romance, os representantes do poder exibem no corpo as deformações da sua conduta. O administrador da circunscrição, único representante de um poder distante, homem da lei num lugar perdido na Amazónia, é descrito como um “indivíduo obeso” que “sua sem descanso”. Cobarde, defenderá sempre o seu interesse, desconhecendo a terra sobre a qual supostamente é autoridade. Em contraste, o seu antecessor fora homem querido, “o seu lema era viver e deixar viver e a ele se deviam as vindas do barco e as visitas do correio e do dentista”. Como é fácil de imaginar, ficou pouco tempo no cargo. Bom e maus, sim. As personagens tipo de Luis Sepúlveda são fáceis de descrever. São por norma homens e mulheres latinos, com mais de 40 anos, lançados numa diáspora depois de as suas utopias terem sido esmagadas. Vivem uma crise, mas não a da meia idade, apenas a que as injustiças da história infligem aos mais vulneráveis. Como sobreviventes, reconhecem-se e unem-se ao primeiro encontro, como tão bem se lê em A Sombra do Que Fomos: “O vendedor indicou-lhe uma das três mesas cobertas com toalhas de plástico e contornou o balcão trazendo uma garrafa de vinho e dois copos. Serviu, os dois homens entreolharam-se fugaz-
mente e descobriram nos olhos as mesmas sombras, as mesmas olheiras, o mesmo glaucoma histórico que lhes permitia ver realidades paralelas ou ler existência contada em duas linhas narrativas condenadas a não coincidir: a da realidade e a dos desejos. Os náufragos do mesmo barco têm um sexto sentido que lhes permite reconhecerem-se”. Também na novela Hot Line, um dos muitos exemplos que poderiam ser convocados, este do volume Diário de um Killer Sentimental, Anita não demorará muito tempo a sentir uma forte ligação ao detetive George Washington Caucamán. Basta-lhe uma viagem no táxi que conduz, o suficiente para perceber que ambos estão “do lado dos perdedores”. Bons e maus, sim, mas só na aparência estas são narrativas simples. Há em todas um passado que não se pode esquecer, nem abandonar, pois “bastante difícil é cuidar das sepulturas dos que tivemos”, como sabe Juan Belmonte, de Nome de Toureiro. Um passado que abre as narrativas de Luis Sepúlveda a outras dimensões. À denúncia política, sempre presente, como se tem vindo a defender, junta-se uma reflexão sobre o exílio, consequência natural e forçada dos desmandos do poder autoritário e ditatorial. Uma morte metafórica antes da morte real. “Tudo acabou, esfumou-se a crença, o dogma passou a não ser mais do que uma anedota pueril e fiquei nu, despojado da maior perspetiva que assinalou os fulanos como eu: morrer por qualquer coisa chamada revolução, e que era semelhante ao paraíso que aguarda os pashdaran islâmicos, mas com música de salsa”, reflete ainda Juan Belmonte, sem dispensar a ironia. Ele sabe, no entanto, que o exílio é uma longa e penosa caminhada: “Exila-se o que apenas conheceu um dos lados da medalha e que leva os seus erros mais além de onde os aprendeu, mas o que atravessou todo o túnel descobrindo que os dois extremos são escuros deixa-se ficar preso, colado como uma mosca à fita impregnada de mel.” Também ele exilado, depois do golpe de Augusto Pinochet que depôs Salvador Allende, em vários países da América do Sul e finalmente na Europa, o próprio escritor se viu obrigado a aprender os duros ensinamentos do exílio. “Ao fim de um longo, incómodo e doloroso tempo, o exílio, transformado numa espécie de bolsa de estudos, permitiu-nos entender que a luta contra os inimigos da humanidade se trava em todo o planeta, que não requer heróis nem messias, e que começa por defender o mais fundamental dos direitos: o Direito à Vida”, defende em Mundo do Fim do Mundo. Em A Sombra do Que Fomos, é uma das suas personagens que diz: “Quis responder
Dossier
Correntes D’Escritas 15
Dossier
Correntes D’Escritas 16
que do exílio não se regressa, que qualquer intenção de o fazer é um engano, uma tentativa absurda de habitar um país guardado na memória.” Lançadas para uma segunda vida, as suas personagens, derrotadas por forças maiores e muitas vezes ocultas, inegavelmente criminosas, têm a oportunidade de fazer a diferença no mundo, no pequeno mundo que as rodeia. Através da literatura, a reflexão sobre o exílio torna-se um balanço sobre a vida boa, a vida que merece ser vivida, já que no papel tudo se conjuga: política, humanismo, criação. No sul da Argentina, a caminho do Chile, ao lado de Daniel Mordzinski, ao aperceber-se de quem esteve sentado à sua mesa, o escritor afirma: “Estivemos talvez junto de um criminoso, quis a casualidade que aquele farrapo humano se sentasse à nossa mesa para gaguejar retalhos de uma história oculta, cujos pormenores apenas são conhecidos pelas cloacas do poder”, lê-se em Últimas Notícias do Sul. “E o que podíamos ter feito? O que se atrevem a fazer alguns dos nossos personagens? É verdade que eles se desforram e se vingam por nós e por todos aqueles que conservam a raiva santa dos derrotados, dos traídos, mas os nossos vingadores são ingénuos, são de papel, pelas suas veias correm rios de tinta e, precisamente por isso, são decentes”. Decência política e vingança literária. Eis as bases da obra de Luis Sepúlveda. Um continente mágico Seria redutor destacar apenas a dimensão política da obra de Luis Sepúlveda. Não faria jus a tudo o que nos oferece em livros tão variados como A Sombra do Que Fomos, Patagónia Express ou História de uma Baleia Branca, nem explicaria a emoção que foi capaz de emprestar à sua prosa, comovendo tantos leitores. Falar de Sepúlveda é falar de fantasia, de um tempo e de uma geografia mágicas. Não nos referimos, é preciso esclarecê-lo, ao realismo mágico, que de boom se tornou moda e acabou em rótulo simplista. Se é sabido que esse mesmo realismo mágico produziu alguns dos melhores romances latinos das últimas décadas, exercendo influência até em inesperadas latitudes, mais certo ainda é afirmar que essa estética não podia estar mais longe da do escritor chileno. Sepúlveda é de outra geração, tem outros propósitos. A magia que se solta dos seus livros resulta da distância que ele próprio viveu e que, por isso, transportou para a escrita. É a magia da ausência, da memória, do que já se teve e se perdeu para
sempre. Da Santiago do Chile que, quando visitada muitos anos depois, por ele ou pelas suas personagens, quase não se reconhece. São as pessoas que se perderam pelo caminho. É a juventude, associada a lugares, irremediavelmente interrompida. “A juventude ficara disseminada em centenas de lugares, fora arrancada aos farrapos pelos choques elétricos nos interrogatórios, sepultada em fossas secretas que iam aparecendo lentamente, em anos de prisão, em quartos desconhecidos de países ainda mais desconhecidos, em regressos homéricos a parte alguma, e dela não restava mais que hinos de luta que já ninguém cantava porque os donos do presente decidiram que no Chile nunca tinha havido jovens como eles, nunca se cantara a La Joven Guardia e as raparigas comunistas não tinham nos lábios o sabor do futuro”, como se escreve em A Sombra do Que Fomos. Também é, e não menos importante, a fantasia associada ao mundo do fim do mundo. Apesar de a atual pandemia ter tornado incertas todas as certezas, até há bem pouco tempo era fácil e acessível apanhar um avião para qualquer lugar do mundo. Nas últimas décadas, a terra do fogo tornou-se, de resto, um dos destinos mais apetecíveis. Nos anos 70 e 80, porém, ainda era território de aventureiros, lugar inóspito e fascinante, fuga para quem queria mudar de vida. “Fui para a Patagónia”, dizia a carta com que Bruce Chatwin se despediu do Sunday Times Magazine. Trocar a grande maçã pelo enorme deserto tornou-se horizonte de várias gerações. Publicado em 1977, Na Patagónia, de Bruce Chatwin, assumiu rapidamente o estatuto de livro de culto, até para Luis Sepúlveda. “Apesar de detestar os que sublinham e escrevem anotações nos livros, aquele estava cheio de sublinhados e de pontos de exclamação, que foram aumentando com três leituras”, confessa em Mundo do Fim do Mundo. Prolongado por outros autores, nomeadamente por Paul Theroux, que dois anos depois refazia a viagem de Chatwin em O Velho Expresso da Patagónia, as terras austrais recuperaram a dimensão mítica que a história já lhe havia emprestado, sobretudo desde o encontro entre europeus e sul-americanos, no século XVI. Voluntária ou involuntariamente, muitas das narrativas de Luis Sepúlveda filiam-se nessa linhagem de histórias e relatos iniciada por Pero Vaz de Caminha e de Antonio Pigafetta. As pampas e as montanhas, os mares e os estreitos, as gentes e os viajantes: a sua prosa está povoada de paisagens e figuras extraordinárias. Ao escritor bastava estar atento e disponível para o Outro. Se soubesse conhecer a história do seu país e ser capaz ouvir, com tempo, aquele que cruzava o seu caminho, saberia encontrar uma boa história para contar.
Correntes D’Escritas 17
Portugal | 2000
Dossier
Correntes D’Escritas 18
Por mais distante que estivesse, Luis Sepúlveda nunca esqueceu o Chile. E cedo percebeu que nascera numa mina literária, só que ninguém dava por isso. Como no Velho Oeste e na sua corrida ao Ouro, o sul do continente americano enche-se de episódios memoráveis, alguns com protagonistas bem conhecidos. Um dos que mais fascinava o escritor chileno era o que envolvia o trio constituído por Butch Cassidy, Sundace Kid e Etta Place. Na América, ficaram conhecidos pelo espetacular assalto a um comboio. No outro extremo do mundo, não só desfalcaram vários bancos, como se tornaram “respeitáveis” proprietários, enganando muito boa gente. Bandidos, fugitivos, foras da lei: a Patagónia foi, durante muito tempo, terra de quem não queria ser incomodado. “Ninguém fazia nem faz perguntas na Terra do Fogo. Qualquer forasteiro que chegue àqueles confins vem a fugir de outros, de qualquer coisa, ou de si mesmo”, assegura Juan Belmonte de Nome de Toureiro. “O passado não existe nessas latitudes.” Mas para Luis Sepúlveda existia. Nos seus livros, quer nos mais jornalísticos, quer nos ficcionais, os dois carris da sua prosa, tornou-se o arqueólogo da memória coletiva do seu país e do seu continente. Cada pessoa viva ou personagem inventada, cada rasto do passado ou marca do presente sintetizam fragmentos da história do Chile. Nas suas páginas, cada indivíduo assume-se parte de um todo maior. São insólitas as suas histórias, sobretudo as mais verdadeiras, numa noção clara de que a fantasia é apenas o lado escondido da realidade, aquele que supera a ficção. Mas a fantasia também se afirmava, no jornalista e no escritor, na expressividade e na semântica da sua prosa. Autor de paleta variegada, Luis Sepúlveda atentava no detalhe. Se fosse cineasta, privilegiaria o close up, o pormenor. Mais do que contar, procurava transportar o leitor para o ambiente, para o coração do enredo. O romance que o revelou ao mundo é, também nesse aspeto, a afirmação de um território literário que dá tanta importância às personagens quanto às paisagens, privilegia a ação mas também os momentos de pausa, conhece os sentimentos humanos, sem desprezar a força dos elementos. O vento, a chuva, a tempestade, os animais pequenos e grandes, os corpos e as vísceras, os instrumentos que se usam, as armas a que se recorre. Tudo é descrito minuciosamente, num realismo que não distorce, nem engana. Mesmo o passado mais não é do que uma representação das injustiças que permanecem. Em Mundo do Fim do Mundo, relato de uma viagem para lá do estreito de Magalhães, acompanhamos os passos de quem quer evitar a caça ilegal à baleia. Nestas páginas, o leitor sente o vento inclemente, antevê baías que se abrem atrás de outras baías, entende que o mar, nestas paragens, não é ofício, mas vocação.
Cai, afinal, o leitor, dentro de um romance que não tem nada de inventado. É seduzido numa mensagem ecológica que antecipou em trinta anos o discurso das alterações climáticas e ambientais. A fantasia é a outra face do seu humanismo. A força de ser diferente Era uma vez um gato, uma gaivota e o escritor que contou a sua amizade. Não seria necessário recorrer à sua fábula mais conhecida para defender que Luis Sepúlveda foi, em última análise, um grande cultor da fábula. Elas estão presentes em toda a sua obra, quer quando os protagonistas são animais – as gaivotas, os gatos, os ratos, os caracóis, os cães, as baleias –, quer quando os animais são tão humanos quanto conseguem ser. Foi um autor de fábulas não porque persiga a moralidade, o exemplo ou o caráter educativo em cada texto, apenas porque persegue, como já se sugeriu, uma dimensão universal em cada história individual. As suas narrativas falam-nos de encontros e desencontros, de coincidência e ocasos, de abandonos e resgates. De homens e mulheres que lutam no dia-a-dia ao defenderem a sua diferença. O Velho que Lia Romances de Amor que enfrenta a sua fera, real e imaginária; o ex-guerrilheiro que regressa pela primeira vez a casa, o killer que pode decidir não disparar, uma existência que cairia em esquecimento se não houvesse alguém disponível para a recuperar num conto. Existem histórias porque todos somos diferentes, assegura-nos a obra de Luis Sepúlveda, como os gatos diziam à gaivota que queria ser como os demais. “Gostamos de ti porque és uma gaivota, uma linda gaivota. Não te contradissemos quando te ouvimos grasnar que és um gato, porque nos lisonjeia que queiras ser como nós; mas és diferente, e gostamos de que sejas diferente. (…) Queremos-te gaivota. Sentimos que também gostas de nós, que somos teus amigos, a tua família, e é bom que saibas que contigo aprendemos uma coisa que nos enche de orgulho: aprendemos a apreciar, a respeitar e a gostar de um ser diferente. É muito fácil aceitar e gostar dos que são iguais a nós, mas fazê-lo com alguém diferente é muito difícil, e tu ajudaste-nos a consegui-lo.” Num tempo, como o nosso, em que se chegou a pensar que o ódio estaria dominado e em que a tal sociedade de mercado nos quer mudos e consumidores, Luis Sepúlveda garante-nos em cada conto, em cada história e em cada narrativa que a arte de saber perder é, afinal, a arte de querer e ser diferente. Luís Ricardo Duarte é licenciado em História, variante História da Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde foi diretor do jornal Os Fazedores de Letras. Fez formação complementar em Literatura e em Jornalismo. Colaborou em diversas publicações, sendo atualmente jornalista do Jornal de Letras, Artes e Ideias, desde 2003.
Correntes D’Escritas 19
A Obra de Luis Sepúlveda na Edição Portuguesa A história é por demais conhecida: em 1988, com o romance O Velho que Lia Romances de Amor, Luis Sepúlveda, um jovem chileno exilado em Hamburgo, vencia o Prémio Tigre Juan, criado por destacadas personalidades da vida cultural de Oviedo. O livro foi publicado pelas Ediciones Júcar, cuja distribuição era muito deficiente, pelo que passou completamente despercebido em Espanha (soube, entretanto, que no mesmo ano apareceu uma edição chilena). É nesse momento que entram em cena duas mulheres que vão ser fundamentais no percurso do autor: a agente literária alemã Ray-Güde Mertin e a editora francesa Anne Marie Métailié. Ray-Güde Mertin é procurada em sua casa pelo jovem autor, percebe imediatamente a qualidade do livro e recomenda-o à editora francesa, cujo catálogo privilegiava muito a literatura latino-americana. Esta não demora a concluir que tem nas mãos uma verdadeira joia e decide traduzir e publicar o livro. O êxito em França é retumbante e a fama do romance começa a ser, como hoje se diria, “viral”. Os direitos são imediatamente vendidos para Itália, Portugal e Espanha (agora na Tusquets de Beatriz de Moura). Tive (tenho) a sorte de ser amigo de Anne-Marie, num tempo em que os editores partilhavam as suas descobertas e os seus entusiasmos. “Tens de publicar este livro!”, disse-me ela. Li-o de um jacto e publiquei-o, recorrendo aos talentos de um poeta e tradutor como Pedro Tamen. Em 1991, eu tinha entrado para a Asa com o encargo de criar a partir do zero e com total independência um catálogo literário. Entre as várias colecções que fui criando, tornou-se icónica a “Pequenos Prazeres”, esses livrinhos pretos concebidos pelo (grande) designer João Machado. Foi aí que saiu Um Velho que Lia Romances de Amor, em Setembro de 1993. O livro teve em Portugal um êxito imediato, com edições atrás de edições, o que se intensificou com as visitas que Luis Sepúlveda foi sucessivamente fazendo ao nosso país, a partir daquela primeira em que, entrando por Vila Real de Santo António, vindo de Huelva, nos fez parar em Grândola, para, de punho erguido junto à placa toponímica da terra, registar para a posteridade a sua homenagem ao 25 de Abril. (Segundo os
arquivos, incompletos, que conservo, em Janeiro de 2001 o livro ia já na 18ª edição, com cerca de 90 000 exemplares vendidos). Como não tenho diários, e mesmo as agendas vão para o lixo mal o ano termina, não me é fácil hoje reconstituir todos os passos do percurso português de Sepúlveda. Mas para lá das suas inúmeras presenças na Feira do Livro de Lisboa e da sua participação, desde o primeiro ano (e com poucas excepções) nas Correntes d’ Escritas da Póvoa de Varzim, lembro-me de três momentos particularmente significativos: uma sessão na Biblioteca de Guimarães, a presença na Guarda, em 2016, para receber o Prémio Eduardo Lourenço e, sobretudo, a sua vinda a Portugal, em 2003, para sessões evocativas do 30º aniversário do golpe de Pinochet e lançamento do livro O General e o Juiz. Vale a pena desenvolver este ponto. O programa desta visita consistia basicamente em três acontecimentos: uma sessão no Teatro Garcia de Resende, em Évora, pelas 18h30 do dia 15 de Setembro, com apresentação do Professor Antonio Sáez Delgado; uma passagem pela Livraria Fonte das Letras, em Montemor, às 21h30 do mesmo dia; e, no dia seguinte, uma sessão no Museu da República e Resistência, em Lisboa. Apesar do êxito de todas as sessões (recordo particularmente as dezenas de pessoas que se acumulavam, já de noite, para receber o autor em Montemor), demorar-me-ei um pouco mais no caso de Évora, por ter sido um dos momentos mais memoráveis da minha vida de editor. Tínhamos sido contactados pela livraria Som das Letras (era um tempo em que ainda havia livrarias!) no sentido de levar a Évora Luis Sepúlveda. Combinada a data (o tal 15 de Setembro), partimos de Lisboa pensando que a sessão decorreria nas instalações da livraria. Só que, à chegada, os proprietários informaram-nos de que a sessão decorreria no Teatro. Dirigimo-nos a pé até lá e sentámo-nos numa mesa do bar, pensando que era ali que a sessão decorreria. Quando, chegada a hora, nos disseram que era altura de entrarmos na sala, o meu coração gelou – o Garcia de Resende tinha uma lotação a rondar os 400 lugares e seria uma humilhação confrontar o autor com uma sala quase vazia. Entrámos pela porta principal, percorrendo todo o corredor central que dava acesso ao palco. E de repente
Dossier
Manuel Alberto Valente
Dossier
Correntes D’Escritas 20 aconteceu o inacreditável: quando Sepúlveda surgiu à entrada da sala, os presentes puseram-se de pé, aplaudindo e gritando pelo seu nome – o Garcia de Resende estava completamente lotado por uma multidão que estava ali para ouvir o escritor e o homem que estivera ao lado de Salvador Allende. Voltemos atrás. Depois de O Velho que Lia Romances de Amor, a tradução e publicação dos livros de Lucho foram-se sucedendo: Mundo do Fim do Mundo (1994, tradução de Pedro Tamen), Nome de Toureiro (1995, tradução de Pedro Tamen), Patagónia Express (1996, tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra), História de Uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou a Voar (1997, tradução de Pedro Tamen), Encontro de Amor num País em Guerra (Desencuentros na edição original, 1998, tradução de Pedro Tamen), Diário de Um Killer Sentimental (1999, tradução de Pedro Tamen), As Rosas de Atacama (2000, tradução de Pedro Tamen), O General e o Juiz (La Locura de Pinochet y otros artículos no original, 2003, tradução de Helena Pitta), Uma história suja (2004, tradução de Maria do Carmo Abreu), Os Piores Contos dos Irmãos Grim, com Mario Delgado Aparaín (2005, tradução de Henrique Tavares e Castro), O Poder dos Sonhos (2006, tradução de Henrique Tavares e Castro), Crónicas do Sul, no original Los Calzoncillos de Carolina Huechuraba y otras crónicas (2008, tradução de Henrique Tavares e Castro). Em 2003, no 10º aniversário da sua primeira edição portuguesa, saiu uma magnífica edição especial de O Velho que Lia Romances de Amor, ilustrada por Pedro Proença, com todos os exemplares numerados e assinados pelo autor. Paralelamente, em 2001 e 2002, a Asa publicou dois volumes de contos colectivos em que Luis Sepúlveda participava: Contos Apátridas, com Bernardo Atxaga, José Manuel Fajardo, Santiago Gamboa e Antonio Sarabia (tradução de Jorge Fallorca) e Histórias do Mar, com Mario Delgado Aparaín, Ramón Díaz Eterovic, José Manuel Fajardo, Mempo Giardinelli, Rosa Montero, Alfredo Pita, Hernán Rivera Letelier e Antonio Sarabia (tradução de Luís Filipe Sarmento). E houve ainda, em 2000, o álbum Os Rostos da Escrita – fotografias de escritores portugueses e latino-americanos, de Daniel Mordzinski, que Luis Sepúlveda prefaciou ao lado de João Soares e Lídia Jorge. Sepúlveda tinha-se tornado, como então se disse, “o mais português dos autores latino-americanos”. As visitas a Portugal eram frequentes e estreitava-se a sua relação de amizade com diversas personalidades portuguesas (Fernando Assis Pacheco, Miguel Sousa Tavares, Lídia Jorge, João Soares, Tomás Vasques, entre outros); tudo isso lhe dava um “sentimento de pertença”, que o levou a ponderar fixar residência em Lisboa e até (pasmese) a discursar espontaneamente numa acção de campanha de João Soares na sua candidatura a Presidente da Câmara. Mas há outro aspecto que importa sublinhar: generoso e solidário como era, Sepúlveda foi responsável pela publicação em Portugal (e pela Asa) de muitos autores latino-americanos que eram para nós desconhecidos: foi por seu conselho e incitamento que publiquei nomes como Mario Delgado Aparaín,
Elsa Osório, Santiago Gamboa, Antonio Sarabia, Ramón Díaz Eterovic, Eugenia Almeida, Alfredo Pita ou Karla Suárez. E foi graças ao Salón del Libro Iberoamericano que, mais tarde, começou a organizar em Gijón (onde fixou residência), e a que sempre compareci, que conheci e publiquei autores espanhóis como Rosa Montero ou José Manuel Fajardo. Quando abandonei a Asa (depois da sua integração no grupo Leya) e assumi funções de direcção editorial na Porto Editora, Lucho foi o primeiro autor a dizer-me que seria eu o seu editor, estivesse onde estivesse. E, por isso mesmo, um dos primeiros títulos que, sob a minha responsabilidade, começaram a sair na PE em 2008 foi A Lâmpada de Aladino (tradução de Helena Pitta). A partir daí reeditou-se praticamente toda a sua obra e foram-se publicando os livros novos entretanto escritos: A Sombra do Que Fomos (2009, Prémio Nacional de Narrativa, tradução de Helena Pitta), Histórias Daqui e Dali (2010, tradução de Henrique Tavares e Castro), Últimas Notícias do Sul, com Daniel Mordzinski (2012, tradução de Henrique Tavares e Castro), Palavras em tempos de crise (2013, tradução de Henrique Tavares e Castro), História de um caracol que descobriu a importância da lentidão (2014, tradução de Helena Pitta), A Venturosa História do Usbeque Mudo (2015, tradução de Helena Pitta), Uma Ideia de Felicidade, com Carlo Petrini (2015, tradução de Regina Valente), História de Um Cão Chamado Leal (2016, tradução de Helena Pitta), O Fim da História (2017, tradução de Helena Pitta) e o derradeiro História de uma Baleia Branca (2019, tradução de Helena Pitta). Entretanto em 2018, em edição cartonada, saía Todas as Fábulas, reunião num só volume das quatro primeiras histórias juvenis do autor, e O Velho que Lia Romances de Amor, em edição de bolso, passava a integrar a colecção “Miniatura” da chancela Livros do Brasil. Duas notas adicionais: à excepção de História de Uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou a Voar, que na Asa saiu com pequenas ilustrações a preto e branco de Simona Mulazzani e, na Porto Editora, com as hoje icónicas ilustrações de Sabine Wilharm (usadas na edição alemã da editora Fischer), todos os restantes livros juvenis de Sepúlveda foram ilustrados, em Portugal, por Paulo Galindro, o que criou entre autor e ilustrador uma cumplicidade e uma amizade crescentes. A segunda nota tem a ver com Helena Pitta, a principal tradutora de Lucho. Quando História de Uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou a Voar estava já em produção, recebi uma carta de uma senhora, para mim desconhecida, que me dizia ter traduzido espontaneamente esse livro e que recomendava convictamente a sua publicação. Respondi-lhe que chegara tarde – o livro estava já traduzido e prestes a sair – mas que talvez pudéssemos contar com o seu trabalho no futuro. Na verdade, veio a ser ela a partir daí a tradutora da maioria dos livros do autor, de certo modo iniciando uma notável carreira de tradutora de autores espanhóis e latino-americanos que continua nos dias de hoje.
Dossier
Correntes D’Escritas 21
Com Manuel Alberto Valente | Póvoa de Varzim. 2018
Olhando para trás, é-me fácil concluir que a obra de Sepúlveda marcou decisivamente os hábitos de leitura de várias gerações de portugueses. E continuará certamente a fazê-lo, não só pela mensagem humanista que transmite, mas também pelo facto de um livro como História de Uma Gaivota e do Gato Que a Ensinou a Voar estar hoje incluído nas metas curriculares do ensino básico. Luis Sepúlveda foi sobretudo um grande contador de histórias: nos livros e na vida real. As suas raízes estariam em autores como Salgari, Julio Verne ou Coloane (seu patrício e mestre), muito mais do que no chamado “realismo mágico”. Escritor do pós-boom, atraía-o mais, como alguém escreveu, a “magia da realidade”. As suas histórias eram em grande parte alimentadas pela memória: do combate político, das errâncias do exílio, da militância ecológica. Ele sabia que os livros não mudam o mundo, que quem pode mudar o mundo são os cidadãos. O seu alter-ego Belmonte, que aparece primeiro em Nome de Toureiro e reaparece em O Fim da História, diz em determinado momento deste livro: “Não. Não conseguimos fugir da sombra do que fomos.” A obra de Luis Sepúlveda nunca fugiu do homem que era e tinha sido – e talvez precisamente por isso tenha conquistado em todo o mundo milhões e milhões de leitores.
Ter sido o seu editor português, e ter usufruído do privilégio de ser seu amigo, foi mais do que uma honra. De tal modo que, precisamente no dia da sua morte, começou em mim a lenta percepção de que o meu caminho de editor se aproximava do fim. O que veio a acontecer alguns meses depois.
O presente texto tentou, com a objectividade possível, “fixar” o quadro da publicação em Portugal da obra de Luis Sepúlveda. Depois de o terminar, relendo-o, encontrei nele uma “frieza” que pode chocar aqueles que sabem que, além de seu editor, era seu amigo. Noutros textos e em algumas entrevistas (e também num poema que é aqui (re)publicado) permiti que o factor emocional prevalecesse; aqui tentei ser apenas o cronista de um percurso feliz, em que me coube, por sorte, um dos papéis principais.
Manuel Alberto Valente (Vila Nova de Gaia, 1945) tem dedicado grande parte da sua vida à atividade editorial, em editoras como a Dom Quixote, a Asa e, mais recentemente, a Porto Editora. Também poeta, a sua obra está compilada em Poesia Reunida – O pouco que sobrou de quase nada (Quetzal, 2015). Em 2008, foi agraciado pelo Governo Francês com o grau de Cavaleiro das Artes e das Letras.
Correntes D’Escritas 22
Luis SEPÚLVEDA
Dossier
Anne Marie Métailié Abril de 1992, um sábado de manhã, soalheiro, no cais da gare de Montparnasse, diante do comboio para Saint Malo, aguardo um autor de quem sei apenas o que provocou em mim a leitura de um livro que acabo de publicar, em muito semelhante a um amor à primeira vista. Dele apenas conheço o seu talento para contar histórias, a sua escrita contida, seca, precisa. Nem uma palavra a mais nas suas frases, cada uma colocada no sítio certo, inalterável. Não sei ainda que este encontro vai mudar a minha vida e a deste homem por quem espero. Já falei com ele ao telefone porque não conseguia obter o visto para fazer esta viagem. Em Hamburgo, a Polícia do consulado, achando que era turco, não lhe autorizava a entrada. Contactei, então, Alain Rouquié, antigo embaixador de França no México, e, com a sua ajuda, este Turco Mapuche está para chegar. Uma silhueta enorme avança, alto, corpulento, cabelos fartos negros, muletas, e sobretudo uma postura à Eric Von Stroheim. Olhamo-nos e sabemos quem somos. Conduzo-o até à carruagem e apresentamo-nos. Bastam alguns minutos para perceber que seremos amigos, verdadeiros amigos. 28 anos depois confirmo que fomos amigos fraternos. Luis Sepúlveda sai do hospital com uma tuberculose óssea. Escapou ao médico. Usa uma cinta e vai aguentar-se durante 3 dias. Os 3 dias em que será decidido o futuro do seu romance O Velho que Lia Romances de Amor. Apresentámo-lo no palco do Café Littéraire, comigo a traduzir as respostas. Os leitores precipitam-se, compram o livro e no domingo de manhã as pessoas interpelam-no na rua, cumprimentam-no. É o ponto de partida. O romance ganha os seus primeiros leitores. A mensagem espalha-se de boca em boca e os livreiros fazem do livro um best seller. Quando surge o primeiro artigo na imprensa já o livro vendeu 36 mil exemplares. Atualmente é de 3,5 milhões o número de exemplares deste romance vendidos em França. Logo a seguir o livro é distinguido com o Prémio France Culture de Littérature Etrangère e o Prémio Relais du Roman d’ Aventure. É assim que, tanto para mim como para ele, tem início uma grande viagem. De facto, daqui em diante, as nossas vidas vão mudar: este enorme sucesso em França vai despertar o interesse de editores estrangeiros e fazer de Luis um autor internacional de best sellers que conquista milhões de leitores. A mim, esta publicação traz-me credibilidade junto dos livreiros e faz-me compreender, ao assumi-la, o mistério irredutível às estatísticas económicas que me incitou a lançar-me nesta aventura da edição. Ajuda-me a perceber que, ao construir um catálogo, vamos encontrando autores que acabam por constituir uma espécie de família eletiva de semi-deuses capazes de criar mundos que temos obrigação de
fazer chegar aos leitores. É graças ao Luis que, ao longo dos anos, vou conhecer um bom número desses autores. Não temos dinheiro mas viajamos por toda a França para apresentar o seu livro. O Luis parece que atrai os episódios mais caricatos. Quando fomos a Nantes para uma sessão de autógrafos numa Livraria, à chegada fomos recebidos pela Associação de Dentistas da cidade que acha que o “Velho” está muito bem mas que o dentista é uma personagem sem igual. O livreiro leva-nos a um restaurante especial. O Luis não diz nada, o livreiro também não, a minha conversa não é suficiente para quebrar o gelo e, de repente, estes dois gastrónomos descobrem, felizes, o gosto comum da degustação dos pratos e o cozinheiro acaba sentado à nossa mesa. Ao traduzir a conversa, dou-me conta de que o Luis é um cozinheiro exímio. O Luis curioso, na sua generosidade, começa a abrir-me portas e partilha comigo as suas leituras de autores desconhecidos. Sigo os seus conselhos e crio uma Biblioteca hispano-americana de enorme sucesso. Participo em Feiras do Livro na América Latina, acompanhando-o, e a sua presença e a sua amizade abrem todas as portas. Descubro os debates literários e as conversas à volta de uma mesa farta e de um copo de vinho e, desta forma, cimento uma forte relação de amizade com o Luis e o seu grupo de amigos ao ponto de me terem dito, un dia, que eu era um deles (!) Para celebrar o 20°. aniversário da editora disse-me: “agora que sou muito conhecido vamos aproveitar. Organiza uma tournée em livrarias e apresentarei latino-americanos desconhecidos ao público que vier ter comigo.” Durante 8 dias, à razão de uma cidade e de uma livraria por dia, onde éramos recebidos, o Luis conduziu uma carrinha, pelo sudoeste francês, onde seguiam 4 escritores latinoamericanos, Mario Delgado Aparaín (Uruguay), Santiago Gamboa (Colômbia), Hernan Rivera Letelier (Chile) e Antonio Sarabia (México), tal como esse grande cúmplice que é o fotógrafo Daniel Mordzinski. Foi uma tournée inesquecível de debates, de conversas, de verdadeira amizade e de grandes gargalhadas (uma sala de 300 pessoas às gargalhadas ao ponto de um espectador vir ter comigo para me dizer: “não vai conseguir continuar a traduzir. Venho ajudá-la!”) Ao longo das nossas viagens para apresentações dos seus livros, descubro que adora conduzir e que é necessário alimentá-lo com intervalos regulares, sobretudo antes das entrevistas na rádio, sob pena de se recusar a falar com quem quer que seja e ficar de péssimo humor. Mas também que é bem humorado. Rimo-nos muito com ele. Percebo que passou pela aventura da luta contra as ditaduras da América Central, pela militância
ecologista da proteção das baleias e que tem 6 filhos de nacionalidades variadas; que se casou duas vezes, com um intervalo de 20 anos, com o seu amor de juventude. O seu grande amor. O Luis é seguido por leitores entusiastas e tem muitos admiradores mas a maioria dos jornalistas não sabe como o há de abordar. Diga-se que ele não facilita a tarefa. Apresenta-se sempre com um ar sério e quase ausente, o que afasta alguns faladores mais prolixos, e, antes de responder às perguntas, marca um pequeno silêncio que provoca, habitualmente, um certo pânico no interlocutor. Não estamos habituados ao silêncio. Nos meses que se seguem ao nosso encontro tenho um sonho no qual o Luis está associado a uma palavra: “procrastinar”. Uma intuição fulgurante do que é a marca deste escritor capaz de nos fazer esperar 14 anos antes de nos enviar um livro prometido para daí a 3 meses. Pelo meio escreve outros textos que envia sempre de surpresa. Mas quando temos um encontro com ele, é de uma pontualidade germânica. É um grande cozinheiro e quer os maus quer os bons momentos são o melhor motivo para reunir os seus amigos à volta de un asado e de um bom vinho. É um grande expert no ponto de cozedura das diferentes carnes grelhadas, criteriosamente escolhidas por si. À volta da mesa conta histórias fantásticas, de aventuras, de amor, de ideias. Sobre as questões políticas não tem papas na língua e não se esqueceu do ideal que o levou à prisão, no regime de Pinochet, em 1973. Muito rapidamente se torna uma grande estrela em 53 países. Em Itália é abordado na rua, as pessoas cumprimentam-no e manifestam-lhe de forma efusiva a sua admiração.
