Correntes D’Escritas 78
Com Sepúlveda na nascente do Ave
Dossier
Pena Real O Armindo tem, de há muito, o hábito de, nos primeiros dias de férias (uma semana, semana e meia…) se ausentar, sozinho, para um sítio ermo: nem jornais, nem televisão, nem rádio – nenhum contacto com o mundo. É uma espécie de necessidade profilática de desintoxicação da overdose de informação com que diariamente coabita. Quando, no início de agosto de 98, se refugiou, como sempre, na aldeia de Agra, nas fraldas da Cabreira, levava consigo sete “sepúlvedas” – O Velho que Lia Romances de Amor, Mundo do fim do mundo, Nome de Toureiro, Patagónia Express, História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar, Encontro de amor num país em guerra e Diário de um Killer sentimental (por ordem de publicação) – que tinha adquirido mas que até essa data se mantinham em lista de espera. Eram a parte principal da sua bagagem. A mulher e a filha pequenita, que lá o levaram, bem queriam encher-lhe a casa, uma das muitas que a aldeia recuperara para acolher visitantes, mas ele teimou em ficar apenas com a roupa necessária para uns dias (não sabia quantos) de calor intenso em meio serrano. Da alimentação cuidaria a D. Conceição, a tecedeira da aldeia e dona de um pequeno café, que se comprometera a levar-lhe a casa, às horas normais, a refeição combinada. Em menos de 24 horas, o Armindo leu o primeiro livro, o dO Velho que Lia Romances de Amor. Disse que leu? Disse mal – eu acho que ele devorou aquilo: leu como um faminto, tanto que no primeiro dia não saiu de casa e nem à refeição (em que mal tocou) parou de ler. Adormeceu com o livro nos braços e, poucas horas após, retomou a leitura, que concluiu ao almoço do segundo dia, uma terça-feira. Aí sim, saciado o espírito e porque a fome apertava, até a generosa travessa de costelas de cordeiro assado no forno se tornou escassa: nem as batatas, a condizer, escaparam. E, ao início da tarde, com Mundo do fim do mundo debaixo do braço, o Armindo lá foi, carreiro acima, por entre carvalhos, faias e bétulas, desviando-se dos fetos e das urzes que lhe escondiam a passagem, espreitando aqui e além o prado onde pachorrentas vacas minhotas pastavam com as suas crias inquietas, sobressaltando-se uma e outra vez com o movimento da vegetação rastejante por efeito da fuga de uma cobra
assustada ou pelo despertar ruidoso da perdiz que, receosa, fugia do ninho… Encontrado entretanto o rio que descia, e que vira na aldeia sob a ponte de Parada e ao lado de moinhos há muito desaprendidos da função, foi pelo leito do rio, cada vez mais menino, que o Armindo subiu, saltitando de pedra em pedra, um peixinho aqui, outro ali, rãs ao sol que de imediato mergulhavam nas pequenas poças entre pedras, cobras a nadar tranquilas na água tépida, tão cristalina que apetecia bebê-la. “Comê-la” – disse o Armindo quando falou da pureza daquela água, que ele imaginava impossível naquele rio, que só conhecia negro e pútrido no seu leito terminal, onde a sua Póvoa se abastecia. “Comê-la”, insistiu, como quando se referia a outras bebidas com que igualmente se deleitava. Lembrou-se da filha, menina de 6 anos, que meses antes, ao ver o Ave, entre Santo Tirso e Famalicão, vestido de um negro com que só a abundante espuma contrastava, e ao saber que era daquela água que os poveiros e vilacondenses bebiam, lhe disse – Ó pai, mas então esta água tem de ser muito bem lavada… – Pois tem, minha filha – E a conversa entre eles lá desaguou na problemática da poluição, que o Armindo com dificuldade explicou a uma menina cujos olhos puros tinham dificuldade em compreender tanta maldade humana sobre a natureza – e logo sobre a água, que depois tinha de ser lavada… Após uma hora bem esforçada, estava o Armindo no alto da serra, donde brotam, feitas água, as lágrimas da Cabreira que, perdido o cavaleiro por quem se apaixonara, ali ficou eternamente a chorar – e chora tanto que gerou um fio de água permanente, a que se juntam, serra abaixo, os de outras apaixonadas preteridas. E ao rio que as suas lágrimas originaram, e a quem imploram que as leve, a voar, ao encontro dos seus distantes amados, chamaram Ave, não sei que ave, se a mais esbelta, que dizem ser o canário, se a mais capaz de agarrar o amado e o trazer de volta, o falcão ou outra das poderosas rapinantes que por aqui vivem. Depressa o Armindo se esqueceu da mitologia do lugar. Sentado numa pedra, no meio das primeiras águas do rio, à sombra de um ramo de amieiro, embrenhou-se no Mundo do fim do mundo, que era outro bem distante mas podia muito bem ser aquele onde se encontrava. Até ao crepúsculo daquela