O Luis fala de encontros, de lugares e de pessoas com uma grandeza maior do que habitual, conhece indivíduos extraordinários, e o meu sexto sentido deixa-me alerta: nada disto pode ser normal. Um dia ouço-o contar uma história que estava relacionada comigo e tudo se clarifica: eu também sou uma heroína maior do que a minha própria natureza. Enfim, descubro o que a literatura faz da realidade. O que o Luis faz quando conta uma história. Os seus detratores acusam-no de falsidade mas é a sua vida que é extrordinária. Atrai para si os acontecimentos fora da norma. É um escritor cujas vida e obra estão intrinsecamente mescladas. É impossível falar de uma sem a outra. Para além disso, sabe despertar o melhor que há em nós e revelar-nos o melhor que a vida nos oferece. É capaz de nos comunicar a sua vontade de apostar em resistir à traição, ao medo e à exploração como forma única de salvaguardar a dignidade humana. Todas as suas obras, primorosamente escritas, são um convite à viagem e uma tentativa frágil de equilíbrio entre a vida e a obsessão de dar voz a uma “imensa massa de perdedores”, a todos aqueles que a História condena ao silêncio. O Luis amava os climas frios e mutantes, as paisagens do Sul do mundo e na Patagónia serão lançadas as suas cinzas. Tradução de Manuela Costa Ribeiro
Anne Marie Métailié é editora desde 1979, ano em que criou a sua empresa de edição. Publica literatura estrangeira, em particular autores latinoamericanos. Descobriu e publicou toda a obra de Luis Sepúlveda. O catálogo da editora contém mais de 1200 títulos
Dossier
Com Anne Marie Métailié | St. Bad. 2004
Correntes D’Escritas 24
Luis Sepúlveda
Dossier
Lídia Jorge
Em pé: Nuno Júdice, Mario Delgado Aparaín, Lídia Jorge, José Manuel Fajardo, Santiago Gamboa, Alfredo Pita. PIT II, Lucho e Pablo de Santis. Sentados: Hernán Rivera Letelier e Anne Marie Métailié | Gijon 2005
Bruxelas, 1991 – Anne Marie Métailié passou-me para as mãos as fotocópias de um livro chileno que acabava de ler. Estava tão entusiasmada que sentia medo do seu sentimento transbordante como editora. Pedia-me que lesse aquelas folhas e lhe dissesse o que pensava. Li durante uma noite esse livro. Era simplesmente Un Viejo que Leía Novelas de Amor. O meu entusiasmo não era menor do que o de Anne Marie. Nesse segundo encontro, que aconteceu no dia seguinte, Anne Marie já tinha decidido. Durante aquela noite, tinha começado uma aventura maravilhosa no mundo da edição. Luis Sepúlveda iria transformar-se num dos escritores mais queridos das últimas décadas. O que tem a escrita de Luis Sepúlveda de tão singular e atraente? O testemunho de uma experiência de vida vivida no fio da navalha que lhe deu a dimensão dos movimentos subterrâneos que determinam a mudança do mundo, e por isso o seu olhar é político. E uma ternura absoluta pelos seres da Terra que lhe permite uma efabulação fantástica em que pássaros, cães, baleias, confraternizam com os seres humanos no mesmo reino da Criação. Por isso as páginas de Luis Sepúlveda, escritas para
auditórios de todas as idades, estão repletas de fábulas ora violentas ora mansas, mas sempre tocadas por uma singular arte de contar. Luís Sepúlveda é um contador maior. Os seus livros são joias preciosas, marcados pela terra sul-americana que lhe deu origem, pela língua espanhola que lhe deu a plasticidade vigorosa da narrativa, e sobretudo pelo cunho de criador incomum, que lhe permite ser traduzido e amado em todas as línguas. Boliqueime, 1 de Abril, 2020.
Lídia Jorge formou-se em Filologia Românica na Universidade de Lisboa, deu aulas, escreveu mais de vinte livros editados em várias línguas, entre eles, poesia, romances, antologias de contos, literatura infantil e uma peça de teatro. Em 2004 venceu a primeira edição do Prémio Casino da Póvoa, atribuido no âmbito do Correntes d’ Escritas com o livro O vento Assobiando nas Gruas. Em 2014 foi-lhe atribuído o prémio Luso Espanhol da Arte e Cultura concedido pelo Ministerio de Educación Cultura e Deporte de Espanha e pela Secretaria de Estado da Cultura de Portugal.
Correntes D’Escritas 25
Mi hijo vuelve a Chile Luis Sepúlveda
Com o seu filho mais velho Carlos Lenin | Verão de 1994
viajar a cualquier país, pero no para regresar a Chile”. Fue así como, a los ocho años, Carlitos se unió a la hermandad universal de los exiliados. ¿Carlitos era un tipo peligroso para la dictadura de Pinochet? Tal vez. El sacerdote director del colegio salesiano al que iba aseguró que nunca lo había oído pronunciar discursos subversivos, pero que sus reiteradas ausencias a las clases de religión lo hacían sospechoso. Y, además, Carlitos había dado pruebas de valentía frente a los militares: cuando en 1973 arrestaron a su padre, tranquilizó a su madre jurándole que saldría vivo porque estaba bajo la protección de Sandokan. Tres años más tarde, cuando arrestaron e hicieron desaparecer a la madre, no lloró frente a los soldados, sino que los enfrentó, diciéndoles que sobre ellos se abatiría la Confederación Galáctica. El lugar de cada uno Carlitos se llama Carlos Sepúlveda. Carlitos es mi hijo mayor. En Chile lo vi por última vez cuando tenía cinco años. Volví a verlo en Estocolmo en un frío día de enero, cuando cumplió ocho años.
Dossier
A los chilenos nos gustan los diminutivos, quizá porque vivimos en un país demasiado grande, somos pocos y la calidez de los diminutivos nos hace sentir menos solos. Todo Carlos es un Carlitos, y quiero hablar de un Carlitos que vuelve a Chile después de veinte años de ausencia. Dejó el país cuando tenía apenas ocho años y a decir verdad no quería irse, no quería subirse a aquel avión, ni siquiera quería ser amable con aquel señor del ACNUR, el Alto Comisionado de Naciones Unidas para los Refugiados que lo acompañaban a él y a su madre protegiéndolos de las miradas de odio que les dirigían los soldados, sobre todo a la madre, que había sobrevivido a un centro clandestino de torturas llamado Villa Grimaldi. Carlitos llevaba consigo una valijita. Sus pertenencias no eran muchas: algunas mudas de ropa, un suéter tejido por su abuela, un libro sobre dinosaurios y un muñeco de plástico del capitán Solo, el más simpático y valiente de los protagonistas de la Guerra de las Galaxias. Antes de subir al avión, un oficial de inteligencia le dio su primer pasaporte. En la tapa tenía sellada una misteriosa “L”, con una inscripción: “Documento válido para
Correntes D’Escritas 26
Dossier
Com Carlos Lenin no 70º aniversário de Luis
En unos días volveremos a vernos en Chile y festejaremos su vigésimo octavo cumpleaños. Hace un par de semanas, hablé de mi hijo con Jerome Charyn, de su vida y de su retorno. El gran escritor me escuchó en silencio para luego murmurar: “Carlitos come back”. Su vida, como la de todos los niños en el exilio, no fue fácil, pero él tiene en su interior algo que siempre lo protegió de la desesperación y la frustración que mató a tantos compañeros, física o espiritualmente, o ambas cosas, independientemente de la edad. Desde el exilio, gradualmente, se enteró de la muerte de sus abuelos, sufrió la privación de su patria afectiva, pero al mismo tiempo recibió con enormes demostraciones de amor la llegada progresiva de sus tres hermanos. Nos encontrábamos cada vez que podíamos. Yo iba a Suecia o él venía a Alemania. Durante una de esas visitas perdí al niño y encontré al adolescente. El capitán Solo fue reemplazado por una pandilla de muchachos suecos con los cuales formó un grupo de rock, y al final de un concierto, al verlo aclamado por docenas de jovencitas, me resolví a hablarle de ciertas cosas que consideré importantes. “Ha llegado la hora de que te diga algo inteligente”, le dije. “OK, viejo sabio, revélame alguna verdad universal”, me respondió. “Mi abuelo decía que uno está donde se siente mejor”. “Muy lindo. Es cierto. Yo soy de aquí”, respondió, y aferrado a su guitarra Fender Stratocaster volvió a subir al escenario en medio de los gritos felices de las chicas que lo aclamaban. Siempre lo sospeché y ahora estoy seguro. Carlitos hizo de la música el lugar donde se sentía mejor. La música ha sido y es su patria.
Su familia incluso, porque esa pandilla de muchachos suecos se mantuvo, antes se hacían llamar Base, ahora se llaman Psycore y son uno de los grupos de hard rock más famosos de Escandinavia, Inglaterra y Alemania. “Uno está donde se siente mejor”, me repitió hace ocho años al presentarme a una bellísima sueca y agregó: “Se llama Linda y es mi compañera para toda la vida”. Y así ha sido y es. Se casaron en abril de 1999, hicimos una gran fiesta de la que participaron todos sus hermanos alemanes, su hermano sueco, su hermana ecuatoriana y cientos de amigos. Entre los invitados estaba mi madre, la única abuela que le quedó. Y ella le devolvió un pedazo de Chile: un jarro de plata con el cual el abuelo, mi padre, le servía el desayuno. Fue entonces cuando lo vi llorar por primera vez mientras, aferrando el jarro, repetía la palabra Chile con todo el dolor de la privación, con toda la furia amorosa de los años de exilio. Mis hijos y yo nos entendemos con pocas palabras. Había llegado el momento de volver, de ajustar las cuentas con la vida, y comprendí que quería tenerme a su lado. En pocos días estaremos en Santiago. Carlitos no llevará consigo el muñeco del capitán Solo. Entre sus manos tendrá las de su compañera, Linda, mi amadísima hija sueca, y después de visitar las tumbas de nuestros muertos beberemos un vino chileno, un vino alegre, sano y fraterno que lo espera desde hace veinte años y que se merece, porque, como su abuelo y su bisabuelo, Carlitos pertenece a la estirpe de hombres que aman la vida y ese amor nos repite que venceremos. Luis Sepúlveda. 2001
Correntes D’Escritas 27
Mi compañero de vida: Luis Sepúlveda Él tenía 18 años y yo 15 en 1967. Lo trajo mi hermano Pablo a casa. Lo que yo no sabía es que estos dos habían hecho un trato, antes de conocernos. Mi hermano me presentó a su amigo de una manera no muy convencional, ni docta. Hoy sería altamente criticable; me había “vendido” por dos botellas de vino. – ¡Cómprame dos botellas de vino y te presento a mi hermana! Y no del mejor vino. Así fue como al pretendiente. Le costó un año más enamorarme. El 8 de marzo del siguiente año, me robó un beso con palabras y milongas de poeta mientras la mirada vigilante de mi abuela se distraía en otras cosas. Nos casamos en 1971, mi padre tiró la casa por la ventana. Parientes y amigos asistieron al casamiento de la primera hija. Carlos Lenin nació en enero del 1972, lo habíamos encargado antes, incluido el paquete de escándalo ante la familia y el disgusto de mamá.
O casamento em Gijón | 21 de agosto de 2004
Años felices, mucho amor, mucho sexo, encuentros, desencuentros a la par del compromiso que estábamos adquiriendo en una sociedad chilena que cambiaba y nos iba mudando. Activos militantes de un proyecto de vida y de sueños para transformar el mundo. Este motor vital nos unió y luego nos separó. Vino el golpe militar, la noche oscura del fascismo, las garras desquiciadas del odio, caímos miles de presos, otros desaparecieron o fueron fusilados sin juicio alguno. Los que nos liberamos contábamos hematomas y heridas del fervor patriótico de los nuevos dueños del país. Cada uno tomó su camino. Cada uno partió a distintos exilios. Alguna que otra noticia de ambos nos alegraba el corazón, pero debíamos remendar los desgarros, levantarnos y reconstituir nuestras respectivas vidas. Otros amores ocuparon por un tiempo ese espacio vacío, pero pleno de recuerdos risueños.
Dossier
Carmen Yáñez
Dossier
Correntes D’Escritas 28
Com Carmen Yáñez | Gijón. 1998
Consecuencia de ello llegaron más hijos; Lucho fue padre de Paulina, Sebastián, León y Max. Yo tuve a Jorge Amadeus. Veinte años más tarde volvimos a encontrarnos. Fue un reencuentro emocionante, bello y difícil. Tuvimos que pedir mi mano a nuestro hijo en común. – ¡Para que me la pides – dijo Carlos – ¡cuando ya te la tomaste toda! Un año más tarde, en 1997, viajamos a Gijón, habíamos apostado por Asturias, la verde y lluviosa Asturias donde estaríamos a salvo, porque se asemejaba a lo que habíamos perdido. Y el idioma fue un factor decisivo. Elegimos una casa blanca, igualita a la que alguna vez tuvimos en los años felices. Allí comenzamos otra vez los sueños, (en el corazón de esa ciudad de acogida) con un gran proyecto: El Salón Iberoamericano de Gijón, que reuniría a grandes figuras de la literatura Hispano-Lusa.
Catorce años lo mantuvimos hasta ponerle punto final. Gijón se había hecho visible para el mundo de la palabra. Viajamos innumerables veces: giras, charlas, conferencias, recitales, festivales de la palabra. Lucho era querido y aclamado en todas partes, donde nos invitaban y agasajaban. Largas colas de lectores para que el autor firmará sus obras. Grandes y emocionados homenajes. Los veranos los dedicábamos a recibir a los hijos, todos adolescentes de distintos países, distintas lenguas en la misma mesa. Luego llegaron los nietos. Los más esperados. Los que en los tiempos del miedo no imaginábamos que llegaríamos a conocer. Nos tuvimos el uno al otro hasta el 16 de abril de 2020, día execrable. Fueron 24 años de amor. Sus palabras, su vida y su obra quedarán para siempre en las vertientes de mi memoria.
Correntes D’Escritas 29
Éramos tan felices y no lo sabíamos Carmen Yáñez
Ignorantes de la luz que circundaba la inocencia éramos tan felices amor mío con el calor de nuestras manos juntas cruzando todos lo caminos y riéndonos de los obstáculos de piedra o granizo que nos intentaban parar esa carrera irresponsable de la felicidad. Éramos tan felices y no nos enterábamos de la dimensión de la vida. De la invisible amenaza, de la larga sombra del miedo, no lo sabíamos nosotros, irreverentes. Amándonos con proyecciones de futuro. Hoy ya no pienso más allá de mañana cuando espero tu prueba de vida dicha por otros.
Memorial ¿Qué quedará de nosotros los amantes sino la tarde que el sol derrama sobre la ausencia? ¿Qué lamentará el pajarito perdido en su soledad? La tarde de las hojas pálidas, las pequeñas cosas que rodearon la cintura de esta historia. ¿Qué dirán de nosotros los amantes los mordiscos del tiempo en esa casa abandonada a su suerte? ¿Quién descifrará de la cáscara seca o de la caja vacía, la idea del aura que dejamos los amantes antes de caer en el olvido?
Dossier
Éramos tan felices y no lo sabíamos
Correntes D’Escritas 30
Menú del día (dos duros)
Dossier
Una mesa apartada del resto, una leve figura en el trasluz. Un mantel de hule y un cubierto envuelto en la servilleta aséptica. Menú del día y ese olor a alcohol alcanforado por el oscuro local de provincia. Una pobre ensalada de primero y un vaso de agua junto al pan industrial. Una triste pescada bañada en aceite y ajo con su correspondiente guarnición. ¿de postre? ¿Té o café señora? ¿O una insondable tarde mirando el mar con la tripita vacía de esta absurda viudez? ¿Qué prefiere?
Carmen Yáñez | Biarritz. 2020
Dossier
Correntes D’Escritas 31
Correntes D’Escritas 32
Disculpe…, ¿se puede?
Dossier
Alejandro Céspedes Todo el mundo parecía saber que el gran narrador Luis Sepúlveda había cultivado la poesía y que tenía obra escrita, pero casi nadie la había leído ni conocía el alcance ni el volumen de la misma. Acceder a los folios mecanografiados fue un acontecimiento que no olvidaré nunca: amarillentos, de la más diversa índole (desde un papel grueso y muy áspero hasta papel de seda), titulados a mano, y muchos de ellos con su firma estampada en la página que hacía de portada en cada colección de poemas. Se conservan algunos primeros poemas de juventud (a pesar de que la DINA quemó todo lo que encontró cuando violentó su domicilio), pero es su radical militancia política, la estancia en la cárcel y más tarde el exilio, lo que constituye el grueso del corpus poético de Sepúlveda. Fue siempre “un poeta de su tiempo” que tocó aquellos temas que importaban “al hombre”. Si algo caracteriza su poesía es una poderosa implicación social que ya se observa en los poemas iniciales y que más tarde adquirirá un firme compromiso político y una fortísima carga ideológica. Hasta en los poemas finales, en los que ya es visible un arraigado componente elegíaco y, a veces, también celebrativo en materia amorosa, se encuentra la preocupación por el papel que el ser humano juega socialmente. La obra poética que se conserva abarca un periodo muy amplio, desde 1967 a 1999, el último poema datado pertenece a ese año; si escribió alguno más a partir de ese momento – podría ser, a juzgar por el estado de los folios – no tiene fecha. Todo parece indicar que dejó de escribir poesía definitivamente o que decidió no preservarla. La poesía fue algo que conservó y cultivó en lo más hondo de su propia intimidad. Además de un buen número de piezas sueltas, la obra aparece perfectamente agrupada en colecciones temáticas – algunas muy breves, con solo tres o cuatro poemas – a las que pone título, fecha y firma.1 De los más breves podemos señalar: El cazador descuidado (1975); Arte poética (1976-1980) o Los versos del río (1980). De las colecciones un poco más extensas habría que destacar La semilla encendida. Poemas del exilio (1973-1978); Poemas del camino obligado (1977-1980, inconcluso); Balada del desorejado (1979-1982); Balada del ermitaño – el más extenso y del que hay varias versiones escritas con poemas recuperados de otros libros –, y Ejercicios para ser el poeta que yo era, sin datar, pero que con toda seguridad fue escrito en la década de los años ochenta del pasado siglo.
Igual que nos pasa a todos con las obras inéditas, a Lucho la suya también le parecía que estaba permanentemente inacabada. Fue curioso observar como poemas que aparecen dentro de una colección en un momento dado, vuelven a encontrarse más adelante en otra con diferente título. Trabajar con esta gran diversidad de folios mecanografiados y con múltiples versiones – además de con algunos manuscritos –, y discernir cuál habría sido el propósito del autor en todas sus diversas tentativas, ha sido un trabajo verdaderamente duro y de una enorme responsabilidad. Entre sus folios hay frecuentemente entre tres y cinco versiones diferentes de muchos poemas. Revisaba, cambiaba y volvía a cambiar… Sin duda esto ha sido lo más complicado del proceso de edición y selección en el que Carmen Yáñez, su mujer, me ha embarcado: resolver aquello que el propio Luis Sepúlveda dejó enmarañado, entrelazado en múltiples versiones con las que había que armar el mejor poema tomando lo más sobresaliente y adecuado de cada uno siendo fiel a la idea de su autor. Además de que solía firmar sus colecciones de poemas, tenía la costumbre de fecharlos, pero no lo hacía con las versiones sucesivas que iba corrigiendo o reagrupando, así que es imposible saber cuál fue la última ni la que él habría dado por definitiva, si es que lo hizo. Como ejemplo incluyo dos versiones de un mismo poema que titula de modo diferente: El hombre pregunta por el hombre y Teoría del conocimiento, una está datada y la otra, más moderna, no. Creo que merece la pena comprobar su proceso creativo. Lucho no perdía la ocasión de ironizar sobre los poetas con ese humor que formaba parte indisoluble de su identidad. Sin embargo, cada vez que aparecen en su obra las palabras Poeta o Poesía siempre empiezan escritas con letra mayúscula. En la última – y casi única – publicación que hizo de algunos de sus poemas2 comienza con un texto que titula Disculpe… ¿se puede? En él pide permiso a los poetas para “invadir la casa de la Poesía, género mayor donde los haya, hacia el que siento un respeto reverencial porque la Poesía y los Poetas son la médula de la literatura”. Lucho no necesitaba permiso para entrar, ha estado siempre intramuros. Ese vacío que voluntariamente dejó, y que de no haberlo hecho le hubiese procurado un lugar eminente dentro de la poesía chilena contemporánea, será muy pronto colmado, incluso desoyendo su deseo plagado de humildad que expresó por escrito en el texto de la mencionada
1 Los títulos de las colecciones de poemas se detallan aquí a título puramente informativo. El trabajo de edición aún no ha terminado y es muy posible que para la selección final de los poemas, debido a la forma de hacer del propio autor, se opte por organizarlos temática y cronológicamente sin atender a los títulos. 2 “Poesía senza patria”, antología, Guanda Editore. Parma. 2003.
Correntes D’Escritas 33
Luis no Porto de Gijón | 1998
Correntes D’Escritas 34
antología: “Estos poemas fueron elegidos al azar, tomados de varias polvorientas carpetas en los que reposan de un sueño que me parece justo”. Pues no, hermano, maestro, compañero, estás entre nosotros para siempre. Recuperar la obra poética de Luis Sepúlveda es un acto de total justicia.
Estos poemas forman parte del libro que reunirá la obra poética de Luis Sepúlveda, cuya edición y selección está realizando Alejandro Céspedes. Será publicado en Italia por Guanda Editore con motivo del primer aniversario de su fallecimiento.
Dossier
Génesis Se conocieron con todos los preámbulos del caso y con las porfiadas cicatrices que habrían de mirar como virtudes, talismanes tal vez, marcas de raza. Dudando si primero fue el huevo o la gallina. Convencidos, seguros, de que no son culpables porque él era hijo de emigrantes españoles, o bueno, no del todo, según decía en sus broncas aquella abuela vasca, y ella, cabizbaja, de mapuches y... bueno, no del todo, no vaya a pensar que la sangre de aquellos ascendentes no salpica. Es decir, se mintieron dulcemente. Se perdonaron todo, hasta las manos del cacique Galvariño que andaban por ahí matando moscas o borrando las piedras que don Pedro Valdivia insistió en escribir camino de los cerros. El hombre iba marcado por su erección atormentadamente y la disimulaba entre los pliegues en una imitación de Humphrey Bogart. Ella le tendió una trampa jurando que era amor porque así lo decían las novelas de Eduardo Zamacois. La mujer no pronunció grandes palabras, solo humedad y fiebre. Así y allí nació el primer insulto.
Se tomaron las manos se invitaron al cine justamente al ocaso. Entre sueños ajenos, entre aquellas penumbras alquiladas, empezaron a conocerse realmente. Hubo más tarde algún salón de baile, un tango orquestado por Discépolo, un turbio hotel repleto de recriminaciones antes de consumar la gran derrota de saberse tal cual imaginaron. Mi Padre contempló el espectro lacio de su orgasmo, y mi Madre una aureola de sangre. No sabía aún que entre las piernas guardaba ya una suerte de poeta. Y luego cada uno vio a sus dioses colgados del perchero. Y olvidaron hablar de futuras soledades maquillando el ser social ante el espejo. Mas tarde llegué yo, y no me quejo. Llegué con unos gramos de silencio que todavía van por ahí gritando sin saber bien si cantan o maldicen.
Correntes D’Escritas 35
Vía crucis de agua y de canelo Me tomaron una mañana verde cuando todo era agua y el agua era silencio y cuando el río daba carcajadas verdes. El humo azul del caserío izaba su presencia y el pan dormía su noche en barro cálido, la tierra ofrecía su cuerpo como joven pastora enamorada. El surazo trazaba una caligrafía inconcebible sobre las sorprendidas sementeras. Así era la mañana verde cuando me tomaron y me encadenaron junto a los elementos.
Una celda es un pequeño planeta donde los habitantes heredan los recuerdos. Comparten su presencia maltratada y te dejan su adiós de fusilado olvido. Y te dejan la fecha de su último interrogatorio y graban con las uñas los nombres de los verdugos. Y te dejan escrito el domicilio, el nombre de su mujer, algún encargo para el hijo escondido. De pronto se abren las puertas y los delatores te señalan con dedos temblorosos, con los ojos enormes como huevos, con palabras entrecortadas dicen -Ese es. Y el oficial les palmotea la espalda con desprecio. Entonces con las uñas escribes en el muro el nombre del traidor y le dejas tu herencia al próximo habitante del planeta. Alguien dice tu nombre y te arrastran, te hunden en el suelo, y la venda que ponen en tus ojos abiertos tiene ese fuerte olor inconfundible del compañero muerto. Cárcel de Temuco. Enero, 1974
Dossier
–Anda, corre, juguemos a la ruleta rusa... y golpe. –¡Ay! – se quejó el viento – Dónde están tus compañeros... y golpe. –¡Ay! – se quejó el trigo – Dónde escondes el rojo pensamiento... y golpe. –¡Ay! – se quejó el pino – Dónde están los otros guerrilleros... y golpe. –¡Ay! – se quejó el pájaro – Habla o traemos a tu hijo... y golpe. –¡Ay! – se quejó el río – Mi capitán déjeme botarle los dientes... y golpe. –¡Ay! Se quebró la palabra... Se quebró el tiempo.
Correntes D’Escritas 36
El hombre pregunta por el hombre
Dossier
(1ª versión) Toco mi pecho, esa superficie de montaña conocida, Palpo sus heridas, su olor lejano a flores, a jardines regados hace pocas horas. Toco mi boca, esta oquedad paladeada tantas veces donde nace la palabra justicia, el rito, el grito, el mito. Conozco su hendidura, carnes rojas que amansan y modulan el sonido del verso. Toco mis ojos, estas dos estrellas, pozos de luz profunda donde vive el río, el pájaro, el hijo. Adivino su brillo inquebrantable. Toco mis manos, estas pálidas arañas que caminan sobre el día, que traen el agua, el pan, el vino, el beso. Quiero su palpitar trémulo, su emoción de amantes Todo mi cuerpo está sobre mi cuerpo, puedo sentirlo entero, soy un espejo en el que veo distanciado mi propio ser caído en la mazmorra. Intento una llamada, una pregunta para saber si aún estamos todos y una voz que no es mía me responde presente. Un hombre se queja a mi lado y sé que no estoy solo. El dolor de todos es la única señal de vida. Cárcel de Chile. 1974
Correntes D’Escritas 37
Teoría del conocimiento (2ª versión posterior del poema anterior)
Toqué mi boca, la encendida oquedad que aún comparto con todo el que la quiera, en donde iba a nacer ingenuamente la palabra, el grito, el rito, el mito. Conocí su hendidura, el territorio modulante, los hemisferios de la voz que amasan el canto, el verso, el llanto. Toqué mis ojos, piedras alucinadas, pozos de luz profunda. Habitaba ya en ellos el río, el pájaro, el hijo. En la penumbra adiviné su brillo inquebrantable.
Toqué mis manos, las cálidas arañas que reptan sobre el día. Las que portan el agua, el pan, el beso, los materiales puros de la tierra. Desde siempre he amado ese palpitar trémulo, esa emoción de amantes sobre el alba. Todo mi cuerpo está sobre mi cuerpo. Cayó al fin. Lo supe por entero, como en la crueldad inconfundible de un espejo. Me supe condenado a la mazmorra, al temor, al alarido, y al sueño como única costumbre. Intenté una llamada para saber si estaba de pie sobre la vida, pero no salió sino gruñido. Hasta este momento únicamente obtuve por respuesta un cataclismo que bien pudiera ser solo mi sombra. Desde siempre muy cerca alguien se queja y no hay más soledad que la que está en su eco. Desde siempre se habitan los deseos, los dolores, con ellos voy uniendo piedra y piedra, y piedra sobre piedra, sobre piedra...
Dossier
Toqué mi pecho, superficie de montañas conocidas... Palpé las heridas venideras, aquel lejano olor a madreselvas, a jardines regados hace muy pocas horas. Recién supe que todo era mío en la orfandad absoluta de la aurora.
Correntes D’Escritas 38
Pasaje de ida
Dossier
Tengo ahora un pasaje azul para un tren negro que cruzará la gris campiña y el sendero verde. Tengo una noche, un café y una maleta que tomaré de las orejas para ordenar un poco mi archivo de intereses. Tengo la misma vieja serpiente remendada que muestro en cada feria cuando ofrezco mis versos. Tengo que subir con la disposición de bajarme, aceptar la idea absurda de estar llegando a veces cuando sinceramente no deseo partir nunca. Tengo un pasaje de agua que oxida mi cuchillo y ya no puedo romper el asfixiante paño de la noche.
Alejandro Céspedes (Gijón, Asturias, 1958). Licenciado en Filosofía y Ciencias de la Educación por la Universidad de Oviedo. Es una de las voces fundamentales de la poesía española desde la década de 1980. Ha publicado numerosas obras y obtenido importantes premios.
Amanecer en Europa Nada tiene un nombre ahora. Es curioso, pero apócrifas son todas las cartas que me llegan y anónimas son todas las palabras. Yo, tan joven, tan fuerte, tan río y selva arrastro ahora cansancios bautismales. Intento inútilmente reconocer las calles. Busco en libros deslomados alguna referencia. Indago añejas criptografías en busca de los perdido símbolos. Pero nada tiene un nombre ahora. A veces por costumbre me asomo al día y no sé cómo llamarlo. También a veces por costumbre busco el abrigo de la música y de los temporales de estrellas. Y tampoco sé cómo llamarlos. Es que nada tiene un nombre ahora. En alguna estación se perdieron las llamadas. Un extraño viajero extravió las valijas y se volvió la vida anónima y constante. Cobardes me resultan las voces que escupen sus mensajes, cobarde me resulto hasta yo mismo, cuando recojo las señales y estúpidamente las guardo para descifrar algún día. Nada, nada tiene un nombre ahora. Me rodea un gran silencio de gritos y de piedras. Y yo estoy solo, parado en medio de la aurora. Nada, nada tiene un nombre ahora. ¿Cómo escribirte entonces una carta y decirte que he llegado? Saint-Nazaire | 2008
Correntes D’Escritas 40
Lucho Manuel Alberto Valente para Carmen Yáñez e Daniel Mordzinski
Têm sido dias difíceis estes dias. Não gosto de apagar contactos no telemóvel e cada vez mais o meu telemóvel está cheio de mortos.
Dossier
O teu contacto dizia “Lucho” e, entre outros dados, tinha um número que quase nunca atendias. Talvez porque nesses momentos estivesses à conversa com o tal velho que lia romances que só eram de amor porque tu os escrevias. Ou voasses com aquela gaivota, que Zorbas ensinou a voar, sobre o porto de Hamburgo onde há muito foste feliz sem o saber. Ou estivesses na Patagónia, na Amazónia, nas muitas geografias onde o coração se perdeu e o sonho ganhou asas. Porque o mundo foi sempre a tua casa mesmo quando, em Gijón, frente ao mar, passeavas os cães e acreditavas que a palavra honra era invencível.
É por isso que não tenho a certeza de que tenhas morrido – pode ser mais uma das tuas invenções, das tuas histórias falsas, dos teus delírios de criador de fábulas. E, se assim for, que lição tiraremos desta súbita ausência e do silêncio que caiu de repente sobre nós? Lembras-te do dia em que Letelier escondeu uma peça do xadrez de Sarabia na piscina do Altis? Tu se calhar encontraste finalmente essa peça e foste devolvê-la ao Antonio, esteja ele onde estiver, como diria o Negro, e por lá ficaram à conversa, entre dois copos de vinho e um assado que não resististe a fazer. O meu telefone está cheio de mortos. Onde diz “Lucho” vou pôr “Mentiroso”. E continuarei a telefonar para esse número que nunca atendes, que nunca atenderás, simplesmente porque estás a escrever o fim da história. 18 de Abril de 2020
A história dirá um dia das histórias que inventavas, que todos sabíamos serem falsas, ou melhor, literatura em vida. Porque em ti as duas coisas se confundem - literatura e vida – e nunca se sabe onde uma começa e outra acaba.
Há no poema três referências que talvez devam ser explicitadas: aos romancistas Hernán Rivera Letelier (chileno), Antonio Sarabia (mexicano, já falecido) e Mario Delgado Aparaín (que entre os amigos é referido carinhosamente por El Negro, embora seja branco e uruguaio). O presente poema foi originalmente publicado no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, em 22 de Abril de 2020
Com Antonio Sarabia | Paris. 2001
Com Mario Delgado Aparaín | Póvoa de Varzim. 2011
Dossier
Correntes D’Escritas 41
Correntes D’Escritas 42
Correntes D’Escritas 43
‘amizade(s)’ | para Lucho Ondjaki
nem foi ontem nem foi perto | termos chegado ao mar a olhar e | quase mesmo em azul | devagar | isso de olhar e dizer e esperar | isso de rir e dançar ainda a quietar | nem foi pouco nem foi perto | do não dizer ou abraçar | ou de aos poucos deixar por dizer | que isso de falar | e de contar | tem um tempo onde não há e não-se-pode e tem um tempo | onde há | e se celebra devagar.
Dossier
Ondjaki | Póvoa de Varzim. 2007
Ondjaki nasceu em Luanda em 1977 e é um dos autores mais traduzidos da sua geração. É membro da União dos Escritores Angolanos. Os seus livros foram distinguidos com diversos Prémios entre eles, em 2013, com os transparentes, o Prémio José Saramago.
Correntes D’Escritas 44
Um pequeno milagre Maria do Rosário Pedreira
Dossier
Casei-me tarde e, até por isso, dispensei praias paradisíacas nos mares do Sul ou menus de trinta pratos no Ritz para celebrar a boda (que, de resto, se resumiu a assinar um papel na Conservatória e pôr a aliança no dedo na presença das mães e de mais duas testemunhas); mas nem assim deixei de ter direito a uma lua-de-mel fora do comum. Sabendo como sou dada às letras, o Manel fez-me uma proposta inovadora, de maneira a juntar o útil (para ele) ao agradável: passar esses dias de suposto idílio conjugal num festival literário. Chamem-me maluca, mas mordi o isco. Tratava-se de um encontro de escritores na cidade de Gijón, nas Astúrias; e, além de eu conhecer alguns dos participantes, a viagem incluía um bónus: um prólogo em Finisterra (aonde eu queria ir havia anos, mas nunca encontrara oportunidade) e um epílogo em Bilbao (para ver o Museu Guggenheim, que nenhum de nós dois ainda visitara). Mas, além disso, o anfitrião do festival era o escritor
Manuel Valente e Maria do Rosário Pedreira | Póvoa de Varzim. 2006
Luis Sepúlveda que, não querendo prescindir da presença do seu editor português no certame, antes que eu pudesse achar a ideia estapafúrdia resolveu convidar-me como poetisa, com programa e tudo (e, por sinal, bem bonito: dizer poemas à noite numa igreja, na companhia feliz de Ana Luísa Amaral e de Carmen Yañez, que lia as traduções). Portanto, se como recém-casados podíamos respirar antes e depois da literatura e, pelo meio, rever amigos de quem gostávamos e ouvir palestras interessantes (era um tempo em que os escritores ainda eram quase todos interessantes), como podia eu recusar? Conhecendo as minhas esquisitices, o Manel preparou-me, ainda em Lisboa, para o facto de o hotel de Gijón onde se instalavam os participantes do encontro não ser grande coisa. E, quando vi as três estrelas na fachada e encontrei a mulher de Tabajara Ruas de cabelo a pingar na recepção perguntando por um secador, pensei que a minha ideia de quarto em período de lua-de-mel não era exactamente aquilo. Mas não podia estar mais enganada… Aberta a porta da habitación que nos estava destinada, num corredor cujo soalho rangia sob os nossos passos, ficámos ambos boquiabertos: entre o mobiliário imponente a lembrar casas de avós em quintas de antanho, destacava-se uma sumptuosa cama de dossel (um pouco estreita, é verdade, mas que importância tinha isso para dois recém-casados magros como éramos?); e, outra boa surpresa, uma garrafa de champanhe mergulhada num balde em estanho cheio de gelo e um cartão desejando felicidades aos noivos da parte da organização do evento. Um must! Foi, está bem de ver, uma lua-de-mel inesquecível. Não, não passámos aqueles dias enfiados na cama como os mais malandros estarão a pensar (já disse que me casei tarde, ou não?), mas entre livros e amigos, que são o melhor que levamos desta vida. E, terminadas as funções festivaleiras, na véspera de levantarmos âncora e largarmos rumo a Bilbao, Luis Sepúlveda ainda nos convidou para um excelente churrasco em sua casa, no qual ele próprio grelhava uma série de carnes que, segundo me contaram mais tarde, fora também ele a comprar no talho e a cortar de uma forma especial que as tornava incrivelmente tenras e suculentas. Um verdadeiro chef e um repasto difícil de retribuir. E é justamente no retribuir que está o busílis... Um mês mais tarde, em plena Feira do Livro de Lisboa, Sepúlveda veio autografar os seus vários livros durante um fim-de-semana, acompanhado da mulher (a poetisa Carmen Yañez de quem falei acima). O Manel fez-me notar que deveríamos organizar um jantar para o casal em nossa casa, de preferência no sábado (o dia em que eu não tinha sequer quem me ajudasse a cozinhar); e acrescentou que Sepúlveda comia carne, que era para eu
Dossier
Correntes D’Escritas 45
Com Carmen Yáñez | Gijón. 2005
esquecer logo a ideia daquele bacalhau com natas que a nossa empregada faz tão bem e que podia ficar prontinho no congelador e só de lá sair no (mal)dito sábado... Toda a gente sabe que sou uma nódoa na cozinha (o primeiro bolo que fiz ferveu em vez de cozer) e que, ao contrário daqueles para quem a culinária é puro relaxamento, para mim é puro stress, pois se ponho uma carne a assar fico a olhar para ela todo o tempo que está no forno, com medo de que aconteça alguma desgraça se me afastar. Mas dei o meu melhor, juro, mesmo sabendo que o meu assado nunca teria o gostinho e a consistência das carnes deliciosas que Sepúlveda grelhara para nós em Gijón. Para compensar, porém, apliquei-me na confecção da sobremesa: uma mousse feita com um chocolate de boa marca, pouco açúcar, uma pitada de café em pó, um golinho de whisky e, a enfeitar, meia dúzia desses bombons maciços em forma de coração. Sepúlveda nunca foi de conversar muito comigo, o Manel é que era o seu amigo e editor há muitos anos. E nesse dia falou ainda menos, pois eu passei o jantar a levantar-me da mesa para ir à cozinha buscar ou trazer alguma coisa, para abrir mais vinho, para ir metendo a loiça na máquina não fosse ficar tudo para o fim da noite, para fazer os cafés, etc., etc. Fiquei, por isso, verda-
deiramente pasmada quando, à despedida, ele se virou para mim e rematou: – Rosário, tenho de te dizer que nunca comi uma mousse de chocolate tão boa como a tua. Esta não fingia que tinha chocolate, tinha mesmo! É possível que eu tenha corado, agora já não sei. O que sei é que, quando me lembro de Luis Sepúlveda, não é apenas o romancista, o contador de histórias, o excelente anfitrião, o organizador de quartos para noivos e o surpreendente chef de churrascos que recordo. É também a única pessoa que elogiou uma coisa que eu cozinhei, o que considero um pequeno milagre. E quem me dera poder voltar a dar-lhe a minha mousse de chocolate…
Maria do Rosário Pedreira (Lisboa, 1959) é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas. Depois de uma breve passagem pelo ensino, ingressou na carreira editorial, dedicando-se, sobretudo, à publicação de literatura portuguesa. Como autora, escreve poesia, ficção, crónicas e letras para fado e outras canções. Recebeu vários prémios literários e está publicada em antologias ou volumes independentes em várias línguas. Mantém desde 2010 o blogue sobre livros e edição Horas Extraordinárias.
Correntes D’Escritas 46
Escrever/viver José Luís Peixoto
Dossier
1
A grande maioria dos debates literários, tanto os que são tidos à volta de uma mesa, com ou sem microfone, como os que são trocados em páginas, papel ou internet, são velhos. O mistério de escrever e de ler existe há muitíssimo tempo, somos um segundo nos séculos de dúvidas que levanta. É comovente assistir a certas trocas de argumentos que, quando não são comparáveis a polémicas do século XIX, é porque são iguais a outras muito mais antigas. Há uma ingenuidade juvenil no debate inflamado sobre paixões literárias, mesmo quando é mantido por gente de cabelos brancos, óculos graduadíssimos, sinal exterior de muitas leituras, sinal clínico de miopia ou astigmatismo. Mesmo quando a literatura é um pretexto, quando o que está em causa são egos feridos, essa ingenuidade juvenil mantém-se: em pleno século XXI, adultos a tentarem agredir-se com premissas da crítica literária, referidas pela primeira vez por Aristóteles. Ainda assim, continua a valer a pena ressuscitar velhas polémicas. O número de golpes no boxe é limitado, o que não inviabiliza que a modalidade tenha milhares de adeptos. Continua a valer a pena repetir argumentos, há muita gente que nunca os escutou. A ingenuidade que mencionei não é sempre negativa, muito pelo contrário; depois de perdida, dá muito trabalho recuperá-la. Só os mais inteligentes, são capazes de tal façanha. Os mais primários transformam-se em cínicos e aí terminam a sua evolução. Só os mais sofisticados intelectualmente conseguem ser ingénuos por escolha e em consciência. Escrever/viver. A barra que separa estes dois verbos poderia ser um hífen. Esta barra significa alternativa e, no entanto, não é a mesma que divide o sim do não. Neste caso, “escrever/ viver” pretende significar que, muitas vezes, quando dizemos “escrever” queremos realmente dizer “viver”, e vice-versa. Ao mesmo tempo, podemos dizer “escrever” e estarmos realmente a referir-nos a “escrever”; assim como “viver” pode de facto ser “viver”. Adiante.
2
A última vez que estive com o Luís Sepúlveda foi nas Correntes d’Escritas, em 2020, o mesmo lugar onde nos conhecemos em 2002. Desta vez, participámos juntos num painel chamado “Era uma vez a liberdade”. Duvido que tenhamos sido capazes de não repetir algumas das muitas ideias que têm sido mencionadas ao longo dos tempos sobre este tema. Essa não era a condição fundamental, muito mais importante era a honestidade.
Escrever/viver exige princípios. Há os valores que são socialmente aceites, discutíveis voláteis, a mudarem ao longo de décadas ou ainda mais depressa do que isso e, depois, noutro nível, há os valores pessoais. Para escrever/viver, os princípios não são um capricho, são a própria estrutura. Assim, enquanto material de construção, as aparências são como aquelas compras em que o barato sai caro. À mínima intempérie, com a passagem de meia dúzia de invernos, cai-se no esquecimento, cai-se de facto, o edifício desmorona-se. Claro que é possível escrever/viver sem princípios. Às vezes, essa é até uma garantia de resultados rápidos. O berbicacho é que, logo a seguir, invariavelmente, quem incorre nessa prática sente-se uma fraude, não tem mais motivos para produzir obra do que a sua própria vaidade, o desejo de que lhe chamem senhor doutor em bibliotecas municipais. Ao mesmo tempo, considera que todos os que o rodeiam são um reflexo de si, também eles são fraudes e, assim, esvazia o mundo inteiro. Aquilo que outrora lhe pareceu sólido fica oco, como se tivesse sido devorado por térmitas, e cai, desmorona-se, cai no esquecimento.
3
Não tenho a certeza se somos nós que temos a memória ou se é ela que nos tem a nós. Esta última hipótese, embora menos habitual, faz igual sentido. O lugar onde existimos é muito menos concreto do que queremos admitir. Escrever/ viver assenta bastante nessa premissa. Existem as experiências, entregamo-nos a elas com todos os nossos sentidos, com toda a nossa paixão e, depois, existe o trabalho que exercemos sobre elas, como uma tentativa de organização. Esses dois momentos transportam uma profunda nobreza, sinónima do apreço pela sublime oportunidade de escrever/viver. Há o momento de sentir o sabor do vinho, possivelmente fechar os olhos, viajar nessa complexidade, nas memórias que desperta e, também, há o momento de pensar sobre esse sabor, de identificar fronteiras que define, de apreciar as palavras que o tentam descrever, como se elas próprias tivessem um sabor, e têm. Todos habitamos histórias. Não é preciso ter sido guarda pessoal do Salvador Allende para possuir histórias para contar. No entanto, esse currículo ajuda bastante quando nos sentamos à frente de público como o que enche o Cine-teatro Garrett, na Póvoa de Varzim, ou ainda mais quando, ao fim da noite, ficamos no bar do hotel, algum copo a servir de desculpa para estarmos ali, a misturar português e castelhano.
Dossier
Correntes D’Escritas 47
José Luis Peixoto | Gijón. 2002
Também assim foi muitas vezes em Gijón. Na casa da Carmen e do Lucho ou noutros lugares por onde espalhávamos a nossa boa disposição. Nessa história, o Ondjaki e eu éramos sempre os mais novos, abríamos os olhos para ouvir melhor. Temos essa memória, podemos visitá-la e, no entanto, ao chegarmos a ela, encontramo-nos, apercebemo-nos de que já lá estávamos, como se nunca tivéssemos saído, e é a memória que nos tem a nós.
4
O respeito por quem lê é uma forma de amizade. Utilizo aqui esta palavra, “amizade”, para me referir àquela relação antiga, que pressupõe confiança e fidelidade. Essa dedicação no ato de escrever/viver faz uma diferença que, em grande medida, escapa à análise literária mais convencional. Contudo, é percetível
e distintiva no tom com que se faz e diz e, por consequência, no modo como se recebe e interpreta. Por detrás da literatura, cenário ou horizonte, existe a comunicação entre seres humanos: de um lado, está quem pensou em dizer e escolheu criteriosamente a maneira de fazê-lo; do outro lado, está quem procura significados em todas as dimensões desse gesto expressivo. O vocabulário e a sintaxe não são os ingredientes exclusivos dessa troca. Um substantivo, qualquer um, por mais concreto e objetivo, é moldado também pela forma como é pronunciado. O tom é uma espécie de adjetivo implícito de tudo o que se diz. Nesse ponto, a amizade é determinante, mesmo que numa das suas inúmeras nuances. Provavelmente, esta é uma dimensão fácil de descartar no âmbito de um discurso mais árido, que não reconheça a generosidade
Correntes D’Escritas 48
Dossier
e a empatia como elementos do literário. Essa má vontade será reforçada no caso de existir dificuldade de lidar com sentimentos. Nesse caso, no entanto, não se estará a falar de escrever/ viver. Depois de ouvir Luis Sepúlveda em presença, não é difícil escutar a sua voz a ler-nos cada frase dos seus livros, até as traduções portuguesas. Nesse caso, escutamos os pequenos acertos chilenos de determinadas palavras.
5
E o mundo, claro. Não apenas as paisagens do Chile, a Patagónia ou o Deserto de Atacama, mas também essas, claro. Por exemplo, também a Alemanha de Nome de Toureiro, que continua a ser o meu romance preferido do Lucho. O mundo todo, o mais evidente e o menos evidente. Lembro-me de, há um par de anos, encontrar vários romances seus na prateleira de uma livraria na China. Os livros de autores estrangeiros mantêm na capa das suas edições chinesas o título e o nome do autor no idioma e alfabeto original. Por isso, consegui reconhecer os seus livros. Quanto dessa generosidade original chegará ainda aos leitores chineses? Mas também as Astúrias, como não podia deixar de ser, tanto as montanhas, como o Cantábrico, a aragem salgada. Mas também a Póvoa de Varzim, a vista do quarto de hotel, todo o Atlântico. Deixar as páginas escancaradas para o mundo é, neste caso, um sinal de edificá-las a partir da experiência, é escrever/viver. Como o vice-versa da memória, está por definir se somos nós que andamos pelo mundo, ou o contrário. A resposta a essa pergunta constitui uma dessas polémicas infinitas, talvez tema adequado para um painel que ponha os escritores a falar. Se me calhar participar nessa hipotética discussão, farei a defesa do mundo, claro. Lembro-me de termos estado juntos em Porto Rico, com Fajardo e a Karla. De certeza que há fotografias do Daniel Mordzinski desses dias. Já não sei qual foi o tema do painel em que participámos. O que teremos dito então? Será que ainda concordamos com o que dissemos?
Muito mais importante é a honestidade, referi há pouco e repito agora. Por todo o mundo, sempre nos lembrámos de Lucho: no ano passado, em Chaco, no norte da Argentina com o Mempo e a Natalia; antes, em Montevideo, com o Mario Delgado Aparaín; de todas as vezes que encontrava o Antonio Sarabia em Lisboa. Esse é o mundo. Toda a obra de Luis Sepúlveda nos repete que vale a pena escrever/viver.
6
Sim, repetimos argumentos. Esta admissão não nos envergonha ou diminui. Ridículo seria não ter consciência do nosso papel, não defender aquilo em que acreditamos. Esta admissão é um sinal de humildade. Não daquela humildade de trazer ao peito: gente que diz “x ou y é muito discreto” e que, no fundo, está a dizer que só entra em antologias ao lado de determinados nomes, faz uma criteriosa gestão, pergunta quem estará na mesa antes de aceitar o convite. Esta não é essa humildade, é outra. Esta humildade é uma forma de generosidade. Somos continuadores. Sim, somos um segundo nos séculos, tanto na escrita, como na vida, mas um segundo, quando bem aproveitado, pode ser bastante.
7
Muito obrigado, Lucho.
José Luís Peixoto é um dos autores com maior destaque da literatura portuguesa contemporânea cuja obra se encontra traduzida em mais de 30 idiomas. Estudada em diversas universidades nacionais e estrangeiras, é reconhecida pela crítica e pelo público tendo já arrecadado vários prémios
Correntes D’Escritas 49
Továrich Lucho En la primavera de 2006 nació en Gijón, sin pompa ni acta de fundación, la Brigada Toñanes y ese mismo verano comenzó nuestra sana costumbre de vernos en la Torre de Cameros para comer, charlar, beber, fumar, pasear y celebrar nuestros cumpleaños. Todo el que ha compartido tertulia en ese porche de piedra se ha sentido, con todo derecho, parte de un grupo en el que las narraciones orales de Lucho eran, junto a la tarta de limón de Emilia, el plato fuerte de cada fiesta. Ambas cosas, pasteles y leyendas, mejoraban de una vez para otra y Alfonso y yo nos seguimos preguntando, admirados, cómo puede ser que cada año multiplicasen tanto el resultado si los ingredientes eran siempre los mismos, para el hojaldre y la crema como para los relatos sobre la revolución sandinista, los cuerpo a cuerpo contra los nazis refugiados en Chile o el secuestro en Moscú. *** El gobierno de la Unión Soviética inauguró en 1967 el hotel Rossía, el más grande del mundo, en el corazón de Moscú. Destinado a albergar a dirigentes e invitados ilustres, disponía de 4.000 plazas junto al Kremlin y la Plaza Roja. Cuarenta años después, el 1 de enero de 2006, comenzó el derribo de sus veinte plantas y con ellas desparecieron miles de historias y recuerdos. Tras años de proyectos fallidos, el espacio se recuperó como zona verde con el antiguo nombre del barrio, Zariadie. Cinco semanas antes de que el hotel cerrara definitivamente sus puertas, Lucho llegó a la entrada principal del Rossía con un elegante abrigo negro que parecía suficiente para un final de octubre ruso. Cuando la recepcionista leyó su nombre en el pasaporte le preguntó si de verdad era el autor de Un viejo que leía historias de amor. – Da! – le contestó riendo y enseguida se formó un corrillo de empleados tras el mostrador. Además de la documentación, le tocó firmar varios autógrafos y mientras subía a la habitación 1007 fue jaleado por algunos huéspedes. – ¿Contrataste actores para hacerme sentir famoso? Era la primera vez que Lucho viajaba a Rusia a presentar un libro y aún no sabía que su popularidad superaba a la de muchos habituales del circuito editorial ruso. *** A juego con su abrigo, su portentosa cabellera azabache también parecía suficiente para las temperaturas del otoño pero,
al caer la tarde, un viento polar hizo evidente la necesidad de ponerse gorro. La primera shapka que se probó Lucho – hoz, martillo y estrella incluidos – parecía hecha a medida y caminó hasta el mausoleo de Lenin con la seguridad y la emoción de quien parece volver a un lugar nunca olvidado. Los actos programados para presentar sus ediciones en ruso – acababa de aparecer la traducción de Desencuentros – coincidían con la inauguración de Las dos orillas, primera exposición de Daniel Mordzinski en Rusia. La asistencia a todos ellos fue abrumadora – acudieron los músicos de rock gótico Trepanga, el espía Oleg Necheporenko, Marek Halter y hasta el ministro de Cultura, Sokolov – y al final de una de las charlas, cuando Lucho ya había terminado de firmar ejemplares, se le acercó un muchacho de unos veinte años que se le quedó mirando con las manos en los bolsillos. Ambos guardaron silencio durante unos instantes. – Továrich Lucho, de parte de Svetlana – y tras darle un sobre tamaño tarjeta postal se marchó. Lucho lo dobló sin decir nada y se lo guardó en el bolsillo. Después nos fuimos a cenar al café Pushkin y la noche terminó con brindis, risas, viejas anécdotas y un paseo hasta el hotel con las imprescindibles paradas de alabanza a algunos monumentos locales: el edificio de Correos, la estatua de Marx, el Museo de Historia, los almacenes GUM, la catedral de San Basilio. *** En el espacio de cuatro días a Lucho le tocaba dar una rueda de prensa, presentar sus libros, inaugurar veinticinco años de fotinskis, ir a la televisión estatal, a tres emisoras de radio, a un encuentro con bibliotecarios y al desvelamiento de una estatua en memoria de Kim Philby (su viuda, Rufina Pújova, cuenta en sus memorias que al morir, en la mesilla del legendario espía británico había una carta inacabada a Lucho donde le proponía Nombre de torero como título para una novela). Incluso con esa agenda sacamos tiempo para una escapada que habíamos planeado mucho antes de su viaje: llevar un puñado de claveles rojos a la tumba de Mayakovski en Novodiévichy. El paseo por el cementerio más literario de Rusia fue un tiovivo de emociones encontradas. Eisenstein y Chéjov comparten reposo eterno con Kropotkin y Ludmila Pavlichenko, con Gógol y Victorio Codovilla. Al salir teníamos la cabeza llena de referencias y anécdotas pero de golpe Lucho me miró fijamente, con gesto grave: – Llévame a la Lumumba. Aunque sea diez minutos.
Dossier
Víctor Andresco
Dossier
Correntes D’Escritas 50
Luis no Cemitério Novodievichy em Moscovo | 2005
Improvisé un pretexto para retrasar la visita a la Biblioteca de Lenguas Extranjeras y bajamos al metro para evitar el espeso tráfico rodado de aquellos años. Hasta llegar al planeta Lumumba, como lo llaman quienes estudiaron allí, fuimos charlando animadamente pero cuando Lucho vio la explanada y la fachada principal de la universidad, con su famoso mural del mapamundi azul, se quedó en silencio. Nos separamos sin decir nada y durante unos instantes se quedó fumando en uno de los bancos con la mirada perdida. – ¡Listo! ¡Regresemos al mundo! – bramó de golpe, dando por terminado su recogimiento, y recuperamos a buen paso la boca de Yugo-Západnaya. Nunca más mencionamos el episodio. *** Imaginé que Lucho había tenido suficiente contacto con escritores, admiradores y artistas durante su estancia y le propuse que cenásemos en casa, algo sencillo y sin protocolo. Invité a Volodia, un viejo amigo, para que pudiera conocer a un ruso de a pie, sin filias culturalistas ni fobias editoriales. Esa noche Daniel fue testigo de los efectos curativos de las plantas cuando se combinan sabiamente con alcoholes naturales. Siguiendo la tradición rural, cultiva y embota pepinillos, remolacha y tomates en su dacha de
Kubinka, en la carretera de Smolensk. De sus rituales, sin embargo, el más sagrado es el destilado anual de vodka. Utiliza centeno y patata, al estilo bielorruso y polaco, y le añade toques de limón, pimienta o arándanos. Ni Volodia había leído a Lucho ni Lucho sabía nada de este marino en la reserva pero yo estaba seguro de que encontrarían temas de conversación fuera de la liturgia editorial y las consabidas preguntas de los periodistas. Hizo falta muy poca traducción para que ambos, Volodia y Lucho, coincidieran en la grandeza de la naturaleza, en la dureza de la posguerra mundial y en la universalidad de la música. Antes de abrir la tercera botella los cuatro cantábamos Luis Emilio Recabarren. Lo único malo, que también fue lo mejor, vino un rato después. Eran casi las tres de la madrugada, nevaba con furia y descartamos una caminata tranquila por el viejo Arbat. Apenas circulaban coches pero paramos la primera tachka que pasó por el Bulevar de los Jardines. En 2005 los rusos todavía se sacaban un sobresueldo suplantando a los escasos taxis con sus coches particulares. – Hotel Rossía – le indiqué al hombre, dándole trescientos rublos para no perder tiempo regateando. Lo que debía ser un trayecto de quince minutos se convirtió en una tenebrosa pesadilla que, además, dio origen a uno de los más famosos relatos de Lucho, La noche del secuestro.
Correntes D’Escritas 51
En las sucesivas versiones que hemos escuchado a lo largo de los años, Lucho descubrió el intento de secuestro cuando vio que rodeaban la torre de comunicaciones de Shújov, uno de los más bellos ejemplos de arquitectura de las comunicaciones de los años 20 pero innecesariamente alejada del trayecto lógico al centro de la ciudad. – Bashnia Shújova niet, Rossía! – le indicó con firmeza al conductor. A Daniel le extrañó que Lucho se manejase con esa soltura en ruso. – Aquí vivía el decano de mi facultad cuando estudié en la URSS, conozco bien la zona. Como vio que continuaban hacia el sur sacó su teléfono y llamó a la Embajada alemana en Madrid, donde le ordenaron esperar mientras conectaban con sus colegas en el consulado de Moscú. Mientras tanto el Lada Zhigulí avanzaba a toda velocidad por Shábolovka, Lucho le puso el teléfono en la oreja y a los pocos segundos el hombre frenó en seco sobre el asfalto helado. Giró de inmediato y recorrieron el trayecto inverso sin mediar una palabra hasta llegar al hotel. Lucho nunca nos dijo la cantidad exacta que costó la gestión pero nos consta que le llegó una factura por los servicios consulares de emergencia. Víctor Andresco na Praça Vermelha de Moscovo | 2005
*** Nos despedíamos ya con un abrazo ante el control de pasaportes del aeropuerto de Domodiédovo, con la promesa de reencontrarnos en Gijón en el siguiente Salón del libro Iberoamericano, cuando apareció Volodia, sofocado y sonriente: – Továrich Lucho, na pámiat. De recuerdo, el marino jubilado le entregó un fardo mal envuelto en papel de estraza del que salió una enorme bandera de terciopelo rojo. – La cosieron mis abuelos para el soviet de su fábrica de Kubinka en 1941. Sobre el escudo de la URSS, primorosamente bordado con hilo dorado, la frase principal dice Ni un paso atrás. *** Poca gente sabe que Lucho estudió unos meses en la URSS con una beca de la Universidad de Amistad entre los Pueblos Patricio Lumumba. Su año de preparatoria se interrumpió antes de lo previsto – nadie conoce la verdadera razón – y al regreso a Santiago conoció a Carmen y poco después se casaron por primera vez. Hace unas semanas la periodista Pilar Granda me envió desde Moscú un reportaje sobre la muerte del decano Starodúbov,
símbolo del internacionalismo soviético desde los años 60. En las imágenes que repasan su biografía aparece junto a Fidel, Gagarin, Nierere y Ho Chi Min. Entre las familiares, junto a su esposa Svetlana, su hija y sus nietos. El menor de ellos es, sin duda, el muchacho que le entregó aquel sobre a Lucho en octubre de 2005. Tirando de ese hilo hemos sabido que Lucho había llegado por primera vez a la URSS el día que comenzó la construcción del gigantesco Rossía y que los Starodúbov – Guenadi y Svetlana – convivieron desde entonces, cada uno a su manera, con el recuerdo de aquel estudiante chileno de melena portentosa y versos delicados. Hoy en el solar del hotel hay uno de los más hermosos parques urbanos del mundo. La gran bandera de terciopelo rojo y letras doradas sigue en su estudio de Gijón. Los de la Brigada Toñanes vamos a seguir celebrando su cumpleaños, fumando habanos, comiendo la tarta de limón más rica del mundo y recontando sus historias, crecederas como su recuerdo: cada vez más grande, cada vez mejor.
Víctor Andresco (Madrid, 1966) es escritor y dirigió el Instituto Cervantes de Moscú entre 2004 y 2008. Actualmente es director del centro de Dublín (Irlanda).
Dossier
***
Correntes D’Escritas 52
Luis Sepúlveda a orillas del rio de la vida
Dossier
José Manuel Fajardo Conocí a Luis Sepúlveda hace veintisiete años, tres después de publicar yo mi primer libro y sólo unos pocos meses después de que su novela Un Viejo que Leía Novelas de Amor fuera publicada en Francia. Desde entonces, nuestra amistad creció en paralelo al desarrollo de nuestras literaturas, lo que me ha permitió ser testigo del fulgurante y extraordinario éxito que sus obras obtuvieron en el mundo entero. Un éxito rotundo, sin paliativos. A la antigua, es decir, fruto del entusiasmo espontáneo de los lectores, no de los planes de ningún departamento de marketing. Unos lectores que lo acompañaron fielmente hasta el último momento, hasta el día de su muerte, el 16 de abril de 2020, en plena pandemia del Covid-19. En esos veintisiete años, Luis Sepúlveda se convirtió en una referencia obligada de la literatura en lengua española de nuestro tiempo. Recibió distinciones, protagonizó debates y cosechó millones de lectores. Creó festivales literarios y colecciones literarias, escribió guiones de cine y dirigió películas. Fue reconocido por la crítica y por los lectores. Y en algunos países, particularmente en Italia, se convirtió en un autor famoso, con esa fama que trasciende el dominio de la lectura para entrar en el del conjunto de la sociedad. Un autor al que la gente paraba por la calle para saludarlo, como si fuera un actor de Hollywood. Algo que no es frecuente en el mundo de la literatura. Su figura era imponente, alto, fornido, con una negra mata de pelo indiferente al paso del tiempo, huella de la sangre mapuche que corría por sus venas, la voz grave, el gesto firme del hombre de ideas y la sonrisa explosiva del bon vivant; todo ello ofrecía del autor una imagen reconocible, que mezclaba convivialidad con un cierto retraimiento. Cuando se le veía por primera vez, uno tenía la sensación de que podría irse con él a tomar unas copas y a dar cuenta de un buen chuletón de buey a la brasa, pero también de que había una parte de su vida y de su carácter a la que difícilmente se tendría nunca acceso, de no mediar una amistad profunda. Y esa combinación de proximidad y distancia, de empatía y ensimismamiento, era la que hacía que la personalidad de Luis Sepúlveda fuera en cierto modo un misterio. Como un misterio fue el triunfo apoteósico de su obra. ¿Qué hace que un libro, más aún, una obra entera, despierte el entusiasmo de millones de personas? No hay respuesta clara para esa pregunta. Y los alquimistas del marketing, que se han hecho con el control mayoritario del mundo editorial, se esfuer-
zan en vano en encontrar la fórmula lanzando libros al mercado como si fueran productos cosméticos, sin lograr, cuando logran algo, más que éxitos fugaces, esplendores de ventas que duran un cierto tiempo y se desvanecen. Porque los verdaderos éxitos literarios, los que perduran y van más allá de un libro, siguen siendo hijos de los lectores, no de los directores de marketing. Por desgracia, el esfuerzo de éstos últimos por dar con la fórmula mágica está desertizando el panorama literario en su apuesta suicida por exigir a cada libro publicado la condición de best seller (¿hace falta explicarles que sin libros de venta normal no existiría el término de superventas, que un best seller sólo lo es en relación a la gran mayoría que no lo son?). Por fortuna, la obra de autores como Luis Sepúlveda, Javier Cercas, Rosa Montero o Mario Vargas Llosa mantiene viva esa otra manera de conseguir el éxito: mediante una sagrada alianza con los lectores que no pasa por el dinero, sino por la literatura. Sin embargo, yo sospecho que en el caso de Luis Sepúlveda la razón del éxito de su obra se encuentra en el propio misterio de la personalidad del autor. Porque en la literatura de Sepúlveda vida y obra están mezcladas de una manera indistinguible. No quiero decir con ello que la obra de Sepúlveda sea autobiográfica. Tampoco que practique la llamada auto-ficción. La suya es una tercera vía a la que, si hay que buscarle una referencia en el acervo de la historia de la literatura, podría vincularse con la obra y la figura de Ernest Hemingway. Un autor por el que Luis Sepúlveda sentía devoción y con el que compartía muchas cosas: la apuesta por una escritura desnudada de manierismos, la preocupación por los problemas sociales y políticos de su época, la defensa de un heroísmo cívico frente al poder establecido. En definitiva: una escritura impregnada de una pasión de vida. Los héroes de las novelas de Sepúlveda son héroes desgarrados. Ya sean detectives como el Juan Belmonte de Nombre de torero, delincuentes como el asesino de Historia de un killer sentimental o antiguos revolucionarios como los protagonistas de La sombra de lo que fuimos. Bordean la línea de la ley, a veces de un lado, a veces del otro, conscientes de que justicia y ley no sólo no van siempre de la mano sino que, en no pocas ocasiones, son términos antitéticos. Eso hace de la escritura de Sepúlveda una puesta en cuestión ética de la realidad, una literatura moral que, sin embargo, no resulta moralizante porque partía de la autocrítica de los propios errores cometidos por aquellos que
Grupo de escritores e editores durante os 50 anos de Luis. Sentado à esquerda: Jorge Sepúlveda | Gijón. 1999
Com Vittorio Gassman | Trieste. 1996
Dossier
Correntes D’Escritas 53
Dossier
Correntes D’Escritas 54
Pormenor da sua biblioteca e gabinete de trabalho | 2019
se han enfrentado al poder establecido, porque se acompañaba siempre de humor e ironía y porque nunca perdió de vista la dimensión humana de sus personajes, en el dominio de la ficción, ni la memoria de los gestos de dignidad y solidaridad acumulados por la Historia, en el dominio de la vida. Por ello creo que bien se puede describir su escritura como el fruto de una visión optimista de la Humanidad, pero eso sí, de un optimismo escarmentado. La ficción fue la gran herramienta con la que Luis Sepúlveda moldeaba la realidad de una vida que muchas veces le disgustaba. Sus ficciones eran el territorio en el que las injusticias son reparadas, los crímenes, vengados; los dolores, vencidos; la soledad, compartida. Sus ficciones mejoraban el mundo y, al hacerlo, nos decían que el mundo es mejorable. Anticipaban premonitoriamente la realidad. Tiraban de ella. La impulsaban. Son ficciones contagiosas, que entusiasman y calientan el corazón. Y lo hacen porque el propio autor se sumergía en ellas como un nadador y las abanderaba en su propia vida, apoyando causas, ejerciendo la crítica, reclamando los sueños y limpiándolos de la escoria de la mezquindad y del tiempo, con los escobazos certeros de sus argumentos. ¿Cómo no iba a cosechar lectores? En Patagonia express, uno de los libros de Sepúlveda que más me gustan y en el que la vecindad entre su literatura y su vida es más patente, se afirma, hablando de las gentes de esa Patagonia geográfica y sentimental protagonista de buena parte de su literatura, que “en esta tierra mentimos para ser felices. Pero ninguno de nosotros confunde la mentira con el engaño”. No creo que haya una definición más afortunada de lo que fueron la actitud de Luis Sepúlveda ante la vida y ante la escritura literaria: Crear ficciones que no engañan, sino que se convierten en una paradójica forma emocional de conocimiento. Mentiras verdaderas frente a los engaños del poder. Claro que para lograr oponer esas ficciones a los engaños del poder hay que saber enraizar la escritura en el mundo. Extraer de la savia del planeta la fuerza que nutra la imaginación. Y Sepúlveda demostró tener un oído fino para escuchar las voces del mundo. Por lejanas, pequeñas, débiles, ocultas u olvidadas que fueran. La voz de la Amazonia, por ejemplo, resuena en las páginas de Un Viejo que Leía Novelas de Amor. Una voz que tuve la suerte de poder escuchar en el gran teatro de Trieste, en boca de Vittorio Gassman el 4 de octubre de 1996, cuando éste leyó un breve texto que Sepúlveda había escrito expresamente para él, titulado Noche en la selva aguaruna. Gassman leyó el texto en el silencio de un teatro en penumbras convertido en ribera amazónica por la magia de las palabras, y su voz se tornó en la voz de Sepúlveda, y la de Sepúlveda en la voz de todos los presentes, cuando decía: “No conozco a ese hombre que se detiene a la orilla del río, que respira hondamente y sonríe al reconocer los aromas que viajan en el aire. No lo conozco, pero sé que ese hombre es mi hermano”.
Esa fraternidad contagiosa de su literatura es el secreto de su éxito. Sepúlveda era un explorador de la experiencia humana que sabía escuchar a orillas del río de la vida las historias de otros que éste la traía y, filtrándolas a través de su imaginación, darles la voz pública de la que tantas veces carecen. En la presentación de su libro Historias marginales hablaba de su visita al antiguo campo de concentración de Bergen Belsen, en Alemania, y de la inscripción que uno de sus reclusos dejó grabada en la superficie de una piedra: “Yo estuve aquí y nadie contará mi historia”. Sepúlveda se encargó de que esa trágica profecía no se cumpla, porque él estaba dispuesto a contarla, aún sin conocerla. Estaba dispuesto a reinventarla, a recrearla en el territorio de la ficción para convertirla en una mentira verdadera, para nombrar aquel dolor cierto mediante una historia imaginaria. La empresa literaria de Luis Sepúlveda estaba, pues, inevitablemente abierta al mundo. Nacía de su condición de chileno, hijo de un país vertical que se hunde hacia el sur en el continente americano, como poderosa metáfora de introspección, pero es también un hijo exiliado por el horror de una dictadura, un peregrino de la libertad que fue haciendo amigos en otras tierras. Su literatura tenía que tener, lógicamente, un rasgo apátrida. No hay frontera política que él no se saltara. Sus preocupaciones no sabían de pasaportes. Su propósito era el de un pan-humanismo que encontró justo eco en un reconocimiento mundial a su obra. No en vano contribuyó con un relato a un libro cuyo título es casi una declaración de principios y cuya estructura refleja esa permanente apertura hacia los otros en la que se incluye también el diálogo con los autores de su tiempo: Cuentos apátridas. Una obra colectiva en la que, junto a Sepúlveda, tuve la suerte de participar en compañía de otros tres autores: el colombiano Santiago Gamboa, el mexicano Antonio Sarabia y el vasco Bernardo Atxaga. Si la escritura de Sepúlveda supo dar cuenta de la sombra de lo que fuimos, también sigue siendo hoy un potente foco que proyecta la luz de lo que seremos. Un lugar en el que vida y ficción se dan la mano. Una experiencia de creación literaria que es compartida por millones de lectores, aunque él ya no esté entre nosotros. La gran mayoría de ellos nunca llego a conocer personalmente a ese hombre que se sentaba cada día ante la mesa de trabajo, escribía incesantemente y sonreía al reconstruir las historias que viajan en el aire, pero todos ellos saben que ese hombre era su hermano.
José Manuel Fajardo es un escritor, periodista, traductor y gestor cultural nacido en Granada (España) en 1957 y residente en Lisboa. Autor, entre otras novelas, de Carta del fin del mundo, El Converso y Mi nombre es Jamaica.
Dossier
Correntes D’Escritas 55
Correntes D’Escritas 56
Los hermanos Grim y el maravilloso rescate de Luis Sepúlveda en Guantánamo Mario Delgado Aparaín
Carta N° 16
Dossier
Prof. Dr. Segismundo Ramiro von Klatsch Tortitas, Patagonia Distinguido y admirado profesor: debo confesarle con pesar que últimamente he estado un tanto molesto con usted, por no haberme invitado a compartir su temerario viaje a Bagdad. Esta incómoda situación se hubiese evitado, de haber convencido a su amigo Luis Sepúlveda, de que no fuera a Irak a presentar su libro Historia de una ballena blanca, recién traducido al árabe mesopotámico. Resulta insólito que, antes de aceptar la invitación para dar a conocer la obra en el principal sótano cultural de Bagdad, no lo hubiesen alertado que los lectores de esa nación jamás han visto una ballena blanca, ni siquiera en una de las caprichosas fotografías que Daniel Mordzinski suele publicar en los folletos de Animal Planet. Apenas si algunos científicos de ese árido mundo, se vanaglorian de haber encontrado en el valle del Cáucaso, los restos óseos de un cetaceus rex, una ballena del pleistoceno tardío, tal vez arrastrada desde el mar Báltico por algún mamut agobiado por la irritante soledad de la época. Para colmo de males, egregio maestro, el lanzamiento del libro fue un rotundo fracaso. Dígame usted quién, con un poco de sentido común, no podía sospechar que Ali Hussain Shaabaan y Jihad Ahmad Diyab, los intelectuales sirios que acompañaron al autor chileno en la presentación del libro, estaban bajo estrecha vigilancia del servicio secreto yanqui-iraquí, al mando del obsesivo coronel Mohamed el-Zalame, dispuesto a secuestrarlos en el momento menos pensado. Y como era de esperar, así ocurrió. Un comando de elite iraquí, ingresó pateando sin miramientos a diestra y siniestra, los almohadones floreados del sótano repleto de ávidos lectores y sin mediar palabras, ni siquiera las que se acostumbran con los negros detenidos a garrotazos en Birmingham, aquello de “¡suelten los libros y pongan las manos
en la nuca donde pueda verlas!”, los encapucharon a los tres en la misma mesa literaria, a empujones los llevaron en un camión blindado al aeropuerto de Bagdad y sin cenar, bañarse y ni afeitar, los embarcaron en un Hércules 130, que los llevó en un vuelo sin escalas hasta la prisión de Guantánamo en la lejana isla de Cuba. En la Carta N°17, que me trajo el cartero Miguel Strogonof desde la Patagonia, usted querido profesor, transcribe la conversación premonitoria que mantuvo con don Luis en el Babylon Hotel de Bagdad. Acodados entre los escombros del bar mientras bebían un espirituoso té verde, el maestro le habría dicho con esa voz ronca y arenosa que lo caracteriza: “Profesor von Klatsch, si por esos azares del destino, me pasara algo imprevisto en Bagdad, trate de comunicarse con los hermanos Grim y dígales que la contraseña en este asunto será Guantanamera. Solo eso. Ellos entenderán y sabrán qué hacer”.
Carta N° 18
Tratando de responder a su requerimiento, distinguido profesor, recorrí el norte argentino buscando a los mellizos Grim, hasta que los encontré participando en el Festival de Payadores Postmodernos, que realiza todos los años nuestro colega y amigo Güendolyn Giardinelli en el Arena Resistencia Park del Chaco. En un encuentro secreto en los camarines de la carpa, les participé a Caín y Abel de la misión casi imposible que debíamos afrontar, con riesgos hasta de perder la vida: rescatar de una siniestra prisión del Caribe “al Lucho”, como le llaman ellos al progenitor de sus vidas, condenado a perpetuidad por introducir en Irak material antinorteamericano, disfrazado de literatura para niños. Luego de llorar chillando, como suelen hacer los mellizos desconsolados cuando le quitan el chupete, los Grim ya más calmados, dijeron al unísono, “sí, profesor, es nuestro deber”. Y sin más trámite se entregaron a planificar el rescate que fue, estimado profesor, de una osadía inusitada. El vehículo que los llevaría al destino secreto, sería un globo aerostático
Correntes D’Escritas 57
Com Mario Delgado Aparaín. Póvoa de Varzim | 2011
diseñado por Caín Grim con la ayuda invalorable de Güendolyn Giardinelli, quien, como usted y yo sabemos, es descendiente y heredero de Jacques Montgolfier, el inventor de estas aeronaves infladas con humo de leña de monte. Es decir, con helio. En un discreto descampado en las afueras de Resistencia, equiparon la barquilla del globo con camas, sillas de junco estilo bauhaus con cinturones de seguridad, una kitchenette con parrilla para hacer hamburguesas a las brasas y un placard para los instrumentos musicales, los catalejos de alta definición y el cuaderno de bitácora para registrar las últimas hazañas de los hermanos Grim. Y nada más. Solo restaba embellecer el globo, al que bautizaron Arcobaleno, mientras lo pintaban con los alegres colores de la diversidad. Antes de elevarse y partir bajo el cielo estrellado de la madrugada, los mellizos Grim se familiarizaron con la carta esférica aérea, que les permitió volar sin zarandeos preocupantes sobre la costa atlántica, mientras tomaban mate y tarareaban tangos optimistas, alternados con melancólicas sambas de la Pampa. A medio camino, ya sobre la inmensidad del Amazonas esplendorosamente verde y casi siempre incendiado, tuvo lugar un notable gesto de hermandad, que registraron en el cuaderno de bitácora. Ocurrió cuando divisaron una aldea de indios guanabaras que celebraban los quince años de la hija menor del jefe y Abel, para amenizarles los festejos, tuvo la feliz idea de dejarles
caer una de las diez botellas de vino Yauquen Chardonnay de Mendoza que llevaban en la barquilla. Un gesto que los guanabaras agradecieron con una algarabía desaforada, agitando las manos, las lanzas y las cerbatanas con dardos venenosos de cazar bolsonaros vivos, detestables depredadores que, desde los tiempos de Álvarez Cabral, le hacen la vida imposible a la amazonia indígena. Recién los guanabaras aplacaron las interminables demostraciones de cariño, cuando el globo multicolor pasó sobre ellos y se perdió de vista en dirección a las Guayanas.
Carta N° 20
Egregio Prof. Von Klatsch: cuatro días más tarde, el Arcobaleno ingresó en el espacio aéreo que debía ser cubano y que hasta ahora no tiene miras de serlo. A un centenar de metros más abajo, ante los ojos azorados de los hermanos Grim, estaba la terrorífica prisión de Guantánamo, albergue de centenares de secuestrados en el oriente asiático. Entre ellos, los intelectuales sirios que presentaron la Historia de una ballena blanca en el sótano cultural de Bagdad y también el mismísimo autor chileno del famoso libro. Ante la mirada inquietante de los ciento cuarenta y ocho marines que montaban guardia en las torres de vigilancia, El Arcobaleno comenzó a descender lentamente hasta mantenerse estático a un metro del suelo de la prisión. Veinte minutos que a Caín y Abel
Dossier
Correntes D’Escritas 58 se le hicieron eternos, si no fuera por la imprevista aparición de la autoridad máxima de Guantánamo. Se trataba del comandante Anthony Benny Colgate en uniforme de fajina, decidido a interrumpirle el paso al prisionero trescientos treinta y tres, que, seguido de los dos sirios de Bagdad, pretendía acercarse al Arcobaleno que flotaba descaradamente en medio del patio. El prisionero trescientos treinta y tres, fijó sin piedad su hipnótica mirada de fuego mapuche, en los ojos cargados de maldades de Afganistán del comandante Colgate, hasta que logró ablandarlo y convertirlo en un indefenso y triste killer sentimental. En un arranque de melancólico razonar, con lágrimas en los ojos, aquel rubio intenso, padre de tres niñas de madre cherokee, que esperaban su pase a retiro en una apacible granja porcina de Arkansas, le preguntó con el tono tristón de quien ha perdido demasiadas guerras: “¿Qué será de nosotros el día de mañana, míster Sepúlveda?”. Como si hubieran mantenido una confianzuda amistad a través de los barrotes de la celda, el prisionero trescientos treinta y tres, que no era otro que el autor de Historia de una ballena blanca, le respondió con trémula firmeza: “¿A mí me lo pregunta, comandante? Ya es hora de que ustedes se las arreglen como puedan. Pero le adelanto que, de mí, no esperen ninguna colaboración”. Sin perder más tiempo, “míster Sepúlveda” seguido de sus dos compañeros de infortunio, saltaron con sorprendente agilidad al interior de la barquilla. En la inmensidad del patio cercado por alambradas de púas electrificadas, apenas si se escuchaba el ronroneo del piloto automático que mantenía al Arcobaleno en posición estable. Fue entonces, ya con los liberados a salvo, cuando Caín abrazó su Com Mario Delgado Aparaín. Toulouse | 1999
rebelde guitarra española y Abel su cariñoso charango de Jujuy, para entregarse a ejecutar aquella versión libre para payadores de Guantanamera, que comenzó a ser tarareada por los guardias armados desde las torres de vigilancia. Cocinados a fuego lento por el sol del Caribe, los marines batían palmas con entusiasmo, pero era evidente que no entendían un carajo de la letra improvisada por los Grim en la barquilla del globo, pronto a despegar. (los guardias a coro) Guantanamera guajira guantanamera Guantanameeera, guajira guantanamera (Caín) Somos mellizos sinceros que no persiguen la fama Y antes de morir, queremos librar los hermanos del alma (los guardias a coro) Guantanamera, guajira guantanamera (Abel) Nos vamos hoy para siempre, con los hermanos del alma, lo haremos con mucha calma y no menos disimulo…
(Caín) …porque si así no lo hacemos aquellos yanquis joputas nos van a romper el culo (los guardias a coro) Guantanamera guajira tralalá tralalá tralaláaaaa Sepúlveda interrumpió los abrazos y sin perder la compostura, pronunció la memorable orden de su amigo Vittorio Gassman: “Y ahora, muchachos, solo queda una salida digna: ¡Huyamos!”
Carta N° 21
Ya de regreso, querido profesor von Klatsch, sin que ningún avión caza McDonnell Douglas F-15 Eagle, importunara el apacible deambular del globo multicolor, ante el insistente capricho del maestro Sepúlveda, el Arcobaleno descendió en El idilio, una aldea remota de la amazonia ecuatoriana donde viven los indios shuar, para estrechar en un abrazo al entrañable amigo Antonio José Bolívar Proaño, padre de las bellísimas doncellas mellizas Lameré y Yopatí Proaño. Como es sabido a través de una de las historias de su amigo, Antonio José se casó con Mamaré, una mujer shuar que no sabía besar, por lo que antes de dormir, combatía los insomnios de la vejez leyendo novelas de amor con finales felices. Cuando vio saltar a tierra al maestro que lo había hecho célebre en sesenta idiomas, Antonio José no encontró palabras para agradecer aquel envío que le hiciera desde Gijón, un paquete que recorrió en canoa el río Amazonas entero, de las obras completas de Corín Tellado. Mientras tanto, fascinados con las mellizas Proaño, los intelectuales sirios, empezaron a dudar entre seguir aquel azaroso viaje hacia ninguna parte o quedarse a vivir en aquella aldea donde nadie sabía nada de guerras fratricidas ni de poluciones nocturnas. “Yo de aquí no me muevo”, dicen que dijo Ali Hussain Shaabaan, mientras la voluptuosa Yopatí Proaño le mordisqueaba la única oreja que le habían perdonado en Guantánamo. Por su parte, Jihad Ahmad Diyab abrazó con calor amazónico a la melliza que quedaba y en un idioma que solo entendió su hermano, dijo: “Yo tampoco”. Y dejando a un lado los polvorientos recuerdos de los escombros sirios, Ali y Jihad se despidieron entre abrazos y lloriqueos de los tripulantes del Arcobaleno y se quedaron para siempre en El Idilio, donde viven muy felices educando seis niños shuar y fabricando bombas de uranio mejorado al vapor, para volar a la mierda los aserraderos clandestinos de la amazonia ecuatoriana.
Carta N° 22
¿Qué quiere que le diga, admirado profesor von Klatsch? Siento que hemos cumplido sobradamente con el rescate de su amigo Sepúlveda. Tanto Caín como Abel Grim, demostra-
ron tener unos huevos de avestruz africano, con el despliegue de coraje y solidaridad que demostraron durante el viaje. Y lo siguieron haciendo, porque luego de desembarazarse de los incómodos sirios, los hermanos Grim aprovisionaron el Arcobaleno con mandioca, pan casero de la aldea, ajíes picantes y medio jabalí deshuesado, que “el Lucho” Sepúlveda convertiría durante el viaje en hamburguesas amazónicas a las brasas. Por fortuna, en la barquilla quedaba todavía vino mendocino suficiente como para cubrir la travesía del Atlántico. Por lo que pude deducir, afectuoso Profesor, el Arcobaleno habría entrado a Europa por el espacio aéreo de Portugal, sobrevolando el coto de caza de la infanta Manuela Ribeiro do Varzim y Minas Gerais, pudiendo desde allí, ingresar sanos y salvos a la madre patria del jamón ibérico. Cuál no sería la sorpresa de los tripulantes del Arcobaleno, estimado profesor, cuando ya en cielo español y bordeando el mar Cantábrico, se encontraron con miles de asturianos que miraban pasar con la boca abierta el colorido globo de los hermanos Grim. Fue al sobrevolar las afueras de Gijón cuando, sin desprenderse del poderoso catalejo, “el Lucho” dio un peligroso salto que los sacudió cual una hoja en la tormenta y gritó como un pirata chileno “¡Por los cuernos de Belcebú Aznar! ¡Miren muchachos, aquella que se ve allá es Pelusa, mi mujer! En efecto, mil metros más abajo, entre el caudaloso río Piles y la playa nudista de San Lorenzo, si se prestaba atención, podía verse a la legendaria Pelusa Yáñez Pinzón, la autora del tango Sin regreso, regando las orquídeas y margaritones del jardín, mientras les hacía adioses con las dos manos. “¡Nos vamos, mi amor! ¡Pero volveremos y seremos miles!” vociferó “el Lucho” con todas sus fuerzas, más que nada con la esperanza de que ella lo escuchara y, si fuera posible, le creyera. Con la intención de darle una atmósfera más adecuada a esta historia, los hermanos Grim comenzaron a ejecutar una versión extensa para bombo y charango de El cóndor pasa, que acompañó al Arcobaleno hasta el final de su portentoso viaje hacia el norte de Italia, aunque sospecho, meritorio profesor von Klatsch, que estos vagamundos empedernidos, se perdieron de vista mucho más allá de la frontiera scomparsa. Con la convicción de que morir es quedarse un poco lo abraza por siempre Prof. Orson Castellanos
Mario Delgado Aparaín (La Macana, Florida, 1949) es un escritor uruguayo autor de una importante obra compuesta de novelas y de cuentos entre las que se destacan La balada de Johnny Sosa y No robarás las botas de los muertos. En 2004 publicó junto a Luis Sepúlveda el libro epistolar Los peores cuentos de los hermanos Grimm.
Dossier
Correntes D’Escritas 59
Correntes D’Escritas 60
Lucho aprendió a volar y anda por ahí
Dossier
Mempo Giardinelli
Mentira que se murió. Luis Sepúlveda, digo, mi amigo, mi hermano desde que hace 40 años nos juramos amor y fraternidad junto con quien considerábamos nuestro maestro, Osvaldo Soriano. No es verdad que ha muerto Lucho, en todo caso habrá cambiado de barrrio y andará con su sonrisa de niño y sus risotadas estruendosas quién sabe por cuáles nubes. Por las que empezó a andar desde que la maldita peste que está en el aire del mundo le puso el dedo encima. Por eso escribo y lagrimeo, desgarrado y con una de las más hermosas y conmovedoras novelas de la literatura latinoamericana en mi regazo: Un Viejo que Leía Novelas de Amor. Nadie más que Lucho pudo escribir una historia tan dura y a la vez tan colmada de ternura. Sólo un grande de la literatura como él pudo escribirla. Luis Sepúlveda fue un volcán patagónico para admirar y también, acaso, para ser temido por tontos, necios y envidiosos. Porque él, en verdad, era nada más que un muchachote generoso y ditirámbico, un dionisíaco gritón y con recia pinta de guardia de infantería pesada, pero en realidad era un niño. Toda su vida fue un chiquilín con cara de malo, pero era sólo su máscara, porque enseguida cualquiera se daba cuenta de que era un hato de ternura, bastaba un guiño, un gesto amable para que se le humedecieran los ojos y se deshiciera en sonrisas. Escribo en primera persona porque no puedo hacerlo de otro modo. No con él, mi amigo, mi hermano que ahora debe estar buscando en algún punto del universo a Antonio Sarabia, mientras aquí quedamos tan desamparados sus otros hermanitos: José Manuel Fajardo, Daniel Mordzinsky, El Negro Delgado Aparaín y yo, por lo menos. Y también sus hermanas, “las minas” como las llamaba en modo argentino: Pelusa, Ainoha, Karla, Natalia, Manuela. Y su ringlera de hijas, nietas y nueras. Lucho siempre estuvo en el centro de todos y todas como un cacique mapuche, un indiano prepotente y gritón que amaba hacer asados “a la argentina” pero no sabía hacerlos, aunque tozudamente los organizaba una y otra vez. Ay, cómo me enternece recordar su espíritu de competencia en ésa y otras
Mempo Giardinelli | Póvoa de Varzim. 2019
Correntes D’Escritas 61
Correntes D’Escritas 62
artes culinarias de las que emergíamos brindando con tintos de ambos lados de los Andes. Pero si me permiten, quisiera insistir en que es mentira que se murió Luis Sepúlveda. Aunque también yo empecé, y empezamos todos, a extrañarlo en cuanto supimos que en él la peste jugaba a redoblona y a maldita ganadora, yo insisto en que Lucho no ha muerto. Quien escribió y nos dejó esa belleza de lectura para niños que es Historia de una gaviota y del gato que le enseñó a volar, y además escribió tantos textos e invenciones literarias maravillosas, y entre las últimas la también conmovedora Historia de un perro llamado Leal, no puede morir. Así que a mí no me vengan con ese cuento. De todos modos pido disculpas porque los recuerdos se presentan de a muchos cada vez que lo evoco, y sí, me traiciona algúna lágrima. De pronto me parece mentira que ya no esté esperándome de pie frente a la playa de Gijón, en ese café cuyo nombre no recuerdo donde compartíamos sueños, proyectos y noticias del otro lado del mar. Y donde nos jugamos una vez, hace un cuarto de siglo, a hablar de la muerte y de obituarios con la consigna que él estableció: “Muérame yo primero, cabrón, así la escribes tú, que yo no quiero escribir la tuya y a ver qué dices de mí, puras mentiras”. Y soltando una carcajada reencendió el habano porque le encantaba parecer un gángster de película, uno de esos jefes de pandilla seguido por amigos fieles a morir. Hacedor y promotor de esa “banda”, expurgando fotos y papeles que me hacen llorar, encuentro un email que me mandó el 25 de abril de 1999, en el que dice que “nuestros propósitos siempre están muy bien para un caballo, pero no para un ser humano. Por eso si le hacemos caso a todas las ideas que se nos ocurren, reventamos”. Y así fue cómo organizó el Salón del
Libro de Gijón, que duró una docena de años, y vino al Foro de la Lectura en el Chaco un par de veces, y voló por todo el mundo, aclamado por millones de lectores en casi todos los idiomas. Lloramos a un grande, señoras y señores, y está bien. Haremos como que se fue a dar una vuelta y lo esperaremos y reencontraremos siempre. Con las sonrisas de los buenos recuerdos y la convicción de que es mentira que se murió Luis Sepúlveda. Capaz que se fue a dar una vuelta por ahi, nomás. Sólo es cuestión de mirar un punto fijo en el cielo, cerca de una nube blanca y gorda. Por ahí anda él, seguro, créanme. Sólo hay que saber mirar como corresponde a un tipo impar como él, pletórico de imaginación voladora y mucho amor del bueno. Y con la seguridad de que siempre, siempre, andará por ahí. Resistencia, Chaco, Argentina, 2020.
Mempo Giardinelli es escritor y periodista. Nació y vive en Resistencia, Chaco, Argentina. Ha publicado libros de cuentos y una docena de novelas. Su obra literaria está traducida a 30 idiomas y recibió importantes galardones.
Dossier
Correntes D’Escritas 63
Com Mario Delgado Aparaín e Mempo Giardinelli | Paris. 2004
Correntes D’Escritas 64
La patria esquiva de Luis Sepúlveda
Dossier
Yuri Soria-Galvarro A Lucho lo conocí mucho antes de conocerlo en persona. El primer recuerdo que tengo en la vida es un viaje al Chapare en Bolivia con mi padre, vamos navegando por un río en la selva, en un recodo de arenas amarillas miles de mariposas verdes alzan vuelo a nuestro paso. Debo haber tenido unos cuatro años, quizás menos, íbamos a visitar al Tío Roberto Soria-Galvarro, un tío-abuelo que renegó de la maldad del hombre blanco y se fue a vivir a la selva con los indígenas. En otro flashback caminamos por un sendero en la selva, el Tío Roberto va por delante con su fusil al hombro, nos detenemos frente a un tronco ahuecado y nos cuenta que ahí vivía un tigre que había tenido que cazar. Ya cursaba los últimos años del colegio cuando mi padre me pasó Un Viejo que Leía Novelas de Amor. Devoré el libro de una sentada y corrí a decirle «es el Tío Roberto». El Tío Roberto no leía novelas de amor, pero escribió una novela de amor maravillosa, que cargó y corrigió durante sus últimos años de vida. De todas estas increíbles coincidencias hablamos con Luis Sepúlveda muchos años después, cuando nos hicimos amigos, gracias a otro gran hermano, Mario Delgado Aparaín, de Uruguay. Luis Sepúlveda organizaba el Salón del Libro Iberoamericano en Gijón. Allí lo conocí (aunque ya acumulábamos un nutrido intercambio de emails) y también a parte del «Círculo cercano de amigos» (que son como 500). Entre ellos a su compañera
A caminho de Puerto Montt | 2014
Carmen Yañez (la querida Pelusa) a Daniel Mordzinski, Víctor Hugo de La Fuente, Federica Matta, José Manuel Fajardo, Karla Suárez y Elsa Osorio, y a Ángel Parra, Antonio Sarabia y Octavio Lafourcade, que ya partieron. El Salón del Libro era una patria para la buena literatura, donde los escritores se nutrían de compañerismo y buena leche. La misma energía que tiene el Foro por el Fomento del Libro y La Lectura, en Resistencia, Argentina, que organizan los también grandes amigos, integrantes del “Círculo cercano”, Mempo Giardinelli y Natalia Porta. Teníamos planeado reunirnos allí con Lucho en agosto de este año cuando se cumplían los 25 años del evento. Luis Sepúlveda nació en Ovalle, y aunque algunos aseguran haber sido sus compañeros de curso en el colegio, estuvo sólo algunos meses en esa ciudad, lo que tempranamente genera el mito de la patria difusa. Creció en Santiago y estudió en el Instituto Nacional. Con la juventud llegó el sueño de la patria nueva y junto a muchos de su generación se incorporó a la lucha política en las Juventudes Comunistas. En 1971, se casó con Carmen, nació su hijo Carlos y aunque se separaron, veinte años después se encontraron en Europa y volvieron a casarse. Cuando Santiago se convertía en una ciudad acorralada, ahora desde su militancia socialista, se enlistó en el GAP para defender al presidente Allende. Con el golpe fue encarcelado en Temuco, donde estuvo casi tres años preso. En 1977 abandonó Chile y partió al exilio, del que de alguna forma nunca volvió. Estuvo en Buenos Aires y Montevideo, después en Brasil, Paraguay, Bolivia, Perú y Ecuador, allí conoció a los indios Shuar que después fueron el germen de su Novela Un Viejo que Leía Novelas de Amor. Con la Brigada Internacional Simón Bolívar estuvo en Nicaragua para la Revolución Sandinista. Durante esos años se ganó la ciudadanía de la patria grande latinoamericana. La dictadura chilena le quitó la nacionalidad convirtiéndolo en apátrida. Ya en democracia le dijeron que podía recuperarla presentando una solicitud con varios documentos y antecedentes, y por la gracia de algún burócrata quizás se la otorgarían de nuevo. Lucho dijo que se la habían quitado sin solicitarlo y se la debían devolver de la misma manera, y que bien podían meterse el pasaporte chileno por el culo (quizás no lo dijo con esas palabras, pero esa era la idea). Alemania, una de las patrias que lo acogió, le concedió un pasaporte. Fue nombrado Caballero de la Orden de las Artes y las
Correntes D’Escritas 65 Disfrutamos de su conversación y ternura, acá agregó nuevos amigos al Círculo cercano, como el pintor Marcelo Paredes y Jaime Barría de la Banda Bordemar. Los inmigrantes y los exiliados descubrimos en algún momento que no se pude volver a una patria que ya no existe. De eso hablamos con Lucho una vez caminando por la playa. Sus actividades literarias y la familia con hijos y nietos afianzados en el hemisferio norte hicieron que cada vez fuera más difícil venir. Nos mantuvimos en contacto permanente con él y Pelusa, también en esos días dolorosos en que dio su última batalla. Lucho tuvo muchas patrias, pero siempre supo que la verdadera habita en la memoria y los amigos. En el «Círculo cercano» lo extrañamos a rabiar. Él se ha mudado ahora a esa otra gran patria sin fronteras que son los libros y la literatura.
Yuri Soria-Galvarro (Cochabamba, Bolívia, 1968) es escritor, cronista y biólogo. Vive en Puerto Montt, Chile, desde los 7 años.
Dossier
Letras en Francia. En Italia y Portugal está ampliamente traducido, ganó premios y reconocimientos, tuvo el cariño y admiración de millones de lectores y esos países fueron una patria para él. Gijón, ciudad donde vivía y que mira al Mar del Norte, también era su patria y fue nombrado hijo predilecto. En un momento que tuvo problemas, lo llamó Mujica el presidente de Uruguay, esa tierra de gente macanuda, y le dijo, Lucho si te joden mucho acá tenés tu patria. Luis Sepúlveda Calfucura además abrazó otras patrias, como la Nación Mapuche o la patria verde de Greenpeace. Y la gran Patagonia, el sur profundo que recorrió varias veces. Uno de esos viajes, junto a Daniel Mordzinski, está registrado en el hermoso libro Últimas noticias del sur. Hace algunos años nos visitó en Puerto Montt y después de comprobar que acá nos alimentamos exclusivamente de asados, decidió que era un buen lugar para iniciar el regreso a la patria. Convenció a Carmen, se instalaron en un departamento y declaró que ahora vivía en Gijón y Pelluco. Lo tuvimos de vecino y como parte de la familia durante los veranos.
Na praia de Pelluco, em frente a sua casa em Puerto Montt | 2014
Correntes D’Escritas 66
Un tal... Lucho
Dossier
Lucas Chiappe A través de casi 5 décadas de eco-activismo a tiempo completo, tuve la suerte de conocer muchos seres humanos totalmente comprometidos con sus causas, personas llenas de energía y dispuestas a entregarla toda en aras de la conservación: biólogos reintroduciendo especies extintas en sus medios naturales, ecólogos restaurando el hábitat de bosques talados, colectivos de mujeres bloqueando rutas madereras, comisiones de pobladores rurales impidiendo la construcción de represas hidroeléctricas, organizaciones de base luchando cuerpo a cuerpo para detener el desmonte y la pérdida de biodiversidad, movimientos sociales espontáneos impidiendo la instalación de un basurero nuclear en la árida meseta Patagónica, Asambleas de vecinos de pie, torciéndole el brazo al saqueo de las corporaciones mineras... Idealistas, llenos de fe, buscando aterrizar los sueños desbordantes de los ‘60s , personas dedicadas a desparramar en los ‘70s la ahora tan normalizada “conciencia ambiental”, individuos alertando desde hace más de 40 años sobre el cambio climático y el agujero en la capa de ozono, hombres y mujeres dispuestas a combatir en cada rincón de Latinoamérica el pre-anunciado “fin de las ideologías” de los ‘80… Hasta que, a mitad de los años noventa a esta rica lista de compañeros de tantas luchas, tantos éxitos impredecibles y una que otra derrota dolorosa (que las hay, las hay), habría de sumarle dos individuos totalmente fuera de serie, que llegaron a golpear la puerta de la cabaña donde vivimos con mi familia, con distintos aspectos, profesiones y nacionalidades, pero con un mismo destino: transformarnos en amigos íntimos. Mi compañera Jillian y yo no mudamos al pequeño valle de Epuyen (Noroeste patagonico) en el fatídico año 1976 (inicio de la dictadura más sangrienta de Argentina), luego de varios años de viajes erráticos que nos llevaron a recorrer Latinoamérica, Europa, hasta el famoso Hippie-Trail de Londres a Kathmandu, en lo que sería un viaje iniciático en la búsqueda de “Nuestro lugar en el Mundo”. Un rincón en el Planeta Azul que nos permitiera descargar nuestras mochilas y dedicarnos a construir nuestro cobijo, cultivar nuestra comida y criar nuestros hijos en un entorno saludable, lo más cerca posible a la Pachamama y lo más lejos posible del mundanal ruido urbano. De hecho este rincón cordillerano con escasa población y en decrecimiento (unos 900 habitantes desparramados en 90.000 hectáreas), pero lleno de bosques templados y un lago de aguas cristalinas, nos cautivó desde el primer momento, justamente
por tener las características que buscábamos… incluyendo un viejo poblador que intentaba desprenderse de sus tierras, debido a las incómodas condiciones geográficas del sitio: “Del otro lado de un río caudaloso, que en invierno sólo podíamos cruzar a caballo, sin vecinos a la vista, un diminuto poblado con calles apenas marcadas, sin electricidad, ni señal de radio, el teléfono más cercano a 45 kms, la escuela primaria a 10 Kms y el hospital medianamente equipado de Esquel a 120 Kms . Vale a decir que durante mucho tiempo llegar a la chacra “El Nagual” no era una tarea fácil ni exenta de imponderables… Y fue por esa razón, que una mañana de Invierno de 1996 nos sobresaltamos al ver llegar, en medio de un temporal de agua y nieve, a tres personas arropadas con sendos ponchos de castilla, que indudablemente, venían a “visitarnos”: Al abrirles la puerta me tranquilizó reconocer al primero de ellos, Pedrito Cifuentes, un joven vecino nacido y criado en el Valle de Cholila, con quién habíamos entablado una relación muy fluida debido a sus habilidades como dibujante y al que le había encargado varios retratos de árboles nativos para ilustrar una serie de textos, folletos y cuadernillos de difusión que utilizaba en mis charlas de “educación ambiental no-convencional” en las escuelas, bibliotecas, y centros cívicos de la cordillera. La bienvenida en el umbral fue corta debido al frío pero una vez adentro se fueron presentando, primero un flaco alto, con aspecto tímido de intelectual y con una sonrisa amable, que se presentó con una la tonada porteña simplemente como Daniel, fotógrafo1… Y, atrás suyo intenté darle un torpe abrazo de bienvenida, a un yeti grandote, de rasgos indígenas, con una barba hirsuta, grandes anteojos de marco negro y una voz potente con la que anunció llamarse Luis, Luis Sepúlveda… Un apellido idéntico al del primer poblador chileno que ocupó a principios de Siglo XX el lugar donde nos encontrábamos… Anécdota graciosa que suscitó una primera risa colectiva… Las formalidades se diluyeron de inmediato a lado del fogón que calentaba nuestro rancho de piedra y madera… y, a continuación, como es costumbre por estos pagos sureños, calentamos agua en una pava, “ensillamos” un mate y dejamos que Pedrito nos contara la razón de su visita, aclarando que Don Luis y Daniel eran dos reporteros que vivían en Europa y estaban de gira en búsqueda de historias patagónicas para publicar en un eventual libro de viajes2. Al narrarles sobre como un pequeño grupo de pobladores sin dinero, sin respaldo y con todos los medios y
1 Daniel, era ni más ni menos que Daniel Mordzinski cuyos sugestivos retratos de poetas, escritores y otros artistas hoy engalanan unos cuantos museos y galerías del Hemisferio Norte.
Correntes D’Escritas 67
Em Epuyen | Patagónia. 1999
los políticos en contra, lograron detener un enorme proyecto hidroeléctrico que amenazaba con inundar un Valle bajo 45 mts de agua, ellos quisieron conocer el sitio y enterarse de primera mano los detalles de esa inédita rebelión en época dictatorial y de cómo esa batalla que duró 5 largos años (1981-1986), de angustias amenazas, ásperas discusiones, boicots y paranoias, había transformado para siempre nuestras vidas…Y de paso, agregó, querían tener más detalles sobre la siguiente cruzada ecológica, en la que me había involucrado, el “Proyecto Lemu” un iniciativa que lancé con el objetivo de proteger, revalorizar, y restaurar los bosques nativos más australes del Planeta… soñando junto a varios eco-legas trasandinos un eventual Santuario Internacional de Bosques Nativos al Sur del Paralelo 40º3 Todas cualidades que mostraban la ubicación de ambos, como viajeros inteligentes, humildes, abiertos y bien intencionados: Claves que nos hicieron abrir de par en par las puertas de nuestras vidas y de nuestras andanzas, incluso narrarles en confianza, algunas inconfesables acciones secretas que llevamos adelante en pos de la conservación de nuestros preciados y tan maltratados Bienes Naturales…
Obviamente la charla no duró unas pocas horas como había prometido el bueno de Pedrito si no que se extendió durante varios días en los que Daniel y Lucho fueron conociendo nuestra “tribu de Jipuches” (hippies y mapuches)… los amigos del valle, sus niños, los músicos, las docentes, los gobernantes, los protagonistas de tantas historias ambientales, sociales y políticas que se desarrollaron luego de haber logrado salvar el Valle… Como podrán imaginar quienes conocieron los pensamientos y la ideología ambiental de Lucho o quienes hayan leído algunos de sus libros, durante esa breve primera gira, iniciamos una amistad sólida y duradera que dio un salto cuántico para nosotros, cuando una amiga francesa, al enterarse de la “ilustre” visita que habíamos recibido, nos alcanzó un libro de tapa raída para que nos enteráramos quien era el misterioso escritor disfrazado de periodista: Se trataba de un ejemplar de Un Viejo que Leía Novelas de Amor… una revelación que nos confirmó definitivamente que las sincronías nunca son casualidades y que los cisnes negros conviven con nosotros desde siempre… Desde ese momento nos convertimos en ávidos lectores de cada uno de
2 Libro que muchos años más tarde llevaría como título: Últimas noticias del Sur (2012) 3 5 millones de Has de bosques templados reconocido por la UNESCO en el año 2007 como “Reserva de la Biosfera Nor Andino Patagónica”…
Dossier
Correntes D’Escritas 68
No Patagonia Express | Patagónia. 1999
sus posteriores “viajes” literarios, incluyendo sus breves cuentos infantiles con los que se deleitaron chicos y grandes. Un par de años más tarde un amigo de mi hija, al volver de un viaje de placer a España, se subió a un avión de Iberia y de puro aburrido durante el vuelo comenzó a leer un suplemento cultural del Diario El País que distribuían gratis a cada pasajero y al toparse con una nota que se titulaba: “Un tal… Lucas” de Luis Sepúlveda4, casi se cae del asiento al entender que el autor de la nota hablaba “del papá de su mejor amiga”. La recortó disimuladamente y me la hizo llegar por “Correo”… Situaciones que nos volverían a acercar en otras ocasiones o acontecimientos, entre los que cabe mencionar su generoso ofrecimiento para escribir el prólogo de mi segundo libro de fotografía Alma de Bosque, que imprimí en Chile, en donde estuve “cortando clavos” esperando el envío que no llegaba nunca, hasta que, a pocas horas de entrar a impresión recibí el “Fax” de Lucho, con un texto absolutamente surrealista, compuesto por una narración entre mágica y delirante sobre mi vida y mis sueños ambientales, y me asaltaron serias dudas, ya que sus elogios sobre-dimensionados me apabullaron... aunque, al rato, comprendí que el mensaje era fiel a su óptica y estilo e inevitablemente debía incluir en
su repertorio algunas insólitas y a veces bizarras exageraciones, para emanar ese aroma misterioso que infaliblemente lograba atrapar la atención de sus lectores. Otro encuentro imborrable con el Lucho (lamentablemente el último en vivo y en directo) fue cuando me invitó a exponer parte de mi obra fotográfica y audiovisual en el marco del XI Salón del libro Iberoamericano de Gijón. Ese año (2008) el eje central del evento era “La Tierra somos todos”, me invitó a compartir el panel donde se producirían los debates abiertos que tenían como temática: “La Huella Ecológica Global” – “Las Víctimas del Desarrollo” – “La Realidad Medioambiental como desafío para la Creación Literaria” entre otros… Conceptos que nos permitieron a los panelistas y al público presente, llegar a conclusiones casi “inevitables”: Por un lado, el estado de emergencia planetaria en el que nos encontramos y en consecuencia la necesidad de actuar sin demora para tratar de revertir una situación de peligro inminente e irreversible... La verdad es que podría escribir muchas páginas sobre el gordo con cara de pillo y corpachón de oso bueno, ya que fue siempre un tipazo de pura cepa, generoso, firme como un Coihue, amigazo fiel, siempre dispuesto a reír, a celebrar y a
4 Alusión al libro de Cortázar de 1979 del mismo Nombre. Este cuento breve también fue publicado en su libro Historias Marginales (2000)
Correntes D’Escritas 69
Na cabana de Butch Cassidy | Patagónia. 1999
brindarme una mano o un consejo certero en cuanta batalla ambiental me haya tocado vivir... Pero para cerrar esta no tan breve descripción de una amistad profunda, me gustaría recordar la última de las sincronías que fueron una constante en nuestra relación: A la vuelta de una larga gira por el Norte de Río Negro y Neuquén, aproveche una parada del transporte público en Bariloche para estirar las piernas y comprar alguna revista buscando amenizar el largo viaje hasta Epuyen y descubrí entre tanta mediocridad, una libro con una tapa que me llamó la atención ya que se trataba de una excelente foto de nuestro querido tren: el “Trochita” patagónico5 y al tomar el el ejemplar en mis manos descubrí que era un texto de Lucho con un título singular y desconocido para mi: La Lámpara de Aladino… lo compré sin dudarlo y me subí apurado al bus pensando en la suerte de volver a casa en buena compañía… Y a poco de comenzar a leer me topé con la dedicatoria de uno de sus cuentos breves, encabezada por mi nombre… Lo que resultaría ser para mi familia: su último regalo silencioso… 5 La imagen de la tapa, como no podía ser de otra manera, era de Daniel. El último tren patagónico de trocha angosta recorría un largo trayecto entre la localidad de Jacobacci en la costa Atlántica de Río Negro y la ciudad cordillerana de Esquel en Chubut. Hoy sus últimas locomotoras y sus angostos vagones calefaccionados en Invierno por estufas a leña o carbón, realizan un breve circuito turístico entre El Maitén y Esquel…
Com Lucas Chiappe | Patagónia. 1999
Lucas Chiappe activista ecologista, periodista y fotógrafo, es referente en la conservación de los bosques andino-patagónicos. Gracias a su tarea, ha conseguido crear y ampliar nuevas áreas naturales protegidas que conforman un corredor biológico que abarca 2.5 millones de hectáreas. A través de distintos medios combate la desinformación, trabajando en la restauración y protección de la biodiversidad de los bosques.
Correntes D’Escritas 70
Un personaje de novela Karla Suárez
Dossier
Siempre es difícil escribir un texto de homenaje. Sobre todo, cuando el homenajeado es alguien a quien uno quiere mucho y que ya no está. Pero no voy a faltar a esta cita. Como lo que sé hacer es contar historias, quiero contar unas anécdotas sobre mi relación con Luis Sepúlveda, con Lucho. Usando esa frase de Guimarães Rosa, que él hizo suya: narrar es resistir. Contar historias donde tú eres el protagonista, Lucho, es una forma de resistirnos a tu ausencia. Nombre de escritor Hace poco más de veinte años yo vivía en Roma. Una vez, una amiga me llamó para preguntarme si había visto La Repubblica de ese día. El periódico ya estaba en casa, pero aún no lo había abierto. Míralo, me dijo. Apenas colgué empecé a hojearlo para buscar eso que mi amiga estaba segura de que me iba a interesar, hasta que vi un nombre y me detuve: Luis Sepúlveda. Por aquel entonces yo era una joven que acababa de publicar su primera novela. Él era ya un célebre escritor a quien yo admiraba. Es esto, me dije y empecé a leer la entrevista que le hacía Bruno Arpaia. Sepúlveda estaba en Roma, junto a otros escritores, celebrando los tres años de la colección latinoamericana que él dirigía en la editorial Guanda. Ahora, volviendo a ese texto, veo que varios de los autores que él citaba, entonces desconocidos para mí, hoy son parte de mi mundo: amigos e incluso quien luego se convirtió en mi compañero de vida, José Manuel Fajardo, pero eso sucedió después. Aquel día, yo fui leyendo curiosa, descubriendo autores, hasta que Sepúlveda empezó a hablar de nuevas voces latinoamericanas y por poco me caigo de la silla cuando leí mi nombre. ¿Y cómo sabe que existo?, me pregunté. Al día siguiente, me telefoneó Pierpaolo, un amigo traductor, para contarme que esa tarde en una librería, la poeta chilena Carmen Yáñez presentaba un libro y Luis Sepúlveda la acompañaba. Pierpaolo lo conocía. Ayer, me dijo, lo vi y él estaba hablando de tu novela, le conté que vivías en Roma, ¿vienes a la librería? Y fui, claro. Estuve en la presentación de Carmen y al terminar, esperé en una esquina a que concluyeran los saludos, las firmas y las fotos. Cuando ya quedaban pocas personas, me acerqué tímida, mi amigo me presentó y entonces Luis Sepúlveda me miró sonriendo y ahí, delante de todos, me dio un abrazo como si me conociera de toda la vida. ¿Y cómo sabe que existo?, volví a preguntarme y, aunque por supuesto que él no me escuchó, enseguida dijo que se había leído mi novela y me presentó a Carmen y a los otros y dijo que me sumara al grupo, nos íbamos todos a cenar. Así conocí a Luis y a Carmen. Poco después estuve en el Salón del libro iberoamericano de
Gijón, que él dirigía. Es el primer encuentro internacional al que fui invitada y por eso está guardado en un sitio especial de mi memoria. Fue Sepúlveda quien presentó mi novela y la de la chilena Alejandra Costamagna. Me costaba creer que aquello me estuviera sucediendo, porque no es usual que alguien tan reconocido se tome el trabajo de presentar las primeras novelas de dos desconocidas. Y es que él era así, generoso y entusiasta. En mi memoria se quedarán aquellos días y la sensación que tuve entonces de que ese escritor, Luis Sepúlveda, no dejaba de impresionarme. Yo aún no le llamaba Lucho, por supuesto. Una mujer que leía novelas de Luis Sepúlveda Años más tarde yo ya le llamaba Lucho, éramos amigos. En 2005, nos invitaron a los dos al salón del libro de la Guyana Francesa que ese año estaba dedicado a América Latina. En aquel viaje sucedieron muchas cosas, pero lo mejor fue la expedición a la selva, al sitio donde se filmó la adaptación cinematográfica de su novela Un Viejo que Leía Novelas de Amor. Temprano, el grupo de escritores salió de Cayena en un pequeño bus. Dos horas después empezamos a internarnos en la selva, pero debido a las lluvias torrenciales de la noche anterior el bus terminó atascándose. Todos bajamos y con la ayuda de unos hombres que estaban arreglando el camino se empezó la maniobra. Cuando, por fin, consiguieron sacar al bus, nuestro chofer dijo que en esas condiciones no podía seguir, además, habíamos perdido mucho tiempo y varios del grupo tomaban el avión de regreso esa misma tarde. Parecía que íbamos a quedarnos con las ganas, cuando de repente, no sé de dónde, apareció un jeep destartalado, conducido por una mujer, que iba en short y descalza. Yo vivo en el sitio donde se filmó la película, nos dijo, puedo llevar a cuatro. Fue así como, mientras el bus se llevaba a los otros escritores, Carmen, Lucho, Daniel Mordzinski y yo nos subimos al jeep de nuestra salvadora. Por el camino ella empezó a hablar. Era una parisina que, luego de vivir un tiempo en Cayena, quiso mudarse a la selva y como le encantaban las novelas de Luis Sepúlveda, había decidido hacer su casa justo donde se filmó la película basada en aquella historia que tanto le había gustado. Lo que no sabía ella era que el tipo que iba a su lado en el jeep era Sepúlveda, pero como él no dijo nada, los otros tres nos miramos en silencio. Cuando bajamos del jeep, había un arroyo. De un lado estaba la casa de la francesa, una de esas construcciones típicas de estos sitios, de madera sin paredes, levantada sobre pilares y abierta para sentir el fresco, aunque también tenía un pequeño espacio cerrado que servía para refugiarse de las fieras. Nos
Nos arredores de Caiena | Guiana Francesa. 2005
contó que cuando la estaban construyendo, una partida de hombres andaba por la zona persiguiendo a alguna fiera enloquecida. Como en la novela, agregó, y nosotros volvimos a mirarnos. Del otro lado del arroyo estaban las ruinas de Degrad Edmond, el pueblo abandonado que, previa restauración de sus casas, fue transformado en el pueblo El idilio de la película. Mientras Daniel sacaba fotos; Carmen, Lucho y yo entramos y salimos de las casas, que ya la jungla comenzaba a tragarse nuevamente. Como niños, jugamos a intentar reconocerlas. Allí donde en la peli vivió el alcalde que todos llamaban “la Babosa”, solo encontramos murciélagos. La única persona que vivía en esos parajes era aquella francesa. De vuelta a su casa nos invitó a un café. Tenía una planta eléctrica, vídeo, refrigerador, una hamaca, muchos libros, entre ellos los de Sepúlveda. Y tenía, según afirmó, todo el tiempo del mundo para leer novelas y pensar en sus cosas. Tampoco ahí Lucho dijo nada. Pero ya era demasiado, los otros tres volvimos a mirarnos y fue Daniel quien habló. La mujer abrió los ojos cuando supo que el autor de las novelas que tanto le gustaban estaba frente a ella, en su casa, en plena jungla. Cuando ya nos íbamos, miré a Lucho y estaba sonriendo, pero como consigo mismo, como un niño que está emocionado y no piensa confesarlo. O, al menos, eso pensé yo. De repente, se desató una tormenta de ésas que duran pocos minutos, pero son de tal intensidad que casi parece que en ese mismo
momento un escritor se las está inventando. Ni siquiera tuvimos que guarecernos. Cuando terminó, me acerqué a Lucho. Si tú no cuentas esta historia, voy a hacerlo yo, le dije. Y él volvió a sonreír: adelante, compañera, fue lo que me dijo. Europa express Después hay más historias. De aquellas vacaciones que pasamos en Gijón jugando billar y conversando hasta tardísimo, Carmen, Lucho, José Manuel y yo. O de las fiestas de aniversario de la editorial Metailié en París, con tantos amigos. O de algunas cenas en nuestra casa. O de las tertulias en el bar del hotel en Póvoa de Varzim. O del último cumpleaños que le celebró Porto Editora en Lisboa. Hay historias de aquí y de allá, que ya se irán contando. Sé que, de todas, me quedo con la risa de Lucho, con la manera en que ponía la voz para imitar a algún cantante cubano que alguna vez le hice escuchar y que nos daba risa a todos, con su entusiasmo. Después de habernos contado tantas historias y habernos hecho vivir tantas otras, ahora eres tú, Lucho, el personaje de la novela que alguien escribirá o que escribiremos todos, quién sabe. Pero ahí te vamos extrañando. ¡Nos vemos, compañero!
Karla Suárez (La Habana, 1969). Escritora. Ha publicado novelas, cuentos y crónicas de viajes. Reside en Lisboa donde coordina el club de Lectura del Instituto Cervantes y es profesora de la Escuela de Escritores de Madrid.
Dossier
Correntes D’Escritas 71
Correntes D’Escritas 72
No hemos venido para quedarnos Iñaki Abad
Dossier
“Dios no hace a nadie el favor de corregir el destino que ha determinado para cada uno. Yo también soy un instrumento” Jakob Wassermann
No debía de llevar mucho tiempo muerta, aún no se habían formado a su alrededor ese puñado de moscas que revolotean y se posan pegajosas sobre la carroña para seguir viviendo. Estaba en la acera, junto al escaparate de Bulgari, inerme como un peluche de plumas falsas. Nadie sabe por qué mueren palomas en las ciudades, pensó, a veces sus cadáveres se cruzan en tu camino y ya está, los ves y sigues adelante, sin pensar en nada, otra paloma muerta y ya está, quizás las envenenen, sospechó, sí, seguro que las envenenan, va a ser eso, que las autoridades ordenen envenenarlas de manera selectiva para resolver algún problema de plagas, de superpoblación en ciertas zonas. Tendría su lógica. Las autoridades son capaces de eso y de poco más. En términos reales de poder las palomas son la insignificancia, la mota de polvo que un veneno de última generación desarrollado por alguna farmacéutica que cotiza en bolsa quita en cuestión de segundos. Cielos limpios de palomas pero contaminados, los cielos de nuestras ciudades, como el de esta tarde, cuya luz del atardecer azulea las fachadas de los edificios imponentes de principios del siglo pasado, y resalta aún más esas luces naranjas, cálidas, que se han empezado a encenderse en las casas. Sí, definitivamente le gustan las ventanas iluminadas, sobre todo las de los barrios ricos, porque su imaginación puede fantasear con todas esas vidas vicarias que el dinero ensucia y también envenena de manera limpia, como los gobiernos. Cuando se acercó el camarero, un hombre ya entrado en años y demasiado ceremonioso, le pidió un simple botellín de agua. Se había sentado en la última fila de mesas de la terraza, desde donde podía vigilar sin problemas el portal de madera recia y señorial marrón oscuro. Sacó el cuaderno y el libro de la mochila, y al hacerlo sintió la Beretta en la sobaquera. Las tiendas comenzaban a cerrar. El calor del día se atemperaba para recibir a la noche. La paloma seguía muerta, sin moscas. Otro enjambre diferente, sin embargo, estaba pululando en una esquina de la plaza alrededor de un local de sándwiches, tartas y zumos bioló-
gicos, la cadena Cadeiras Doces, y lo componía casi una veintena de jóvenes con sus motos aparcadas, Honda, Yamaha, Suzuki, Piaggio…, motocicletas la mayoría sin demasiada cilindrada, prácticas para moverse por la ciudad. Algunos de ellos estaban de pie, otros sentados a horcajadas en los sillines, todos con sus cascos, con sus mascarillas bajadas casi a modo de collar, fumando, bromeando, ruidosos en su alborozo de insectos escurridizos, todos con sus bolsas térmicas junto a ellos o apoyados en los maleteros también térmicos con el logo de la compañía de distribución para la que trabajaban. Les miró con desdén. Le resultaban incomprensibles, tan jóvenes y tan dócilmente derrotados incluso en su carencia de sueños, entregados a su irrelevancia. Si yo estuviera en su situación, si tuviera su edad y esas manos, solía decirse a sí mismo cuando les oía pasar más allá de la verja del jardín de su casa en la periferia, no habría noche en que no buscase el olor de la gasolina con la que pegar fuego a todos y cada uno de esos establecimientos que rezuman esclavitud como si fuera trabajo, sí, gasolina, botellas, un puñado de trapos, un encendedor y un mazo para romper los cristales, acciones fulgurantes, quirúrgicas, hacer que la justicia sea un fuego permanente. Es lo que está faltando en estos tiempos, el miedo a la justicia real, la que es ejemplar, se dijo y echó mano del cuaderno para escribir con lentitud y una caligrafía exquisita que no hay justicia sin miedo ni verdad sin violencia. El poder es realmente poder cuando alcanza la impunidad y allí crece, se reproduce y se perpetúa sometiendo, y cuando eso ocurre a los hijos de ese poder no les faltará ya nunca nada, siguió pensando, pero no le gustó cómo lo había formulado y por eso no lo transcribió. Abrió el libro, todavía tenía casi media hora según el dossier que le habían enviado a una dirección de correo electrónico que sólo se usa una vez. En los cursillos que había recibido se lo habían explicado bien. Siempre era el mismo protocolo de seguridad para los operativos, un pedazo de papel deslizado por debajo de la puerta de la fontanería en el que habían escri-
Com Iñaki Abad | Praga 2006
rista que cometió varios atentados en Valparaíso, pero al final tuvo que expatriarse e inició un peregrinaje por varios países latinoamericanos hasta acabar en Bogotá. Allí, reconstruía la nota biográfica de Larraín, entra a formar parte de la Brigada Simón Bolívar, un grupo de voluntarios internacionalistas que, tras recibir una formación militar en Costa Rica, participan activamente en la revolución sandinista en Nicaragua. Tras el derrocamiento de Somoza y el triunfo del Frente Sandinista de Liberación de Nacional, el FSLN, se forma un gobierno de reconstrucción, que al final, el 14 de agosto de 1979, acaba expulsando a la mayoría de los brigadistas a Panamá por considerarles peligrosos y demasiado radicales. Larraín logra llegar a Costa Rica, que abandona para empezar su periplo europeo de la mano de grupúsculos trotskistas, primero en Liverpool, luego en Aalborg, Dinamarca, y después, tras vivir un año en Norrköping, en Suecia, en el mar Báltico, instalarse definitivamente en Hamburgo en 1997. Trabajó siempre en puertos como estibador, confiando en su fuerza física, abandonó la militancia y ya nunca se pudo quitar, tal y como confesó al final de esas memorias, la amargura que destilan toda las tonalidades de la revolución, donde los palacios acaban siendo las cárceles de las ideas, y las ideas la traición a los propios ideales. Todo es complejo. Y a la vez todo se vuelve sencillo y meridiano para acabar purgado por tus propios compañeros, excluido, desterrado y terriblemente solo cada mañana, cada café, ante cada palabra que enuncie tu nombre, Libertad….
Dossier
to una dirección en un servidor en algún país del este y una contraseña. Al día siguiente accedía, descargaba el adjunto y la dirección se volvía automáticamente inservible. Llegó el camarero con el botellín de agua y la cuenta. — No me voy a escapar — le dijo con complicidad. — Lo siento, señor, reglas de la casa — le contestón el hombre —, y más en la terraza, ya sabe, uno toma las de Villadiego con mucha facilidad, ya hemos tenido malas experiencias. — ¿Por un botellín de agua? — le preguntó. — Para la casa es lo mismo una botella de agua que una de Moët & Chandon, la cuestión es irse sin pagar, un robo, y como no estoy para correr, yo hago lo que me dice el encargado, cobro a los clientes cuando les sirvo y punto — se justificó el camarero. — Yo tampoco estoy para correr, y creo que no tengo pinta de los que se van sin pagar… — También es cierto — le reconoció —, pero las apariencias no son buenas consejeras para los camareros en los barrios ricos, todo el mundo parece honrado y sin embargo no pasa día en que la caja no cuadra, cuando no es una cerveza son unos cafés o unos zumos o unos pinchos de tortillas, robos de baja intensidad, les llamo yo, y los que pagamos somos los camareros, ¿me entiende? O sea, que el encargado nos lo descuenta del sueldo — Le entiendo, claro que le entiendo, ¿cómo no le voy a entender? — le aseguró y le dio un billete de veinte euros. — Gracias — le dijo y se alejó con la bandeja debajo del brazo. “Matar como escribir se volvieron en aquellos años una necesidad, un acto de honradez, algo profundamente moral, lo que funda la insurrección”, leyó en el libro No hemos venido para quedarnos, una especie de memorias que había escrito a finales del siglo pasado Sabino Larraín, un militante socialista chileno que acabó su días en un hospital para enfermos terminales de la Cruz Roja en las afueras de Hamburgo, abrazado a los que fueron sus últimos camaradas: un carcinoma voraz, un principio de demencia sanador y su vieja e infatigable soledad. Había conseguido un ejemplar de segunda mano por casualidad, en un mercadillo, en medio de un batiburrillo de libros de cocina manoseados, ediciones inmaculadas del extinguida Círculo de Lectores y volúmenes de viejas colecciones literarias. Todavía llevaba el sello de una pequeña biblioteca anarquista de Yorkshire. No tenía ni idea de cómo había llegado hasta allí. Ciertos libros son en sí mismos caminos insondables. Lo compró nada más ojear el prefacio con la biografía. Larraín había sido un viejo combatiente. Militó en el Movimiento de Izquierda Revolucionaria en Chile, el MIR, hasta el inicio de la campaña presidencial de 1970, cuando se ofreció como voluntario para formar parte de los Grupos de Amigos Personales de Salvador Allende, los GAP, una especie de guardia personal que velaban por el que sería el futuro presidente de Chile. Tras el golpe de estado pudo escapar de las redadas de la policía de Pinochet y pasó a la clandestinidad. Formó parte de una célula terro-
Os nossos autores ligados às Correntes Mesas e Conversas a dois Álvaro Laborinho Lúcio Gonçalo M. Tavares Onésimo Teotónio Almeida Patricia Melo
Mesas online com a participação de convidados de várias geografias da língua portuguesa e espanhola e conversas a dois entre autores que escolherão os seus convidados.
Dedicatórias a Luis Sepulveda | Memórias Correntes Ana Cristina Silva José Luís Peixoto José Manuel Fajardo Karla Suárez Manuel Alberto Valente Maria do Rosário Pedreira Mario Delgado Aparaín quetzal
O público e os antigos participantes editores, autores, poetas, agentes literários, etc. foram instados a fazer um brinde às Correntes partilhando uma imagem, um depoimento, uma fotografia, um autógrafo das últimas 21 edições – momentos inéditos, desconhecidos, raros, que mereçam ser revelados. Foram convocados a participar enviando um poema gravado/filmado, exprimindo um desejo, lendo algum excerto de um livro, festejando aqueles que não estando estarão sempre cá.
Cada vez que participaba en un operativo sacaba la Beretta y el silenciador del zulo, cogía su cuaderno y su bolígrafo, y los echaba en la mochila junto al ejemplar de Larraín, No hemos venido para quedarnos, una especie de declaración de principios que regía su vida desde hacía muchos años. Por lo menos desde cuando participó en un encuentro político en Amiens y se le acercó Víctor Saravia, alias Tito, un anciano de origen sefardí y nacionalidad cubana por accidente y solidaridad, instructor de terroristas en el Líbano durante los años 70, y le habló de los 36 hombres que llevan el peso del Mal en el mundo, 36 hombres anónimos que no saben lo que representan ni tampoco que si desaparecieran, el mundo sería un lugar de justicia e igualdad, 36 hombres cuyas actitudes y acciones encarnan el infierno en la tierra para el resto de los seres humanos, 36 hombres a los que hay que ir eliminando uno a uno, esperando que con cada muerte el mundo mejore un poco… — …el problema, compañero Carlos, es que matas a uno y enseguida es sustituido por otro — le dijo Tito con aquel rostro enjuto y barbilampiño, de mirada hipnótica, penetrante, un rostro que parecía salir directamente de alguna judería mediterránea —. Por eso hay que seguir buscándoles con paciencia, recopilando información, desenmascarándoles poco a poco, ir hasta sus madrigueras, y ejecutarles en el máximo de los silencios. Sin comunicados, sin reivindicaciones ni visibilidad, de forma anónima, como viven ellos, con la esperanza de que en un golpe de suerte consigamos eliminar a los 36, hacer un pleno, como si estuviéramos en una partida de bolos, ¿me entiendes? El camarero regresó con las vueltas y las dejó en un platillo. Carlos Lopetegui le hizo un ademán para que se lo llevara, diciéndole que se quedara con ellas, que hoy invitaba él a alguno de esos ricos que se van sin pagar. Él siempre entiende a los que necesitan ser entendidos. — Gracias, gracias — le respondió el camarero, cogiendo el platillo y mirando con familiaridad a aquel hombre que días después no supo describir al agente que le tomó declaración, no sé, era normal, le dijo, sí, sí, mayor era, para nada joven, no, más de cincuenta seguro que tenía, pero claro como ahora todos llevamos máscara no sabría reconocerle, se le veía educado por cómo hablaba y también porque se sentó en la terraza con su libro y cuaderno y de vez en cuando veía que escribía algo, y claro que no, la pistola ni la vi, pero no me pregunte nada más porque le mentiría, le repito llevaba una mascarilla… El que no solía llevaba mascarilla cuando salía a correr todas las tardes por el parque era Román Álvarez-Bueno Vasconcelos de Cabanillas, Marqués de Ribera del Segura, más conocido en los círculos en los que se movía simplemente como Román Junior por ser primogénito y heredero de Román Álvarez-Bueno de la Sota. 53 años, complexión atlética, no muy alto, un metro setenta, pelo entrecano, miembro de numerosos consejos de
administración, hombre discreto y culto, amante de la música, poseedor, según decían, de una de las mejores colecciones de pintura del periodo de entreguerras, y que desconocía por completo la extrañeza. Porque la extrañeza, piensa Carlos, sólo la sienten los más débiles, los que están ahí abajo, bien abajo, los que una mañana se levantan, van al baño frío de invierno y, cuando se reflejan en el espejo, no reconocen el rostro de esa mujer o de ese hombre que ayer recibió un telegrama, un mensaje de móvil, un correo o una llamada para comunicarle que a partir de determinada fecha van a prescindir de sus servicios. La extrañeza de los que se convierten en desconocidos para sí mismos de la noche a la mañana, y cruzan la frontera para vivir en la incertidumbre de quién ser a partir de esa imagen que le devuelve la inmovilidad del espejo. Pero Román Junior corre, se mantiene en forma, le importa mucho su salud, a fin de cuentas somos responsables de nuestro cuerpo, hace también taichí, lo dice el dossier, y se retira un mes y medio al año en Bhaja, distrito de Puna, para purificarse porque él nunca ha sido un extraño para sí mismo. Sabe quién es. Tiene inmunidad. Dispone de futuro. Sí, el dossier que le envió Tito es exhaustivo, tiene datos, fotos, hábitos y documenta también que, por ejemplo, por cada metro cúbico de gas que se consume o transita por la desollada piel de la península tiene garantizado un porcentaje que, en su total falta de extrañeza, Román Junior no duda en desviar a paraísos fiscales, ganancias que el año pasado acompañó con miles de cartas que sus varios gabinetes firmaron y enviaron por él a trabajadores de minas, sucursales de banco, astilleros y empresas logísticas, temas de fusiones y dividendos, y todo esto se sabe, se dice Carlos, se intuye, se publica, se judicializa, pero Román Junior corre junto a su impunidad cada tarde como si nada. Román Junior no sabe lo que es el dinero. Es un hombre sano. Corre. Llegó la hora. Por fin Carlos Lopetegui vio cómo se abría la pesada hoja de madera maciza del portal y salía caminando, despreocupado, Román Junior, y sintió la enorme extrañeza del momento, la paloma muerta, el camarero con su bandeja, la algarabía de los repartidores, la dulzura de la tarde caer, la placidez, los ruidos amortiguados de la ciudad… Cerró el libro y lo guardó junto con el cuaderno en la mochila, la Beretta le estaba pidiendo que le pusiera el silenciador, lo puso, se levantó y se dirigió con paso decidido pero sosegado hacia Román Álvarez-Bueno Vasconcelos de Cabanillas, Marqués de Ribera del Segura, para ver si hoy podían hacer el pleno a los 36. Escrito en Lisboa, entre los meses de octubre y diciembre de 2020
Iñaki Abad (Bilbao, 1963) es escritor. Dirigió el Instituto Cervantes de los centros de Nápoles, Milán, Praga, Mánchester y Budapest. Asimismo, ha desempeñado labores de responsabilidad como subdirector de Cultura y director de Cultura en la sede central. Actualmente es director del Instituto Cervantes de Lisboa.
Dossier
Correntes D’Escritas 75
Correntes D’Escritas 76
Companheiros de viagem
Dossier
Ilide Carmignani Em frente à secretária tenho a fotografia de um homem robusto de barba e cabelos negros. Tem óculos escuros, um blusão de pele e sorri no meio de um rio de ovelhas brancas. Por trás dele estende-se o cinzento ténue de uma pradaria recortada por gradeamentos precários, pedaços de madeira e arame farpado. O homem estende os braços e é como se aquele gesto abrisse a fotografia, a desdobrasse diante do meu olhar. O horizonte não se vê, mas eu sei que é amplo, imenso, porque estamos na Patagónia. Aquele homem robusto de barba e cabelos negros chama-se Luis Sepúlveda e fez-me companhia durante vários anos da minha vida: todas as manhãs me sentei a traduzir as suas histórias até à noite, vinte e cinco livros, um número considerável de poemas, dois guiões e já nem sei quantos artigos que transmitiram a sua respiração, a sua cor aos meus dias, um fio de palavras tão longo que ligou a ele para sempre aqueles pedaços do meu passado: filhos que nasciam, pais que morriam, alegrias e tristezas da vida. Uma velha metáfora afirma que traduzir é como pôr os pés nas pegadas do outro, e é grande o esforço para medir exatamente o passo, para que seja daquele exato comprimento, ora tão pesado, ora tão leve, na sua terra latino-americana. Às vezes falta-nos o terreno debaixo dos pés: aquela pradaria é feita de ervas que não têm nome em italiano e aquele verão ofuscante resplandece durante o nosso inverno. Às vezes a desorientação é mais subtil: por que razão o escritor deu aquele passo e escolheu precisamente aquele caminho de entre todas as estradas que podia percorrer na sua língua, na sua literatura? A perseguição torna-se mais complicada, não basta estudar a paisagem, é preciso escutar. Então, no silêncio, ressoa baixinho a voz de um ausente, que fala de outros e de si e, como sempre acontece, fala de si mesmo falando de outros. Claudio Magris disse que “para traduzir uma cor que desce num entardecer sobre a curva de um rio, seria preciso de alguma forma saber o que foi aquela vivência, naquele entardecer”. Acho que é para esta intimidade extrema, quase assustadora, que tendem todos os tradutores, apesar de se contentarem, ao fim e ao cabo, com simples pressentimentos, pequenas intuições, minúsculas descobertas. Por vezes a intimidade de papel que liga o tradutor ao escritor é abalada por um encontro real. A primeira vez que me
encontrei com Luis Sepúlveda foi há vinte e seis anos e poderia falar-vos da ansiedade que me acompanhou durante toda a viagem desde as colinas toscanas até Milão, porque um tradutor é recebido com uma tenaz desconfiança, não é da casa nem de cá nem de lá da fronteira que separa duas línguas, dois mundos, e está sempre num precário equilíbrio sobre a aresta subtil que divide fidelidade e beleza. Poderia falar-vos da aflição que naquela noite me dominou no hall do hotel quando do elevador saiu um homem robusto de barba e cabelos negros exatamente igual ao da fotografia publicada nos jornais que dizia por baixo “Luis Sepúlveda”. Poderia falar-vos do olhar interrogativo que ele me dirigiu, da hesitação na minha voz quando me apresentei, e do abraço de urso com que quase me ergueu do chão ao mesmo tempo que me agradecia por lhe ter emprestado a minha voz perante os leitores italianos. Não traditrice, mas compañera de camino. Se as fotografias mostrassem também o outro lado, ou seja, a cena que tem à frente o homem de barba e cabelos negros, sei que veria um homem magro, vestido de escuro, de barba e cabelos ruivos que o preto e branco tornaram cinzentos, Daniel Mordzinski, o fotógrafo que a tirou. Desde aquela noite de há muitos anos atrás, em Milão, Luis Sepúlveda nunca mais deixou de me convidar para me sentar à sua mesa, ao lado de Daniel, de Pelusa, de Luigi, de Bruno, dos amigos de tantos países distantes, reunidos diante de um copo de vinho, e eu não poderia estar-lhe mais grata pelo caminho que percorremos juntos. Não consigo dizer como me dói agora a sua cadeira vazia. Tradução de Regina Valente
Ilide Carmignani é a tradutora para italiano de toda a obra de Luis Sepúlveda e de autores como Bolaño, Cortázar, García Márquez, Neruda, Onetti, Paz, entre outros. Desde 2000 organiza os encontros profissionais sobre Tradução do Salão do Livro de Turim.
Dossier
Correntes D’Escritas 77
Em Punta Arenas | 1998
Correntes D’Escritas 78
Com Sepúlveda na nascente do Ave
Dossier
Pena Real O Armindo tem, de há muito, o hábito de, nos primeiros dias de férias (uma semana, semana e meia…) se ausentar, sozinho, para um sítio ermo: nem jornais, nem televisão, nem rádio – nenhum contacto com o mundo. É uma espécie de necessidade profilática de desintoxicação da overdose de informação com que diariamente coabita. Quando, no início de agosto de 98, se refugiou, como sempre, na aldeia de Agra, nas fraldas da Cabreira, levava consigo sete “sepúlvedas” – O Velho que Lia Romances de Amor, Mundo do fim do mundo, Nome de Toureiro, Patagónia Express, História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar, Encontro de amor num país em guerra e Diário de um Killer sentimental (por ordem de publicação) – que tinha adquirido mas que até essa data se mantinham em lista de espera. Eram a parte principal da sua bagagem. A mulher e a filha pequenita, que lá o levaram, bem queriam encher-lhe a casa, uma das muitas que a aldeia recuperara para acolher visitantes, mas ele teimou em ficar apenas com a roupa necessária para uns dias (não sabia quantos) de calor intenso em meio serrano. Da alimentação cuidaria a D. Conceição, a tecedeira da aldeia e dona de um pequeno café, que se comprometera a levar-lhe a casa, às horas normais, a refeição combinada. Em menos de 24 horas, o Armindo leu o primeiro livro, o dO Velho que Lia Romances de Amor. Disse que leu? Disse mal – eu acho que ele devorou aquilo: leu como um faminto, tanto que no primeiro dia não saiu de casa e nem à refeição (em que mal tocou) parou de ler. Adormeceu com o livro nos braços e, poucas horas após, retomou a leitura, que concluiu ao almoço do segundo dia, uma terça-feira. Aí sim, saciado o espírito e porque a fome apertava, até a generosa travessa de costelas de cordeiro assado no forno se tornou escassa: nem as batatas, a condizer, escaparam. E, ao início da tarde, com Mundo do fim do mundo debaixo do braço, o Armindo lá foi, carreiro acima, por entre carvalhos, faias e bétulas, desviando-se dos fetos e das urzes que lhe escondiam a passagem, espreitando aqui e além o prado onde pachorrentas vacas minhotas pastavam com as suas crias inquietas, sobressaltando-se uma e outra vez com o movimento da vegetação rastejante por efeito da fuga de uma cobra
assustada ou pelo despertar ruidoso da perdiz que, receosa, fugia do ninho… Encontrado entretanto o rio que descia, e que vira na aldeia sob a ponte de Parada e ao lado de moinhos há muito desaprendidos da função, foi pelo leito do rio, cada vez mais menino, que o Armindo subiu, saltitando de pedra em pedra, um peixinho aqui, outro ali, rãs ao sol que de imediato mergulhavam nas pequenas poças entre pedras, cobras a nadar tranquilas na água tépida, tão cristalina que apetecia bebê-la. “Comê-la” – disse o Armindo quando falou da pureza daquela água, que ele imaginava impossível naquele rio, que só conhecia negro e pútrido no seu leito terminal, onde a sua Póvoa se abastecia. “Comê-la”, insistiu, como quando se referia a outras bebidas com que igualmente se deleitava. Lembrou-se da filha, menina de 6 anos, que meses antes, ao ver o Ave, entre Santo Tirso e Famalicão, vestido de um negro com que só a abundante espuma contrastava, e ao saber que era daquela água que os poveiros e vilacondenses bebiam, lhe disse – Ó pai, mas então esta água tem de ser muito bem lavada… – Pois tem, minha filha – E a conversa entre eles lá desaguou na problemática da poluição, que o Armindo com dificuldade explicou a uma menina cujos olhos puros tinham dificuldade em compreender tanta maldade humana sobre a natureza – e logo sobre a água, que depois tinha de ser lavada… Após uma hora bem esforçada, estava o Armindo no alto da serra, donde brotam, feitas água, as lágrimas da Cabreira que, perdido o cavaleiro por quem se apaixonara, ali ficou eternamente a chorar – e chora tanto que gerou um fio de água permanente, a que se juntam, serra abaixo, os de outras apaixonadas preteridas. E ao rio que as suas lágrimas originaram, e a quem imploram que as leve, a voar, ao encontro dos seus distantes amados, chamaram Ave, não sei que ave, se a mais esbelta, que dizem ser o canário, se a mais capaz de agarrar o amado e o trazer de volta, o falcão ou outra das poderosas rapinantes que por aqui vivem. Depressa o Armindo se esqueceu da mitologia do lugar. Sentado numa pedra, no meio das primeiras águas do rio, à sombra de um ramo de amieiro, embrenhou-se no Mundo do fim do mundo, que era outro bem distante mas podia muito bem ser aquele onde se encontrava. Até ao crepúsculo daquela
longa tarde foram quase cem as páginas atentamente lidas e anotadas. As restantes duas dezenas leu-as calmamente, em casa, na manhã do dia seguinte. E decidiu que ia ser essa a sua disciplina de leitura ao longo daqueles dias: sempre naquele pequeno paraíso da nascente do Ave, sentado na mesma pedra, com os pés no fio de água acabada de nascer, à sombra do frondoso ramo do amieiro. Um livro cada dia, iniciado ali, após a caminhada digestiva, cuja duração entretanto se ia abreviando, e concluído na manhã do dia seguinte, em casa. Nome de Toureiro, Patagónia Express, Encontro de amor num país em guerra e Diário de um killer sentimental, foram, por esta ordem, os “sepúlvedas” que, um por dia, acompanharam o Armindo naquelas tórridas tardes. Fugindo à sequência cronológica da publicação – que era, por norma, o critério ordenador da leitura – deixou para o fim a História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar. Ele desconfiava que essa era uma história interessante para contar à filha, e queria tê-la fresca na memória quando ela viesse, com a avó e a mãe, resgatá-lo deste exílio. E quando tal aconteceu, ao fim da tarde do sétimo dia, acabadinho de ler o sétimo “sepúlveda”, o Armindo desafiou a filha, que havia concluído o primeiro ano da primária, a ler a “História da Gaivota”, acentuando “…e do gato que a ensinou a voar”. – O gato ensinou a gaivota a voar? – Sim – Ai quero saber como foi – Então lê – Ó pai, o livro é grande, lê tu, que lês mais depressa. E, estendidos na cama, o Armindo lá começou a leitura, a filha muito atenta (– Ó pai, então se a gaivota vai morrer, como é que o gato a vai ensinar a voar? – Não, filha, esta é a gaivotamãe; a que o gato vai ensinar a voar é outra, a filha dela, que vai nascer do ovo que a mãe confiou ao gato – Ah, está bem…) e o Armindo tramado, porque percebeu logo que a Raquel lhe não consentiria o golpe que o sono recomendava: saltar páginas, para abreviar. Tinha que ler tudo, e certinho, porque ela, além de atenta, estava entusiasmada com a fidelidade do Zorbas aos compromissos assumidos, sob juramento, perante a gaivota-mãe. – Ó pai, este é que é um gato sério. Um gato a defender e a criar uma gaivotinha! Se fosse um dos nossos, se calhar, matava-a – Pois, os nossos são gatos do campo; este é da cidade, aliás nem é bem da cidade, é do porto de mar, onde há muitas gaivotas, mas também há muita comida para os gatos, bem melhor que as gaivotas. Sucediam-se as peripécias do processo educativo da gaivota, para o qual o Zorbas convocou os seus amigos Secretário, Sabetudo, Barlavento e Coronello, que em concílio se entendiam sobre a melhor técnica de ensinar a gaivota a levantar voo, primeiro um voozinho, depois um mais longo.
A Raquel entusiasmava-se com as peripécias que eles engendravam, particularmente o sábio Sabetudo – Nome bonito, pai – Pois, mas numa equipa também é necessário um Secretário. E, para os gatos que vivem num porto de mar, é importante um Barlavento. Sabes o que é um Barlavento? – Não – Barlavento é o lado de onde sopra o vento. Se o gato tem esse nome, é certamente porque nos barcos onde acompanhava os pescadores era colocado no bordo desse lado – Ah… – O Armindo continuava a leitura; e a filha: – Ó pai, porquê isto? Ó pai, porquê aquilo?, Ó pai volta a ler… – . As 120 páginas pareciam intermináveis, era alta madrugada, o Armindo caía de sono, e a filha, impiedosa quando o pai deixou cair o livro sobre o peito: – Ó pai, vamos ler outra vez! – Filha, agora lê tu – Não, pai, eu quero viver a história. E contigo a ler é melhor… – Fizeram um acordo: agora só liam as partes da história que tinham despertado mais atenção à pequena. Era quase todo o livro, mas o Armindo ia saltando capítulos, como ela bem percebia: – Ó pai, estás a fazer batota. Não foi isso que combinámos – E zangava-se, exigindo que o pai voltasse atrás. Foi uma segunda leitura quase integral do livro, concluída já de manhã, o Armindo perdido de sono, a filha fresca que nem uma alface, mortinha por contar à mãe e à avó a história de um gato que era muito diferente dos que ela conhecia – Ó pai, este livro é para mim, que o quero ler às minhas amigas – E assim foi. De manhã, desafiou a mãe e a avó a ouvirem-na, deleitadas, a ler como gente grande; e à tardinha, mal chegou a casa, correu a reunir-se com a Sofia e a Sara, que, segundo contou, a ouviram com edificante atenção. Quando o Armindo contou a história destas férias com “sepúlvedas” na nascente do Ave, foi tão expressivo na narração do episódio de leitura com a filha que a Manuela Ribeiro logo o desafiou: – Ó Armindo, tens de escrever isso para a revista do “Correntes”, que este ano é sobre o Sepúlveda. – O Armindo disse que sim, mas eu, que o conheço, percebi logo que não: continuaria nas suas escritas menores e burocráticas. Cada vez que o interpelava sobre esse compromisso, melhor percebia que ele, por modéstia, se não atreveria a colocar-se ao lado de autores com vasta obra publicada, de quem não ousava sequer aproximar-se para pedir que lhe autografassem os livros que comprara. Em defesa da honra dele, atrevi-me eu a contar, o mais fielmente que pude, o essencial duma história em que um livro, parecendo uma fábula, mas sendo efetivamente uma parábola, reaviva a esperança de que este mundo pode ter salvação, e não apenas no campo ficcional. A filha do Armindo, que recomendou este “sepúlveda” a incontáveis amigos, reforçou, graças a ele, a decisão de se tornar militante das causas ambientais. É, há alguns anos, engenheira do ambiente.
Dossier
Correntes D’Escritas 79
Correntes D’Escritas 81
“Agora não consigo...”
Dossier
Enza Campino e Riccardo Campino
Com Riccardo Campino | Orvieto. 2011
“Agora não consigo pensar para além do amanhã quando espero a prova da tua vida pela boca de outros” Depois de termos lido os delicadíssimos versos de Carmen que concluem o poema dedicado a Luis investe-nos a enorme responsabilidade de utilizar com maior consciência as palavras escolhidas para o recordar. E soa incrivelmente autêntica a definição concebida por um outro ilustre poeta, Attilio Bertolucci, “ausência mais aguda presença”, para todos aqueles que o amaram mesmo não gozando da sua constante proximidade! Nós, livreiros, tentamos honrar Luis Sepúlveda cuidando para que nunca faltem todos os seus livros nas nossas lojas, prontos para serem entregues aos leitores que os pedem, ou expondo-os com o maior cuidado possível para atrair a atenção de quem não o conhece. Na nossa consciente loucura sabemos bem que quem lê um determinado livro nunca mais será a mesma pessoa, a sua vida vai ficar mais rica e a sua alma nutrida. Luis, generoso, sempre reconheceu este papel aos livreiros, e todos nós tivemos com ele uma relação especial.
Os seus livros inflamaram-nos desde o início, mesmo sem o conhecermos pessoalmente sentíamos que éramos membros do mundo editorial em que cada elemento leva a bom termo a sua própria missão como numa estafeta: alargar a base dos leitores, conquistar continuamente leitores novos e veicular palavras e pensamento dos autores em que acredita, tarefa que Luis Sepúlveda nos facilitou. Não creio que existam leitores de um único livro seu. Quer se tenha iniciado com um romance, com contos, com uma fábula, não parou aí. E depois, os seus livros são daqueles que fazem bem mesmo fechados, uma vez terminados ou mesmo antes de serem lidos, mantidos perto como fonte de energia que se pode tocar a cada momento, carburante puro! Quando sobre eles se pousa o nosso olhar vêm à tona todos os estímulos que nos transmitiram, o prazer que sentimos ao comprá-los, ao lê-los, e somos literalmente inundados por um sentimento de gratidão. Eu e o meu irmão Riccardo, livreiros desde sempre, temos o privilégio de organizar encontros entre escritores e leitores que não são simples apresentações de livros mas, agora temos a certeza,
Dossier
Correntes D’Escritas 82 verdadeiros encontros de amor. Sabe-o bem quem neles participa com entusiasmo e emoção. No Golfo de Gaeta, há 28 anos, e em Orvieto durante um vinténio, demos vida a manifestações que levaram a estas zonas autores provenientes de todos os cantos do mundo, entre os quais Amin Maalouf, David Grossman, Tahar Ben Jelloun, Carlos Ruiz Zafon, Bjorn Larsson, Paulo Coelho, Robert Harris, ‘Alaa Al-Aswani, e muitos outros. Em 1998, em particular, começámos a “cortejar” Luis Sepúlveda. Estivemos com ele em Roma num evento especial e levámos-lhe de presente um livro de fotografias sobre a cidade de Gaeta. Folheou-o e disse-nos logo: “Está bem, eu vou!”. Era o nosso primeiro convidado internacional! Preparámos o evento com um cuidado quase obsessivo, o local escolhido foi o encantador espaço exterior da Igreja de San Francesco em Gaeta, que enchemos com centenas de cadeiras e um estrado colocado mesmo em frente à entrada. Luis ficou espantado. Lembro-me claramente que a certa altura deu uma estrondosa gargalhada: “Ah, se o meu avô me visse!”, comentou, e explicou-nos logo a seguir que se tratava de um “anarquista devorador de sacerdotes” o qual, quando ele era criança, o incitava a fazer chichi em frente às igrejas. Ele, apesar de ser bastante tímido, acabava por ceder. Nas fotografias tiradas naquela ocasião parecemos todos um pouco suspensos entre o céu e a terra, no fundo uma posição ideal para falar de liberdade e humanismo, tal como aconteceu naquela noite com ele e Santiago Gamboa. Interminável o tempo dos autógrafos, dos apertos de mão, dos abraços. Momentos verdadeiramente inesquecíveis! E digo-o com conhecimento de causa, porque desde o dia do seu desaparecimento temos recolhido muitos testemunhos dos leitores presentes nessa altura e nas ocasiões posteriores em que tiveram a possibilidade de estar com ele: as lágrimas, os pensamentos afetuosos. Muitos até nos enviam a fotografia do livro que autografou naquela noite. O ator Edoardo Siravo (que emprestou a sua voz aos audiolivros italianos de Sepúlveda) dedicou-nos um vídeo com a sua fascinante interpretação de um excerto de Histórias daqui e dali. As recordações de todas estas pessoas estão de tal maneira vivas, palpitantes, ricas de histórias e pormenores que fazem pensar num evento ocorrido no verão passado e não há 23 anos atrás... Naquela mesma noite Luis prometeu-nos que voltava. No ano seguinte manteve o compromisso, mas comunicou-nos a data escolhida com apenas uma semana de antecedência. Fizemos todos os possíveis por publicitar o evento com panfletos distribuídos nas praias, anúncios de megafone junto dos estabelecimentos balneares, automóveis com altifalantes às voltas pela cidade, passa-palavra entre amigos, telefonemas (nessa altura eram estas as redes mais sociais) e também daquela vez conseguimos reunir centenas de leitores de todas as idades. A sua gaivota era já muito amada, e por isso também vieram muitas crianças. Antes do banho de multidão com os leitores levamo-lo a dar um passeio num veleiro para que pudesse admirar o Golfo do mar, a Montagna Spaccata, (a lenda segundo a qual os piratas
encontravam refúgio na Gruta do Turco acendeu a sua fantasia), moradias e mausoléus de cônsules romanos, o bairro medieval do Castello Angioino-Aragonese: ficou encantado. Disse-nos que aquela paisagem lhe fazia lembrar Gijón, a terra espanhola que tinha escolhido para morar anos depois de ter sido obrigado a deixar o Chile: sentia-se verdadeiramente em casa e nós não podíamos estar mais felizes. No fim de contas, esta é a sensação que desejamos que possam experimentar os autores que convidamos para o nosso evento “Livros na crista da onda”: a perceção de um lugar que está à espera deles, cheio de leitores conscientes da maravilha de poder partilhar algumas horas com alguém que ficará na sua memória para sempre. Quando termina o encontro os leitores vão-se embora, mas nós, livreiros, permanecemos os fidelíssimos guardiões das suas obras extraordinárias. Há escritores com os quais se instaura ao longo dos anos uma relação quase de parentesco, mesmo que não se esteja muitas vezes com eles. Nós vivemos com os livros e todos os dias, quando os mudamos de sítio, os expomos, os aconselhamos, passamos ao lado deles, nos apercebemos do valor da presença de quem os escreveu nas nossas existências. Luis fez com que a nossa comunidade, depois de o ter escutado e lido, ficasse ainda mais coesa. Depois connosco conheceu Orvieto, pequena cidade medieval no centro de Itália, onde durante uns decénios gerimos uma livraria no histórico Palazzo dei Sette. Na primeira vez veio com os seus amigos escritores Herman Rivera Letelier, Alfredo Pita e Santiago Gamboa para se encontrar com os leitores por ocasião do terceiro aniversário da antologia ‘La frontiera scomparsa’ dirigida por ele para a editora Guanda. Chegaram todos ao entardecer diante da majestosa catedral da cidade, numa praça considerada uma das mais belas de Itália: recebemo-los, como mereciam, rodeados de beleza. Mas a verdadeira surpresa foi o percurso que seguimos para chegar ao Palazzo del Popolo, onde se realizou o encontro. Pelo caminho havia, dos dois lados da rua, muitas lojas típicas em cujas montras estavam expostos os seus livros. O espanto que manifestaram quando viram alguns exemplares a espreitar pelo meio de lingerie requintada, de esculturas de madeira ou de produtos típicos tais como salsichas de javali e queijos locais, para além da famosa pastelaria Montanucci onde se destacava um gigantesco bolo com uma grande fénix de chocolate, símbolo da editora. Alegria e doce barrigada coletiva. Com estas premissas, o encontro foi magnífico e emocionante, de tal maneira que os participantes nunca mais os queriam deixar ir embora... Posteriormente Luis regressou a Orvieto por ocasião da publicação de outros livros seus e apresentou-nos Carmen, a sua metade nesta terra, a sua consorte (nomem omen, precisamente aqueles com quem se partilha a sorte): a partir daí ficámos ainda mais ligados. Depois veio com Daniel Mordzinski, e foi outra das suas dádivas apresentar-nos uma pessoa dotada também de
Com os livreiros Enza e Riccardo Campino, Carmen Yáñez e Paola Avigdor | Orvieto. 2011
um coração grande e generoso. E que encontro! Enquanto conversávamos sobre o seu livro, as fotografias de Daniel enchiam um enorme ecrã, permitindo aos presentes fazer uma viagem inesquecível nas suas vidas. Mais tarde convidámo-lo juntamente com Carlo Petrini, o fundador de Slow Food: pontos de vista comuns, empenhamento e militância por um mundo melhor. Toda a vida de Luis foi dedicada a este valor. Voltámos a encontrar-nos depois por ocasião de muitos festivais, edições da Feira do Livro, eventos especiais organizados pelo seu editor que sempre nos incluiu, bondade sua, quando Luis e Carmen vinham a Itália. Nós levávamos-lhe sempre o chocolate de que ele tanto gostava em embrulhos amarrados com um marcador de livros impresso para o efeito com uma frase sua. Assim, dizia-nos ele, interrompíamos as suas boas intenções de dieta. A última vez que nos encontrámos foi por ocasião do seu septuagésimo aniversário, que privilégio! Os seus abraços tão envolventes, gargalhadas, histórias, comoção, bolo com velinhas, brindes e uma dedicatória canora, ‘Gracias a la vida’. Ça va sans dire, querido Luis! Contei estes pequenos episódios estritamente pessoais, mas tenho a certeza de que muitos livreiros em todo o mundo viveram coisas semelhantes, porque ele entrou em todas as livrarias
que conseguiu, consciente da importância de olhar nos olhos os seus próprios leitores. “Se há uma coisa de que sempre me arrependi é de não ter mantido uma lista das livrarias que visitei nos últimos trinta anos, no meu caminho de escritor que se encontra com amigos e que o faz em sua casa, porque é isso que são as livrarias: a casa, a morada fora do tempo do escritor, e os livreiros e as livrarias são os guardiões que, quando regressa, lhe dizem: está tudo em ordem, podes receber os teus amigos”. Luis, estarás sempre nas nossas casas de livros e é precisamente aqui que aquilo que um outro amigo teu, Paco Taibo II, define como ‘a república democrática dos leitores’ vem honrar-te, adquirindo um livro para si ou para oferecer, dando um outro sentido a este gesto que, ainda que simples, é mágico e importante. Tradução de Regina Valente Enza e Riccardo Campino, livreiros desde sempre entre Gaeta, Formia e Orvieto organizam manifestações literárias e feiras do livro ao ar livre durante o período estivo. São uns dos fundadores da Scuola Librai Italiani, curso de alta formação que prepara os que querem enveredar por esta profissão fascinante. Tiveram a seu cargo uma rubrica do setor no Il Sole 24 Ore, importante jornal diário económico, e são membros dos júris de vários prémios literários de prestígio.
Dossier
Correntes D’Escritas 83
Correntes D’Escritas 84
Sepúlveda, sem meias-palavras
Dossier
Sofia Branco Não me lembro bem da primeira vez que o li, mas sei que já foi em idade adulta, provavelmente durante a universidade e depois de ler Gabriel García Márquez pela primeira vez. Seria este autor a guiar-me na descoberta daquilo a que se convencionou chamar literatura latino-americana (com todo um continente de diversidade dentro). Ainda que esta possa ser uma coletivização abusiva, que homogeneíza o que é necessariamente distinto, não deixa de nos colocar num universo muito próprio, de língua, metáforas, imagens, ambientes. Que viria a encontrar em Sepúlveda – assim só, sempre me referi a ele apenas por este nome. Gabriel García Márquez fazia parte do currículo de jornalismo na universidade, sobretudo porque A notícia de um sequestro é todo um manual. Sepúlveda não estava lá, mas podia ter estado por aquilo que nos podia ensinar sobre o escrutínio, a vigilância, a atenção aos detalhes, o dar voz aos marginais (como ele próprio os identificava), o exercício da memória e a preservação da História. O jornalismo deve fazer tudo isso. Após essa primeira descoberta de uma outra literatura, mais solta e colorida, movendo-se no universo do realismo mágico, mas também mais ativista e combativa do que a que havia lido até aí, procurei autores vários para provar os matizes desse universo comum. Assim me perdi pelas páginas dos brasileiros (Jorge Amado, sobretudo), dos argentinos (Jorge Luis Borges, mas confesso que a custo), dos peruanos (Mario Vargas Llosa), dos cubanos (Guillermo Cabrera Infante), dos mexicanos (Laura Esquivel e Octavio Paz, que me fez companhia durante a minha viagem solitária pelo México, um mês de mochila às costas), dos uruguaios Mario Benedetti e Eduardo Galeano (está tudo em Las venas abiertas de América Latina, que deve ser lido em espanhol). Do Chile viria também a ler muito de Isabel Allende, que ainda hoje é presença assídua nas estantes da minha mãe, e Pablo Neruda, a espaços. Dos livros para a realidade, Cuba foi a minha porta de entrada na América Latina (e que porta de entrada…). Fiquei com o bichinho daquela cultura. É um continente com cheiro, som e sobretudo cor. Que no México é explosiva, como nos quadros de Frida Kahlo e nos murais de Diego Rivera. Já pus o pé no Brasil, no México, na Argentina, no Uruguai…. E fiquei sempre com vontade de voltar, desse logo porque um pé não chega para alguns destes países-muitos.
Visitei o Chile em novembro de 2007, uma primeira e até agora única vez. Foi uma visita-relâmpago, em trabalho, para acompanhar a XVII Cimeira Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, que ficou conhecida pelo incidente entre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e o rei Juan Carlos de Espanha, que perguntou ao primeiro “¿Por qué no te callas?”. Em Santiago, a formalidade do Palácio de La Moneda contrastava com o protesto dos pintores na Plaza de Armas, que, à época, reclamavam ter sido perseguidos em ditadura e continuarem a ser perseguidos em democracia. Creio que se ouvia Victor Jara nas poucas ruas de Santiago que tive oportunidade de calcorrear. Mi canto es de los andamios Para alcanzar las estrellas Que el canto tiene sentido Cuando palpita en las venas Del que morirá cantando Las verdades verdaderas No las lisonjas fugaces Ni las famas extranjeras Sino el canto de una lonja Hasta el fondo de la tierra Estava Michelle Bachelet no poder e lembro-me de sentir orgulho por isso – uma mulher na liderança do país de Salvador Allende, esse mito dos revolucionários. Y ahora el pueblo que se alza en la lucha con voz de gigante gritando: ¡Adelante! El pueblo unido jamás será vencido, ¡el pueblo unido jamás será vencido! (canção de protesto chilena) À primeira e rápida vista, achei o Chile mais contido, mais higiénico, mais europeu, como costumam dizer os vizinhos. Mas, à mesa do restaurante Ligúria, entre pisco sours e carne com sabor e aspeto disso, a algaraviada estava lá também. À mesa, ali como aqui é onde a cultura se come e bebe. Vista a Plaza de Armas, a estátua de Salvador Allende, as praças, as avenidas, os jardins, as esculturas, os chistes solta-
Dossier
Correntes D’Escritas 85
Na casa de Neruda em Cantalao. O Quisco | Valparaiso. 2015
Dossier
Correntes D’Escritas 86
Na casa de Neruda em Cantalao. O Quisco | Valparaiso. 2015
Correntes D’Escritas 87
Todos fueron entrando al barco. Mi poesía en su lucha había logrado encontrarles patria. Y me sentía orgulloso (Pablo Neruda, Los españoles del ‘Winnipeg’) Senti-me em casa, olhos postos naquele mar parecido com o da Póvoa, revolto e insubmisso. Suponho que Sepúlveda gostasse tanto da Póvoa também por isso. Não me lembro que livro de Sepúlveda li primeiro, mas apostaria na História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar, que por certo lerei ao meu filho daqui a uns anos. Demos-te todo o nosso carinho sem nunca pensarmos em fazer de ti um gato. Queremos-te gaivota. Sentimos que também gostas de nós, que somos teus amigos, a tua família, e é bom que saibas que contigo aprendemos uma coisa que nos enche de orgulho: aprendemos a apreciar, a respeitar e a gostar de um ser diferente. Creio que depois terei enveredado pelo Sepúlveda das inesquecíveis crónicas de viagens, do qual destaco Patagónia Express. Creio que levei este livro para a viagem no comboio real Expresso do Oriente, que liga Istambul a Budapeste. – Este livro será um convite para uma grande viagem. Promete-me que a farás. – Prometo. Mas para onde vou viajar, avô? – Possivelmente a lado nenhum, mas garanto-te que vale a pena. O Velho que Lia Romances de Amor é o livro de Sepúlveda mais original. – Olha, com toda a confusão do morto já quase me esquecia. Trouxe-te dois livros. Os olhos do velho iluminaram-se. – De amor? O dentista fez que sim. Antonio José Bolívar Proaño lia romances de amor, e em cada uma das suas viagens o dentista abastecia-o de leitura. – São tristes? - perguntava o velho. – De chorar rios de lágrimas - garantia o dentista.
– Com pessoas que se amam mesmo? – Como ninguém nunca amou. Em 1997, o jornalista Torcato Sepúlveda (juntaram-se dois) relatou, nas páginas do Público, um episódio singular sobre uma passagem do escritor chileno por Lisboa. À chegada ao aeroporto da Portela, mostrou o passaporte. “O agente abriu lentamente o passaporte, folheou-o, olhou demoradamente a fotografia, encarou o sul-americano que tinha à frente com a minúcia de um cão de fila. Sepúlveda pensou que o esperava o calvário de Madrid. Engoliu invectivas contra a puta da vida, contra os países do Sul da Europa que cada vez mais se parecem com os do Norte, e contra o capitalismo internacional, até. O agente da fronteira, tímido, ousou perguntar: ‘O senhor chama-se Luis Sepúlveda?’ – ‘Sim’, regougou. ‘O senhor é romancista?’ – ‘Sou’, replicou já um tanto amaciado. ‘É autor de um livro chamado O Velho que Lia Romances de Amor?’ – ‘Sou’, disse já espantado. ‘Então, passe, seja feliz em Portugal, e escreva um livro sobre nós’”. Cheguei finalmente ao Sepúlveda que acabaria por me marcar mais: o ativista político, social, ambiental (chegou a integrar as fileiras do grupo ecologista Greenpeace). Sepúlveda não é um escritor neutro, tem convicções, toma posições. Sepúlveda esteve preso e foi torturado nos cárceres de Augusto Pinochet, general que liderou o golpe que viria a derrubar, e assassinar, Salvador Allende, e que se transformou num dos mais sanguinários e longevos ditadores do mundo. Antiimperalista, escreveu em Uma história suja: Onde está a América Latina? Não a procurem no mapa planetário, mas no universo da incerteza. (...) A América Latina faz fronteira a norte com o ódio e não tem outros pontos cardeais. As Rosas de Atacama resultaram de uma visita ao campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, onde descobriu gravada numa pedra a frase: “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história”. Decidiu contar a história de “todos aqueles que não aparecem nos noticiários, que não têm biografias, mas apenas uma esquecediça passagem pelas ruas da vida”. Sepúlveda emprestava a voz aos marginais –e só por isso já mereceria ser lido.
Sofia Branco nasceu na Póvoa de Varzim. É Jornalista e Presidente do Sindicato dos jornalistas desde janeiro de 2015. Vive em Lisboa mas não perdeu o sotaque, nem a têmpera do Norte. É feminista e ativista por um mundo mais justo e paritário, à espera que a História se escreva com relato de homens e mulheres.
Dossier
dos das paredes pintadas, desenhas, rabiscadas dos bares…, Santiago não seria a primeira razão para voltar ao Chile. A duas horas de carro e todo um país pelo meio, estava Isla Negra. Ali chegados, Pablo Neruda e uma casa-barco que se espraia em direção ao mar, pelo meio relva, flores coloridas, sinos, uma locomotiva, uma âncora enterrada na terra, o túmulo do poeta e da sua mulher, coberto de bromélias.
Correntes D’Escritas 88
Quando Lucho me levou ao cinema
Dossier
Manuel Alberto Valente A minha amizade com Luis Sepúlveda, para lá do mundo da edição, propiciou-me experiências inesquecíveis, momentos únicos de cumplicidade e partilha, e também o encontro com pessoas que se tornaram centrais na minha vida. Na impossibilidade de falar aqui de tudo isso (que foi tanto e tão bom), gostaria de recordar que foi pela sua mão que tive direito a conhecer “por dentro” o para mim fabuloso mundo do cinema. Por duas vezes. Em 1999, Miguel Littín (o conhecido cineasta chileno sobre quem García Márquez escreveu em 1986 o livro La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile) realizava o filme Tierra del Fuego, a partir do romance homónimo de Francisco Coloane. O guião era assinado pelo próprio, por Sepúlveda e por essa grande figura da cultura italiana que foi Tonino Guerra. As filmagens principais tinham já decorrido na Patagónia, mas a história exigia que um conjunto de cenas fosse filmado na Galiza. Lucho, Daniel Mordzinski e eu encontrámo-nos em Santiago de Compostela e seguimos no meu carro até Lugo. As filmagens decorreriam não muito longe, em duas pequenas aldeias, A Fonsagrada e Cereixido. Graças a Lucho, claro, Littín recebeume com extrema afabilidade e fez de mim um falso assistente, permitindo-me estar ao seu lado durante as rodagens, inclusive numa cena em que, pela intimidade exigida entre um casal, todas as pessoas foram mandadas afastar-se. Fiz também de figurante num enterro, percebendo como uma cena quase
irrelevante pode demorar uma tarde a filmar, com o director de fotografia (Giuseppe Lanci, uma “lenda” que tinha trabalhado, entre outros, com Marco Bellocchio) medindo a luz e obrigando a suspender e a retomar a cena vezes sem fim. Mas o momento “glorioso” veio depois. Filmava-se à noite uma festa de passagem de ano – precisamente do ano que dava início ao século XX. Várias pessoas da aldeia iriam participar como figurantes e a dada altura, para minha surpresa, Littín disse à responsável do guarda-roupa que me vestisse de padre – e lá desencantaram uma batina que, com a ajuda de uns alfinetes e de uns pontos de costura, se conseguiu acomodar ao meu corpo franzino. Depois, nesse cenário repleto de luz e pompa, ergui várias vezes a minha taça de champanhe, gritando como todos os outros “Dios bendiga a Julius Popper, pacificador de Patagonia!”. No centro da acção, maquilhada como uma mulher já velha, estava...Ornella Muti. Já não era, claro, a Ornella Muti que Francesco Rosi dirigira dez anos antes, mas mantinha a sua pose de estrela. Mal falei com ela, mas recordo-a acompanhada do seu cabeleireiro italiano, a quem chamava “amore!, amore!”, e deslocando-se num Mercedes 500 para percorrer uns meros cem metros desde o Hostal Cantabrico, onde estava instalada a zona de vestuário e maquilhagem, para que os fotógrafos não a pudessem apanhar com um rosto de velha. Senti-a como uma glória em decadência que numa aldeia perdida da Galiza conseguia ser de novo o centro do mundo.
Manuel Alberto Valente durante as filmagens de Nowhere | Santiago de Compostela. 2001
Manuel Alberto Valente durante as filmagens de Nowhere | Fonsagrada. 2001
Com Ángela Molina e Manuel Alberto Valente nas filmagens de Nowhere | Santiago de Compostela. 2001
Luis Sepúlveda deve ter ficado com essa minha imagem de padre na cabeça e decidiu pregar-me uma partida. Em 1998, realizou ele próprio o filme Nowhere, que tinha como principal protagonista nada mais nada menos que Harvey Keitel. Mais uma vez as filmagens decorreram na Patagónia, mas um par de cenas veio depois a ser filmado em Barcelona. No jardim de um velho convento, um par de resistentes a Pinochet pedia a intervenção de um padre estrangeiro radicado no Chile para tentar a libertação de um companheiro preso. Esses resistentes chamavam-se Angela Molina e Manuel Bandera. O padre estrangeiro e altamente reacionário...era eu. Luís Sepúlveda pregara-me esta partida, mas fizera-o como mandam as regras. As minhas medidas tinham sido enviadas para um alfaiate de Roma e tinha à minha espera um hábito que me assentava como uma luva. Instalaram-me num hotel, onde um carro da produção me ia buscar para as filmagens. Tive, evidentemente, de decorar o meu papel, num espanhol com sotaque que a condição estrangeira do padre perdoava. Quando cheguei ao local da maquilhagem, Angela Molina
estava na cadeira ao lado (a Angela Molina de Carne trémula, de Pedro Almodóvar, lembram-se?). Apresentou-se como se eu não a conhecesse e, com uma humildade que não esqueço, propôs-se “repassar” comigo os diálogos que dali a pouco iríamos gravar. Gravámos a cena em meia dúzia de takes, creio, e no fim tive direito à cerimónia usual de quando um actor termina a sua participação num filme. Ao meu lado, estavam Daniel Mordzinski, Anne-Marie Metailié (a editora francesa de Lucho, que tinha ido de Paris), o saudoso Antonio López Lamadrid, da Editora Tusquets, e muitos outros novos amigos – esse milagre que Lucho sempre fazia acontecer. Nunca mais encontrei Angela Molina, mas recordo-a com saudade e respeito – pelo exemplo da enorme actriz que se põe ao nível de um jovem aprendiz de feiticeiro. Na Barcelona que sempre amei, ela era precisamente o contrário da curvilínea italiana que gritava amore! amore! a um cabeleireiro gay numa aldeia perdida da Galiza. Eram milagres destes que a amizade e a generosidade de Lucho propiciavam. Como esquecê-lo?
Dossier
Correntes D’Escritas 89
Correntes D’Escritas 90
Luis e o Cinema
Dossier
Massimo Vigliar A primeira vez que conheci Luis Sepúlveda, há mais de vinte anos, tinha-me ido buscar ao aeroporto de Oviedo, nas Astúrias, e uma das primeiras coisas que me disse foi “eu sou muito amigo do Vittorio Gassman, em casa mostro-te as fotografias”. Quando entrei naquela casa tão cheia de literatura, de sentimento, de poesia, apresentou-me a sua encantadora mulher, Carmen, e mostrou-me imediatamente a fotografia dele com Vittorio Gassman. “É uma fotografia do meu amigo Daniel Mordzinski”, disse-me, “quando o conheceres, passará também a ser teu amigo”, acrescentou. Luis era um apaixonado pelo cinema italiano, tinha crescido com o neorrealismo e os grandes filmes do pós-guerra, mas a sua paixão era a “comédia à italiana”, que fazia rir e onde ao mesmo tempo eram muitas vezes denunciados os abusos e as baixezas da nossa classe política. Conhecia todos os filmes de Risi, Monicelli, Scola, dizia que “Tão amigos que nós éramos” era um filme imenso, com um guião incrível. Quando Luis passou três meses em Roma, em minha casa, em 2000, fomos várias vezes convidados para jantares ou festas com gente da área: atores e realizadores ficavam muito emocionados por conhecer aquele grande escritor sul-americano tão amado em Itália, Luis ficava contentíssimo por conhecer personagens que tanto tinha admirado no ecrã. Conhecer Gillo Pontecorvo foi muito emocionante para Luis; quando lhe apertou a mão disse-lhe que A batalha de Argel era um dos melhores filmes que tinha visto. Também com Nino Manfredi, com Giuliano Montaldo, com Alessio Boni, com Ornella Muti se encontrou muitas vezes e passaram horas a conversar. Instaurou-se uma grande simpatia entre ele e Ettore Scola: começaram a falar e nunca mais pararam. Recordo-me, anos mais tarde, em 2015, quando Luis estava em Pordenone por ocasião de um festival literário, que a minha mulher, Stefania, organizou em nossa casa, em Roma, um jantar com Ettore Scola, as filhas e Gianni Minà, à base das suas tão amadas mozzarelle de búfala: infelizmente foi atacado pela primeira maldita pneumonia e ficou internado uma semana no hospital. O grande interesse de Sepúlveda pelo cinema, pelo teatro, pelo espetáculo em geral é demonstrado também pelo facto de a sua carreira ter começado muito jovem na rádio chilena, onde o seu primeiro trabalho foi contar aos ouvintes histórias e filmes com grande sucesso. Os seus livros são a prova tangível de que quando escrevia tinha em mente uma estrutura cinematográfica. De facto, quando decidimos tentar fazer um filme retirado do livro Diário de um killer sentimental todos os argumentistas a
quem confiámos a primeira versão nos responderam: este livro já é um guião. E foi o guião que cruzou os nossos caminhos. Luis tinha aceitado escrever um guião a partir do livro Terra do fogo, de Francisco Coloane, e foi durante aquele trabalho que nasceu a nossa amizade. Naquele período fui com ele ao Chile para um encontro com Coloane: foi um dos primeiríssimos regressos ao Chile depois do seu exílio. A viagem, apesar de maravilhosa, foi difícil devido às muitas recordações que encontrou. Mostrou-me o sítio onde o prenderam, a horrível villa Grimaldi onde Carmen foi torturada, todas as zonas de Santiago lhe recordavam um período empolgante primeiro, trágico depois. Fomos ter com o grande mestre Coloane que para Luis era um farol; consideravao o Manzoni da América do Sul, mas o grande mestre era tranquilo, admirava Sepúlveda e a sua história de ecologista, o seu percurso com a Greenpeace pela defesa das baleias. Falaram da forma como Sepúlveda tencionava estruturar o guião de Terra do fogo e Coloane estava de acordo. No fim, no momento das despedidas, o velho de cabelos brancos não se levantou da poltrona, viu-nos ir embora e disse “por favor, Sepúlveda, las balleñas, las balleñas”. Era uma recomendação para tratar bem as suas amadas baleias. Viajávamos muito pela Patagónia com o nosso amigo Daniel Mordzinski, naquele período. Um dia decidimos alugar um pequeno avião para atravessar o estreito de Magalhães e ir a Porvenir, a terrinha mais ao sul do mundo. Parece incrível, mas foi ali que abriu em 1905 o primeiro cinema do continente sulamericano: ainda me lembro da emoção de Lucho ao acariciar a câmara Pathé, uma das primeiras. Depois da experiência da Terra do fogo Lucho apresentou-me um tema intitulado Ninguna parte que ele queria levar ao cinema e fazer disso o seu exórdio como realizador. Comecei então a procurar apoios financeiros e pré-vendas televisivas, mas para isso precisávamos de apresentar uma primeira versão do guião. Luis veio para Roma e começou a trabalhar. Enquanto esteve em nossa casa, recebi um convite para participar na festa dos 80 anos do meu amigo Tonino Guerra, o grande argumentista que vivia em Pennabilli, na Romagna. Perguntei se podia levar Sepúlveda, até para ele pedir conselhos ao mestre. Tonino ficou entusiasmado com aquele encontro. Foram três dias de grandes emoções para todos, a começar pelo bilhete de parabéns que Luis escreveu, desejando a Tonino que completasse “todos os anos que tinha de completar”. À noite não conseguia levá-lo para o hotel porque continuava a perguntar
Correntes D’Escritas 91
Dossier
Com Massimo Vigliar e Miguel Littín durante as filmagens de Tierra del Fuego | Punta Arenas. 1998
Com Massimo Vigliar e Ornella Muti durante as filmagens de Tierra del Fuego | Punta Arenas. 1998
Com Massimo Vigliar em Porvenir. Tierra del Fuego | 1998
Dossier
Correntes D’Escritas 92
a Tonino: como nasceu Amarcord de Fellini? Como conseguiste escrever a cena de amor dos dois velhos em A noite de São Lourenço dos irmãos Taviani? Parecia que nunca mais acabava. A curiosidade infantil apenas ressurge num adulto quando está realmente empolgado para conhecer qualquer coisa que ainda lhe é estranha. Luis era assim com o cinema. Por fim, a estrutura inicial do guião ficou terminada e regressámos a Pennabilli cheios de entusiasmo: Luis estava mesmo feliz, sobretudo por entrar no mundo cinematográfico através da inteligência, da cultura e da ajuda do homem que tinha escrito a maior parte das grandes obras-primas do cinema italiano do pós-guerra, de A aventura de Antonioni a Matrimónio à italiana, de De Sica, de O navio de Fellini a Nostalgia de Tarkowsky, e tantos outros. Naquela altura começou a preparação do filme e Lucho parecia então uma criança feliz com os seus brinquedos: falava com os técnicos, com o futuro diretor da fotografia (o grande Beppe Lanci), com o compositor Nicola Piovani, premiado com um Óscar. Perguntava tudo e informava-se sobre tudo, queria chegar bem preparado à primeira claquete: também na escolha dos atores foi minucioso, vimos praticamente todas as atrizes italianas antes de escolhermos Caterina Murino. A história de Ninguna parte centra-se na detenção de quatro revolucionários chilenos que são encerrados numa prisão horrível, na sua relação humana com os seus próprios carrascos. Um papel importante é o de um personagem bizarro, pertencente à resistência contra a ditadura, que ajuda os prisioneiros a fugir do campo. Sepúlveda pensou para este papel no grande ator americano Harvey Keitel. Fomos à Sicília, a uma pequena aldeia nas encostas do Etna onde Keitel estava a rodar um filme: conversou toda a noite com Luis sobre o papel que deveria interpretar e depois saiu porque estavam a filmar de noite. Para nossa surpresa, na manhã seguinte quando acordámos às 7.30 para partir encontrámos um belíssimo pequeno almoço preparado por Keitel. Partimos depois para uma viagem de duas semanas no norte da Argentina à procura de lugares, juntamente com Daniel e Roberto Manni (o produtor executivo). Finalmente, a dez quilómetros de Salta, uma fantástica província no norte da Argentina, encontrámos um local desértico que nos parecia perfeito para construir o acampamento militar e a prisão. Um mês depois começou o filme: no primeiro dia de filmagens eu olhava para ele de longe, sem lhe falar, porque sabia que estava por um lado concentrado no seu trabalho e por outro aterrorizado por poder cometer erros. Tinha uma relação maravilhosa com toda a equipa que realmente o adorava.
Tínhamos alugado uma casa, o Luis, o Daniel e eu. Quase todas as noites, eu cozinhava a massa que tinha levado de Itália e que Sepúlveda adorava (especialmente alla Amatriciana). Daniel e eu estávamos mortos de cansaço e ele continuava a rever algumas cenas e a preparar outras novas. Ao fim de seis semanas mudámo-nos para Espanha, para Barcelona, onde teriam lugar as últimas cenas com Angela Molina. Durante a montagem Luis confiou muito no responsável pela edição, manteve-se quase à parte por respeito profissional. Finalmente o filme saiu, mas infelizmente não foi um grande sucesso, o que não tocou de maneira nenhuma a nossa simpatia e respeito mútuo. A nossa amizade continuou com muitos encontros, viagens e novos projetos. No verão daquele ano, o diretor do Festival de Cinema de Veneza pediu-lhe para fazer parte do júri: ele ficou muito feliz porque ia ter oportunidade de ver muitos filmes de qualidade. Fomos depois contactados por um jovem chileno, Diego Meza, que queria fazer um documentário sobre a expropriação das terras chilenas por parte de multinacionais americanas e canadianas para a criação de fábricas de alumínio. Andámos a passear pelo Chile durante um mês e foi uma experiência fantástica, especialmente a nível humano, conhecemos pessoas que vivem de simplicidade, camponeses do sul profundo, apaixonados pela sua terra e receosos de a ver desaparecer. Recordarei sempre a frase de um deles: “não é preciso ser astrónomo para amar as estrelas” O documentário resultou muito bem, mas a coisa mais importante é que Corazon Verde, como se intitula, teve sucesso na incrível empresa de bloquear a construção das centrais de alumínio, deixando assim a terra às pessoas que nela habitavam. Ultimamente estávamos a preparar um novo documentário, Um dia na vida de um Mapuche: a história de um dia inteiro deste povo maravilhoso, com as suas tradições e os seus ritmos de vida. Este trabalho permitiria combinar a sua paixão pela terra, pelo Chile e pela arte, e iniciar aquela que seria a sua última viagem de regresso à terra onde tinha nascido o seu sangue. Tradução de Regina Valente
Massimo Vigliar produtor e distribuidor italiano apaixonado pela cultura e língua espanholas, produziu numerosos filmes na Argentina, Chile e Espanha. Distribui um catálogo impressionante de 600 filmes italianos em todo o mundo. Produziu os dois filmes de Luis Sepúlveda como realizador: Ninguna Parte e o documentário Corazon Verde, e, como guionista, Tierra del Fuego.
Correntes D’Escritas 93
Dossier
Francisco Coloane. St Malo
Vigliar e Littín (em pé) durante as filmagens de Tierra del Fuego | Punta Arenas. 1998
Com Harvey Keitel | Vales Calchaquíes. 2001
Dossier
Correntes D’Escritas 94
Mosaico com fotos das filmagens do Nowhere | Vales Calchaquíes. 2001
Dossier
Correntes D’Escritas 95
Correntes D’Escritas 96
Lo bastante joven para saberlo todo
Dossier
Rosa Montero
Hace muchos años, precisamente en una de las ediciones de Correntes d´Escritas en Póvoa de Varzim, mantuve una inesperada conversación con Lucho Sepúlveda. Era bastante tarde, de madrugada, y estábamos exprimiendo el bar del hotel, nosotros y varios amigos más, todos al retortero, como solíamos hacer en esas noches felices. En un momento determinado, Lucho y yo nos quedamos solos en un rincón de la barra y nuestra charla se fue convirtiendo en algo más profundo. Sepúlveda y yo nos conocimos y tratamos durante años y siempre nos hemos tenido mucho afecto, pero nunca fuimos lo que se dice íntimos, no con esa candente intimidad que compartía, por ejemplo, con Daniel Mordzinski, Mario Delgado Aparaín o José Manuel Fajardo. Y, sin embargo, tuve la sensación de que aquello que me decía no se lo había contado a nadie, al menos no hasta entonces. Y lo que me vino a explicar era que la gente le pedía cosas todo el rato; que algunos se acercaban a él como amigos, pero que se estaba dando cuenta de que en realidad buscaban algo; que muchos esperaban demasiado de él, y que a veces se sentía utilizado y atrapado. Desde aquella noche ha transcurrido mucho tiempo y ya sabemos que la memoria es una facultad poco fiable, pero creo que las palabras que le adjudico reflejan con razonable fidelidad tanto lo que dijo como su evidente angustia. Porque estaba angustiado. Nunca le había visto tan serio y creo que nunca volví a verle así, desnudo de todo fingimiento, sin la envoltura protectora de su personaje juguetón y a veces falsamente feroz, como cuando amontonaba el ceño en plan pirata adusto contemplando la proximidad de una tormenta. ¿Y por qué se abrió de ese modo ante mí? Supongo que intuyó que yo podría haber pasado por algo parecido (ya se sabe que los enanos poseen un sexto sentido que les permite reconocerse a simple vista), porque de lo que hablaba Lucho era de los estragos de la fama; y aunque la mía estaba y está a infinitos eones de distancia de su nivel de celebridad mundial, es cierto que conozco esa sensación vaciante y aturdidora de ser de repente el centro de un remolino de yoes que no te representan y que no sabes quiénes son. Y si yo en mi rincón experimenté eso, en las alturas de Lucho la cosa debió de adquirir dimensiones insoportables. Esto es, de pronto
Sepúlveda estaba siendo asaltado por centenares de personas que decían amarle, pero que en realidad amaban a un Lucho que se habían inventado y que era distinto para cada individuo. Y entre todos esos fans seguro que había mucho pedigüeño, y es comprensible que Sepúlveda, que era una de las personas más buenas y generosas que he conocido, se sintiera abrumado por un absurdo sentimiento de obligación de responder a todas esas demandas. No sé qué le contesté ni si mis palabras le sirvieron de algo; supongo que ya el poder comentarlo fue un alivio. Yo no le conté esa conversación a nadie; de hecho, es la primera vez que estoy hablando de ello. Y es que desde la muerte de Lucho me he puesto a pensar en él, supongo que como todos; a repasar mis recuerdos, intentando descifrarle en su totalidad, comprenderle mejor. Rememoré aquella charla y ahora me parece más relevante; intuyo que Lucho lo pasó mal con su tremenda fama, al menos al principio; que las desmesuradas expectativas de los demás sobre él pusieron palos en las ruedas de su alegría vital. Por eso tuvo dificultades para escribir durante cierto tiempo. Supongo que le espantaba que le tomaran tan en serio. Luego, con los años, me parece que supo colocar todo lo que la fama había descolocado. Pero creo que ese grandísimo escritor nunca se sintió del todo a gusto bajo el rutilante y marmóreo personaje del Escritor Consagrado. Porque Lucho era un niño. Su talento creador y su inteligencia, unido a su corpachón de oso mapuche, hacían que a veces pareciera muy imponente, pero yo creo que siempre fue un niño. Y ese era su gran don, el maravilloso origen de su fuerza: que, pese a las cosas tremendas que había vivido, consiguiera mantenerse intacto, inocente, curioso, luminoso, alegre y eterno. En algún lugar, muy dentro de él, estaba el conocimiento de la oscuridad. El recuerdo de que el mal existe. Pero había logrado combatirlo y vencerlo con el chisporroteo de sus narraciones. James M. Barrie, el autor de Peter Pan, que conocía bien el poder de la infancia, solía decir: «No soy lo bastante joven para saberlo todo». Pues bien, Lucho lo sabía todo porque no llegó a abandonar el País de Nunca Jamás. Tenía algo misterioso, y ahora entiendo por qué: era un infiltrado en el espeso y falso mundo de los adultos. Iba disfrazado
Dossier
Correntes D’Escritas 97
Da esquerda para a direita: José Ovejero, Enrique de Hériz, Rosa Montero, Luis Sepúlveda. Sentado: Juan Gabriel Vásquez | Gijón. 2008
de serio escritor famoso, pero no podía evitar que se le notara el risueño deleite de vivir, el talante juguetón, el regocijo. Tejía y destejía la realidad contando todo el rato las historias más alucinantes, rocambolescas anécdotas de su pasado que durante años yo pensé que eran inventadas, pero que hoy me siento tentada de creer. Porque su palabra era capaz de cambiar el mundo. Me he dado cuenta de que, durante todos estos meses de su desaparición, cada vez que le recuerdo me baila una sonrisa en los labios. Qué maravilla haber dejado tanta luz en el hueco doloroso de su ausencia.
Rosa Montero (Madrid, 1951). Novelista, ensayista y periodista. Su larga carrera en prensa está fundamentalmente asociada al diario El País. Es Premio Nacional de las Letras y su obra está traducida a más de veinte idiomas.
Correntes D’Escritas 98
Penúltimo Viaje
Dossier
Miguel Rojo Todos los viajes tienen algo de primavera, algo de viaje por las aguas color vino de la amistad, como Ulises cuando iba con sus colegas por las luminosas aguas del Egeo. Pero todos los viajes tienen también sus Itacas finales, sus puertos definitivos donde ya no cabe más que el silencio. Y el recuerdo. Y aquel viaje que estábamos a punto de emprender también los tuvo. Regresábamos a casa después de haber pasado una semana estupenda de reencuentros y de literatura en la feria literaria de “Correntes d’Escritas” en Póvoa de Varzim. Y nos sentíamos felices por lo vivido y también por la partida. Y es que todo viaje si se pretende que sea feliz ha de tener la recompensa del feliz retorno a casa. Antes de salir de Póvoa aquel luminoso 23 de febrero hubo el turno las despedidas. Los abrazos. Los hasta el próximo año. Los amigos que se dejan y las buenas intenciones. A Luis Sepúlveda se le veía especialmente contento. Había disfrutado aquellos días en Póvoa. Qué difícil saber ahora, recordar cuál fue su última palabra cuando se acercó para despedir a Rosa Montero o lo que le dijo a Manuel Valente, cómo fue de intenso el abrazo que le dio a Manuela Ribeiro o el brillo de los ojos con el que se despidió de su querido amigo Daniel Mordzinski, al colombiano Juan Gabriel Vásquez o a su Negro del alma Mario Delgado… Sería tan hermoso como imprudente poder detener el tiempo, dar marcha atrás y saborear en lo que merecían aquellos últimos gestos, las definitivas palabras del amigo que ya nunca más vamos a volver a oír. Pero, por suerte, nada de esto ocupaba nuestras mentes cuando, tras las despedidas, los tres (Carmen Yáñez, Luis Sepúlveda y yo) enfilamos camino de España aquella mañana. Pretendíamos regresar por el Norte, por Galicia, pero Lucho, que no era precisamente un Emerson Fittipaldi en cuanto a reflejos, cogió la carretera que se dirigía hacia el Este. Pero nos daba igual el camino a seguir. Íbamos contentos y planificando ya dónde podríamos parar a comer. Mientras Carmen buscaba un lugar con el teléfono móvil, Lucho ejercía ahora de copiloto. Recuerdo que me dijo que había disfrutado con mi ponencia en los encuentros. Había sido un pequeño guiño que le había hecho. Años atrás, había escrito yo un relato tan delirante como irreal en el que contaba cómo mi padre, Guardia Civil, se reunía con los otros guardias del cuartel al final del día para disertar sobre Platón y Nietzsche o discutir acaloradamente tomando partido unos por Camus y otros por Sartre… Aquel pequeño relato le había hecho tanta gracia que, un tiempo después, Lucho publicó su propia versión con el título “Observaciones sobre la intelectualidad” (Editorial La
otra Orilla). Cuando preparaba mi charla para los encuentros de Póvoa me acordé de aquello y escribí otra histriónica historia sobre mi padre, el Guardia Civil, y su oposición casi armada a que me dedicara a la literatura. Mientras tanto, Carmen, diligente y precisa con las nuevas tecnologías, ya había encontrado la ruta para acercarnos a un buen lugar donde detenernos a descansar y comer: Puebla de Sanabria (otra Póvoa). Cuando llegamos, la ciudad celebraba el carnaval. Había gente disfrazada cantando por las calles, y los bares y terrazas estaban repletos de clientes. Comentamos la diferencia que había entre España y Portugal, dos países separados apenas por una delgada línea en el mapa, la España más bullanguera y festiva frente a un Portugal sobrio y reconcentrado; dos maneras distintas de entender el mundo de dos pueblos tan próximos y a la vez tan alejados. De eso hablamos cuando buscábamos un sitio donde nos dieran de comer. Al final lo logramos en uno de los restaurantes próximo a la plaza. (Mientras esperábamos a que nos dispusieran la mesa, Lucho pidió sentarse vehementemente. Estaba cansado. Recuerdo con toda claridad que aquello me extrañó porque llevábamos un par de horas sentados en el coche; un cansancio premonitorio que, sólo ahora, puedo entender). Ya en el comedor, preguntamos al camarero qué era lo que todo el mundo estaba comiendo con tan reconcentrada satisfacción. – Habones a la sanabresa. Sin dudarlo, los tres pedimos lo mismo. La comida estaba deliciosa, aunque no fuera apta para hipertensos o gente de mal colesterol o delicado estómago. Lucho, como era costumbre en él, cuando algo le gustaba especialmente, se pasó la mano por el bigote y la barba mientras exclamaba: – ¡Están cojonudos! ¿Cómo se prepara esta delicia? – le preguntó al camarero. El hombre pareció molesto por la interrupción de su trabajo pero, de pronto, reconoció al comensal que tenía delante, al escritor que había estado en mil batallas de la vida y había escrito más de un libro genial; así que, tras saludarlo efusivamente, accedió con gusto a darle la receta: – Mire usted, don Luis, yo tengo su libro Un Viejo que Leía Novelas de Amor como libro de cabecera y no hay noche, tras regresar cansado del trabajo a casa, donde vivo solo, que no lo coja para releer alguna de sus maravillosas páginas. Usted ha hecho que mi vida rutinaria y cansada y solitaria no sea mi triste vida, sino otra mucho más luminosa y plena… Así que de mil amores le doy la receta para dos personas:
Correntes D’Escritas 99 Mire usted, coja 200 gr. de habones, 1/2 cebolla, 4 dientes de ajo, 2 hojas de laurel, tocino fresco, panceta, chorizo tierno, jamón y oreja de cerdo. Y para el refrito póngale usted, don Luis, 1 cucharada de pimentón, 4 cucharadas de aceite de oliva y 2 dientes de ajo laminados. Con todo eso ponga los habones en remojo durante 48 horas cambiándole el agua cada 12 horas aproximadamente. Transcurrido éste tiempo ponemos todos los ingredientes en una cazuela a fuego lento. Cuando empiece a cocer añadiremos un poco de agua fría para asustar los habones y así evitar que se nos separen los hollejos del habón. Repetiremos éste proceso otras dos veces más. Una vez empiece a hervir lo dejaremos unas dos horas, espumando de vez en cuando. Cuando los habones estén cocidos retiraremos la media cebolla, los dientes de ajo y las hojas de laurel. Sacaremos todo el acompañamiento y lo trocearemos, podemos trocearlo en pequeño y añadirlo de nuevo a la cazuela. Una vez, admirado don Luis, hayamos troceado la carne, pondremos en una sartén el aceite de oliva con los ajos laminados y cuando empiecen a dorarse retiraremos la sartén del fuego y pondremos en ella el pimentón. Removemos y añadimos a la cazuela de los habones y dejamos cocer unos 10 minutos. Y así tendrá usted un plato para chuparse hasta los dedos de los pies, don Luis, y quedar como el señor que usted es ante los numerosos invitados a lo que, bien yo sé, suele llevar usted a comer sabrosos asados a su casa de Gijón. Nos quedamos maravillados por las palabras del camarero, especialmente Lucho, no libre de su necesaria vanidad como escritor. Ya de nuevo en la carretera, tras agradecer al gentil camarero la receta de los Habones a la sanabresa, Lucho nos prometió que la próxima vez que nos viéramos en su casa prepararía aquel plato en recuerdo de aquel estupendo viaje que habíamos hecho para asistir a la “Correntes d’ Escritas”. (Entonces no lo sabíamos, pero aquella sería la última comida que los tres haríamos juntos) Ajenos a un destino que ya trazaba sus tenebrosos caminos, acabamos alcanzando la ciudad de León sin detenernos en ella. El sol comenzaba a ponerse. Al fondo se distinguían las cumbres nevadas de la cordillera Cantábrica que daban acceso a Asturias. Antes de entrar en el puerto nos detuvimos a echar gasolina. Lucho se bajó del coche y, cogiendo una escobilla, se puso a limpiar el parabrisas. Me hizo gracia verlo tan serio con sus gafas de sol mojando la escobilla en el cubo con detergente, y le saqué una foto mientras le gritaba: – ¡Lucho: te voy a hundir en la miseria porque con esta foto le voy a demostrar al mundo entero que no vendes un puto libro, y que en realidad te ganas la vida limpiando coches en las gasolineras! Me insultó y se rió. Recuerdo perfectamente su risa ronca y el taco que soltó. (Tampoco ninguno de los tres podía imaginar
entonces que aquella sería su última foto. Aquel viaje resultó, al final, ser un viaje con demasiados “última vez”) Poco después, ya en el coche, comentó algo que me intrigó notablemente: – Te tengo reservada una sorpresa que creo que te va a gustar. Pero no aclaró nada más, dejándome en suspense. De nada sirvieron mis protestas. Sabía que no merecía la pena insistir. Aquellas palabras suyas se me olvidaron por completo hasta que, después de su muerte, Mario Delgado me dijo que Lucho estaba planeando un viaje en coche para recorrer los tres juntos Francia, Italia y Chequia viendo amigos, editores, librerías… Un puro viaje de amistad y literatura. Una hora más tarde llegábamos a Gijón. Las conocidas calles. El campo de fútbol del Sporting, el río Piles… Ya era de noche. Era el fin del viaje. Aparcamos frente a mi casa y nos bajamos los tres para despedirnos. Le di un beso a Carmen y Lucho me prodigó su abrazo de oso: – Nos vemos pronto Mikel Red – dijo. Pero ya nunca volvimos a vernos. (Quiero pensar que aquel no fue nuestro último viaje. Quiero pensar que en realidad nos queda otro pendiente, ¿verdad Lucho?, para recorrer media Europa juntos. El Negro y yo te esperamos. Ya sabes que no hay prisa).
Com Miguel Rojo durante a 21ª edição de Correntes d ’Escritas | Póvoa de Varzim. 2020
Miguel Rojo (Tineo, Asturias, 1957) es uno de los más destacados escritores de la literatura del Surdimientu asturiano, su obra abarca casi todos los géneros. Escribe tanto en asturiano como en castellano.
Correntes D’Escritas 100
AViagem
Dossier
Francisco Guedes Sabes, a aventura começou com o telefonema do Manuel Valente a desinquietar-me “se não queria ir a Gijón, à Semana Negra, que isto e que aquilo, que ficávamos em casa do Luis Sepúlveda, que ele dizia que havia um montão de gente a ouvir os escritores, que assim e que assado”, e naquele Julho quente de 1997 lá partimos e lá chegámos e lá nos instalámos na tua casa da Colonia del rio Piles. Vocês, a Carmen e tu, tinham chegado há uns dias vindos das europas, ainda havia muita coisa para desembrulhar e arrumar e o vosso linguajar era, para mim, completamente estranho, uma fala que tentava perceber, que tentava ouvir a música, apanhar o ritmo, diga-se que nunca consegui chegar lá perto embora, hoje, perceba razoavelmente bem, porém o portonhol é o que prevalece. Foram dias inesquecíveis de vivências novas, de novas pistas que te fui ouvindo e que fui seguindo, sobretudo o que acabou por me ficar cá dentro foi o sentido cívico que davas às tuas lutas para que o homem voltasse a ser o centro do Universo, o centro do pensamento e da reflexão. Dessa primeira estadia trouxe, do último jantar em tua casa, o teu desejo/pedido: “Arranja uma vila pequena que tenha um porto de mar que é lugar de chegadas e partidas e faremos um festival literário”. Durante os quase setecentos quilómetros de regresso fomos falando no assunto, preenchendo o tempo com hipóteses. Mal chegados falei na Câmara Municipal da terra onde nasci que por artes e bulas não aceitou o projecto. Dois anos depois, em Outubro de 1999, mão amiga levou-me a falar ao vereador da cultura da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, Luís Diamantino, que aceitou e naquele momento nasceu a 1ª edição do Correntes d’ Escritas, em Fevereiro de 2000. Isto é o que se sabe e está escrito. O que me importa para além das linhas anteriores é que as idas a Gijón continuaram, agora para El Salón del Libro, organizado por ti. E nessas visitas ensinaste-me a ouvir o marulho do mar, no Cerro de Santa Catalina, no centro do monumento de 10 metros de altura e 500 toneladas de peso, o Elogio del Horizonte, do escultor basco Eduardo Chilida do qual me ofereceste um livro; e que sensação de liberdade se sente quando estás ali parado e só, frente a esse oceano tantas vezes sulcado por descobridores, a mando dos seus reis, em busca de novas terras por conquistar que sabiam existir, de aventureiros à procura de riquezas que também sabiam existir nessas terras por conquistar, por piratas de várias nacionalidades, sobretudo ingleses, a mando também dos seus reis, portugueses incluídos, a quem dedicaste uma quantidade de linhas que se podem ler no conto Desventura Final del Capitán Valdemar do Alenteixo, do livro
Cuentos del Mar, nove contos com mar em fundo, de nove escritores hispanos. A partir da 1ª edição das Correntes d´Escritas as tuas vindas à Póvoa de Varzim em Fevereiro foram quase seguidas, praticamente todos os anos estavas presente, a nossa relação estreitava-se e era sempre bom ouvir aquele “Xico” vindo lá do fundo acompanhado daquele abraço forte e sincero com que me brindavas e eu retribuía. Depois, nos jantares havia o teu gosto por boa comida, bem confeccionada, os teus constantes chistes regados a tinto e gargalhadas. “Peixe, só os chilenos e os portugueses é que sabem prepará-lo”, disseste num jantar em Matosinhos, sim, lembras-te quando da primeira vez vieste ao LeV— Literatura em Viagem, e mais tarde, na Casa de Chá da Boa Nova, o mar te entrava olhar adentro e a suavidade das ondas te embaciava o olhar, lembras-te? O mesmo olhar que te surpreendi na visita ao Jardin Botánico Atlántico de Gijón quando me explicavas a história daquela luxuriante vegetação, das árvores que tinham atravessado os mares para exemplo do que havia no mundo espanhol. Em Langreo era outra a situação, era a história da luta dos mineiros (li o teu artigo “Astúrias: Vivam os mineiros!”), o olhar também era outro, mais fechado, mais comprometido, mais severo. Sabes, estes vinte e dois anos de conhecimento íam aprofundar-se mais com a tua vinda ao Douro, essa magnífica região de granito e xisto, com cheiro a mosto e sabor a vinho, e frio rigído e chuva diluviana, essa região que querias conhecer e tinhas aceitado o convite que te fiz, que te traria uma semana para conheceres a região torguiana por excelência, para conheceres esse autor que tão bem a cantou, falo de Miguel Torga. Quero ouvir a tua gargalhada no alto de S. Leonardo de Galafura quando lá ao fundo avistares o rio Douro a serpentear pelo vale, quando a respiração se tornar mais lenta no Santuário de S. Salvador do Mundo, quando vires o príncipio do mundo em Vila Nova de Foz Côa, quando provares um bom tinto duriense a acompanhar o jantar, que é farto e bem cozinhado e, finalmente, para um último chiste beberás um excepcional Porto para levares contigo este reino maravilhoso na boca e nos olhos. É o que faço agora, desligo a luz e partirei rumo ao desconhecido na Harley de Cappi e seguirei o Cruzeiro do Sul na rota de Saint-Exupéry até encontrar o rancho de Butch Cassidy, cujo capataz se chama Luis e sabe onde estarás, para te dar aquele abraço forte e ouvir aquele “Xico” de sempre, que não esqueço e guardo, e as nossas gargalhadas ouvir-se-ão sempre.
Dossier
Correntes D’Escritas 101
Francisco Guedes | Matosinhos. 2009
Francisco Guedes A sua ligação aos livros (produção) iniciou nas Edições ASA, em 1986. Em 1999 apresentou à Câmara Municipal da Póvoa de Varzim um projeto que se viria a chamar Correntes d’Escritas e que desde 2000 se realiza e que conta com 21 Edições. É autor de vários livros publicados pelo jornal Público e Publicações D. Quixote, faz traduções e organiza eventos e Festivais literários.
Correntes D’Escritas 102
Tábua cronológica Luis Sepúlveda
Luis Humberto Sepúlveda Calfucura (Lucho) nasceu em Ovalle, Chile, a 4 de outubro de 1949. Frequentou os estudos primários na Escola Francisco Andrés Olea, os estudos secundários no Instituto Nacional de Santiago e os estudos universitários na Escola de Teatro da Faculdade de Arte da Universidade do Chile. Em 1987 formou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Após o golpe militar de 11 de setembro de 1973, foi preso e condenado a 28 anos de prisão, mas graças aos esforços da Amnistia Internacional, foi para o exílio em 1977. Em junho de 1980 mudou-se para a cidade de Hamburgo, na Alemanha. Trabalhou como assistente de direção de Peter Zadek no Deutsches Schauspielhaus de Hamburgo e como correspondente de imprensa em Angola, Moçambique, Cabo Verde e América Central. Junto com a sua esposa, a poetisa Carmen Yáñez, viveu em Gijón, Astúrias, desde 1997 até à sua morte, em 16 de abril de 2020.
Dossier
Bibliografia Essencial 1969
Crónicas de Pedro Nadie. Editorial Nordan-Comunidad. ^
1984
Los Miedos, las Vidas, las Muertes y otras Alucinaciones. Editorial ^ Nordan-Comunidad.
1986
Cuaderno de viaje. Editorial Alcalá Narrativa. ^
1989
Un Viejo que Leía Novelas de Amor. Primeira edição publicada por ^
Ediciones Jucar após ganhar o Prémio Tigre Juan. Edições seguintes: Tusquets Editores. Esta obra teve 52 traduções. Publicado em Portugal como O Velho que Lia Romances de Amor em ^ 1993. Edições ASA. Mundo del Fin del Mundo. Editora Emisión. Primeira edição: ^ Colección Quinto Centenario de la Cámara Chilena del Libro. Edições seguintes na Tusquets Editores. Publicado em Portugal como Mundo do Fim do Mundo em 1994. ^ Edições ASA.
1996
Historia de una Gaviota y el Gato que le enseñó a Volar. Tusquets ^
Editores. Esta obra teve 48 traduções. Publicado em Portugal como História de Uma Gaivota e Do Gato Que ^ a Ensinou a Voar em 1997. Edições ASA. Últimas Noticias del Sur, com fotografias de Daniel Mordzinski. ^ Publicado em Espanha por Espasa Narrativa, no Uruguai por La Banda Oriental e na Argentina por Ediciones de La Flor. Publicado em Portugal como Últimas Notícias do Sul em 2012. Porto ^ Editora.
1997
Desencuentros. Tusquets Editores. ^ Publicado em Portugal como Encontro de Amor num País em Guerra ^
em 1998. Edições ASA. El Juego de la Intriga. Antologia de contos com Paco Ignacio Taibo II, ^ Martín Casariego e Javier García Sánchez. Espasa Narrativa.
1998
Diario de un Killer Sentimental seguido de Yacaré. Tusquets Editores. ^ Publicado em Portugal como Diário de um Killer Sentimental em 1999. ^ Edições ASA.
1994
Nombre de Torero. Tusquets Editores. ^ Publicado em Portugal como Nome de Toureiro em 1995. Edições ASA. ^
1995
Patagonia Express. Tusquets Editores. ^ Publicado em Portugal como Patagónia Express em 1996. Edições ASA. ^ Komplot I. Antología Irresponsable, publicado por Joaquín Mortiz. ^ México
1999
Cuentos Apátridas. Antologia de contos com Bernardo Atxaga, José ^
Manuel Fajardo, Santiago Gamboa e Antonio Sarabia. Ediciones B. Publicado em Portugal como Contos Apátridas em 2001. Edições ASA. ^
2000
Historias marginales. Editorial Seix Barral. ^ Publicado em Portugal como As Rosas de Atacama em 2000. Edições ASA. ^
Correntes D’Escritas 103
2002
Hot Line. Ediciones B. ^ Em Portugal aparece incluído em Diário de um Killer Sentimental, ^ publicado pelas Edições ASA em 1999. La Locura de Pinochet. Editorial Aún Creemos en los Sueños. ^ Publicado em Portugal como O General e o Juiz em 2003. Edições ASA. ^
2003
Tu Nombre Flotando en el Adiós. Antologia de contos, com Nuria ^ Barrios, Mario Delgado Aparaín, José Manuel Fajardo, Mempo Giardinelli, Alicia Giménez-Barlett, José Ovejero, Antonio Sarabia y Horacio Vázquez-Rial. Ediciones B. Poesie Senza Pátria, com Mario Delgado Aparaín, José Manuel ^ Fajardo, Mempo Giardinelli, Hernán Rivera Letelier y Antonio Sarabia. Guanda Editore.
2004
Moleskine: Apuntes y Reflexiones. Ediciones B. ^ Publicado em Portugal como Uma História Suja em 2004. Edições ^
ASA. Salud, Profesor Gálvez y Otras Historias. Ediciones de la Banda ^ Oriental. El Poder de los Sueños. Editorial Aún Creemos en los Sueños. ^ Publicado em Portugal como O Poder dos Sonhos em 2006. Edições ASA. ^ Los Peores Cuentos de los Hermanos Grim. Romance escrito a quatro ^ mãos com Mario Delgado Aparaín. Editorial Seix Barral. Publicado em Portugal como Os Piores Contos dos Irmãos Grim em ^ 2005. Edições ASA.
2006
Los Calzoncillos de Carolina Huechuraba. Editorial Aún Creemos en ^ los Sueños. Publicado em Portugal como Crónicas do Sul em 2008. Edições ASA.
2008
La Lámpara de Aladino. Tusquets Editores ^ Publicado em Portugal como A Lâmpada de Aladino em 2008. Porto ^ Editora.
2009
2013
^ El funeral de Neruda. Peça teatral escrita em conjunto com o drama-
turgo italiano Renzo Sicco. Editorial Claudiana. Publicado em Portugal como O Funeral de Neruda em 2016. Apuro ^ Edições. Palavras em Tempos de Crise. Porto Editora. ^
2014
Una Idea de Felicidad. Escrito com Carlo Petrini. Guanda Editore. ^ Publicado em Portugal como Uma Ideia de Felicidade em 2015. Porto ^
Editora. Una Historia que Debo Contar. Editorial Aún Creemos em los Sueños. ^
2015
Narrar es Resistir. ^
Conversas com o jornalista e escritor italiano Bruno Arpaia. Guanda Editore. ^ A Venturosa História do Usbeque Mudo. Porto Editora.
2016
Historia de un Perro Llamado Leal. Tusquets Editores. ^ Publicado em Portugal como História de um Cão Chamado Leal em ^ 2016. Porto Editora.
2017
El Fin de la Historia. Tusquets Editores. ^ Publicado em Portugal como O Fim da ^
História em 2017. Porto
Editora.
2018
Historia de un Caracol que Descubrió la Importancia de la Lentitud. ^ Tusquets Editores. Publicado em Portugal como História de um Caracol que Descobriu a ^ Importância da Lentidão em 2014. Porto Editora. Vivere per Qualcosa. Escrito com José Mujica e Carlo Petrini. Guanda-Slow ^ Food Editore.
2019
Historia de una Ballena Blanca. Tusquets Editores. ^ Publicado em Portugal como História de uma Baleia Branca em 2019. ^ Porto Editora.
La Sombra de lo que Fuimos. Editorial Espasa. ^ Publicado em Portugal como A Sombra do que Fomos em 2009. Porto ^ Editora.
2010
Historias de Aquí y de Allá. Tusquets Editores ^ Publicado em Portugal como Histórias Daqui e Dali em 2010. Porto ^ Editora.
2012
Historia de Max, Mix y de Mex. Tusquets Editores ^ Publicado em Portugal como História de um Gato e de um Rato Que ^ Se Tornaram Amigos em 2012. Porto Editora.
Cinema 1998
História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar. ^ Dirigido por Enzo d’Alò. ^
2000
Terra do Fogo, com o título original Tierra del Fuego. Filme basado ^ no livro de Francisco Coloane, dirigido por Miguel Littín, com argumento de Luis Sepúlveda, Miguel Littín y Tonino Guerra. Produzido por Massimo Vigliar.
Correntes D’Escritas 104
2001
O Velho que Lia Romances de Amor. Dirigido por Rolf de Heer. Luis ^ Sepúlveda participou na adaptação cinematográfica. Com Richard Dreyfuss no elenco. Nowhere. Primeira longa-metragem de Luis Sepúlveda como reali^ zador, com argumento escrito por si, inspirado no seu livro Encontro de Amor num País em Guerra. Produzido por Massimo Vigliar, tendo como protagonistas Jorge Perrugoría, Harvey Keitel, Luigi Maria Burruano, Laura Mañá, Ángela Molina, entre outros. Ganhou o Prémio do Público em 2002, no FIDMarseille – Festival Internacional de Cinema de Marselha.
2003
Corazón Verde. Curta-metragem documental que venceu o Prémio ^
de Melhor Documentário no Festival Internacional de Cinema de Veneza. Produzido por Massimo Vigliar.
1992
Prémio France Culture Étrangère, por O Velho que Lia Romances de ^ Amor (França)
Prémio Relais H du Roman d’Evasion, por O Velho que Lia Romances ^ de Amor (França)
1994
Prémio Ennio Flaiano (Itália) ^
1996
Prémio Círculo de Críticos de Arte de Chile (Chile) ^
1997
Prémio Terra (Itália) ^
1998
Prémio Salicorne, por História de uma Gaivota e do Gato que a ^ Ensinou a Voar.
Prémio Internazionale (Itália) ^
Dossier
Teatro 1996
2002
Prémio Grinzane Cavour, pelo conjunto da sua obra (Itália) ^
Vittorio Gassman leva à cena no Teatro Politeama Rossetti, de Trieste, ^
2003
2008
2004
com o dramaturgo italiano Renzo Sicco. A Assemblea Teatro, de Torino, adaptou e encenou várias peças ^ baseadas nas obras de Luis Sepúlveda.
2005
El Espacio del Misterio, baseado numa história de Luis Sepúlveda.
Estreia da obra dramática El Funeral del Poeta, escrita em conjunto ^
Prémio Antún (Chile) ^ Doutor Honoris Causa pela Universidade de Toulon, França ^ Doutor Honoris Causa pela Universidade de Urbino, Itália ^
2006
Cavaleiro das Artes e das Letras da República Francesa ^
Rádio 2007 Vida Pasión y Muerte del Gordo y el Flaco. Guião radiofónico.
2009
Prémio Primavera de Novela, por A Sombra do que Fomos (Espanha) ^
2013
Prémio Pegaso de Oro, pelo conjunto da sua obra (Itália) ^ Prémio NordSud Pescarabruzzo (Itália) ^
Prémios 1985
Prémio Ciudad Alcalá de Henares, por Cuaderno de Viaje (Espanha) ^
1988
Prémio Tigre Juan, por O Velho que Lia Romances de Amor (Espanha) ^
1989
Prémio Relatos de La Mar (Espanha) ^
2014
Prémio Vigevano, pelo conjunto da sua obra (Itália) ^ Prémio Taormina por Excelência Literária (Itália) ^ Prémio Chiara, pelo conjunto da sua obra (Itália) ^
2015
Prémio Manzoni (Itália) ^
2016
Prémio Ernest Hemingway (Itália) ^ Prémio Eduardo Lourenço, pelo conjunto da sua obra (Portugal) ^
AXIS VERMAR CONFERENCE & BEACH HOTEL PÓVOA DE VARZIM
Proporcionamos um serviço de elevada qualidade de forma competitiva e diferenciadora. PÓVOA DE VARZIM
ESPOSENDE
VIANA DO CASTELO
PORTO
PONTE DE LIMA
BRAGA
AXIS VERMAR
AXIS OFIR
AXIS VIANA
AXIS PORTO
AXIS PONTE DE LIMA
BASIC BRAGA
www.axishoteis.com