8 minute read

Islândia - Eldfell: a montanha de fogo

Dois geógrafos e um jornalista encaram uma

aventura no Atlântico Norte, desvendando os

mistérios da Islândia

Por Francisco Carlos Rehme

trilha sobe suavemente pela crista. A superfície externa de um vulcão como o Eldfell, na ilha de Heimaey, não apresenta declividade tão acentuada. A aparência tranquilizadora de seu exterior parece desconhecer a alma convulsa do vulcão. Mas, basta cavar com os dedos um pouco do solo escarlate do topo, na borda da cratera, para sentir o hálito morno baforado das entranhas da Terra. Gases quentes e sulfurosos ainda exalam do solo quase sem vida de Eldfell, cerca de cinquenta anos depois da tragédia. A

Era janeiro de 1973, quando a fúria de Eldfell, a montanha de fogo na língua islandesa, soterrou de lavas e cinzas grande parte da ilha e obrigou seus 5 mil moradores a atravessar em fuga o oceano até a costa da Islândia, dez quilômetros ao norte. Alguns voltaram e, em embarcações pesqueiras, participaram de uma luta titânica e improvável: deter o avanço do fluxo de lavas que descia por um dos flancos do Eldfell e que, após consumir parte da cidade de Vestmanneyjar, aproximava-se do porto e de seus prédios comerciais (a

ilha de Heimaey tem na pesca a base de sua economia). Por meio de mangueiras, os destemidos tataranetos de vikings, por vários dias bombeavam água do mar para resfriar o front da lava... Acreditem: o rio de fogo foi detido. Meses depois, a cidade e a economia de Heimaey já estavam sendo reerguidas.

Duzentos e dez metros acima da pequena cidade, lá estávamos nós, dois geógrafos e um jornalista, curitibanos da gema (ou seria da gemada com quentão, isso que um dia já foi tão curitibano!), contemplando tudo, extasiados. De um lado (no noroeste da ilha), a cidade, que continua com cerca de 5 mil habitantes. De outro, ao norte e nordeste, campos de lava, de rochas nuas e outras semicobertas pela tundra. Contraste de verde pálido com a rocha escura e férrea. Em poucos anos, a natureza vegetal borda tapetes sobre a pedra vulcânica. Ao sul, outro cone vulcânico, um pouco mais alto e até, que me desculpe o Eldfell, mais elegante (bem, ao menos, conforme os critérios de estética vulcânica). É o Helgafell.

Mais ao sul, fora dos domínios de Heimaey, estão outras tantas ilhas. Cerca de uma dezena delas, todas menores e com formas bizarras. A última é Surtsey, cerca de 15 km mais ao sul, pouco se revela... apenas se insinua, entre o céu enevoado e o espelho grisalho do Atlântico Norte.

Alguém que tenha subido ao topo do Eldfell há 60 anos e voltado seu olhar para a mesma direção na qual, agora, vislumbro a ilha de Surtsey, não a teria identificado nem se o céu estivesse cristalino. Simplesmente porque Surstey não existia.

Como um bebê que vem ao mundo externo abrindo a goela com seu choro de fome (ou de “pera aí que eu quero voltar pro aconchego”), Surtsey emergiu escandaloso do fundo oceânico em 1963. Fumegante e convertendo lava em rocha, hoje a ilha possui 140 hectares (cada hectare equivale a uma área de 100m por 100m) e se eleva a mais de 150 metros sobre o nível do mar. Nesse meio século de existência, a superfície de Surtsey recebeu as primeiras rajadas de ventos oceânicos e as primeiras gotas de chuva, bem como a ação da alternância de temperaturas. Sob essa conspiração da natureza, a rocha aos poucos se racha, fragmenta-se. Sementes de plantas e pequenos animais chegaram à costa e a ilha começou a ser colonizada.

Desde que se ergueu para fora da água, a ilha de Surtsey só

pode ser visitada por cientistas e devidamente trajados como se fossem astronautas. Nenhuma interferência, nenhuma contaminação deve ser levada à ilha, pois Surtsey é um laboratório da vida na Terra. É um modelo em escala pequena do que ocorreu há 3,8 bilhões de anos, quando protozoários e algas unicelulares deram a largada para a maratona da vida planetária.

Heimaey, as demais ilhas do arquipélago de Westman e, enfim, toda a Islândia são incríveis laboratórios em que a dinamicidade do planeta e as artimanhas do tempo e das esculturas geológicas se revelam. Nos habituamos a observar paredões rochosos, como o da Pedreira do Tanguá, em Curitiba, ou do Morro do Pão de Açúcar, junto à Enseada do Botafogo, no Rio de Janeiro e automaticamente compreendermos que aquelas superfícies ígneas datam de mais de 2 bilhões de anos... As pedras nos parecem sempre tão... antigas, tão pré-cambrianas... tão... tão da idade da pedra, ora! Mas, eis que nos deparamos, os três absortos em pensamentos, com aquelas rochas meio esfareladas, liberando vapores e que são mais jovens do que nós... Muitas delas de fato nasceram há menos de 50 anos com o resfriamento da lava ejetada pela cratera do

Eldfell. E com meio século de vida mineralizada, as jovens rochas esparramadas nesse novo leste de Heimaey, formado justamente pelo resfriamento da lava extravasada da encosta do vulcão, já são o substrato da rasteira vegetação que nela se fixa.

A oeste, conseguíamos divisar o camping em que nos estabelecemos. Majestosamente alojado no interior de um anfiteatro, parte de uma caldeira vulcânica, lá está nosso simpático, limpo e bem cuidado habitat por dois dias.

Rajadas de vento frio e úmido lembram que, embora no verão, estamos quase sobre o Círculo Polar Ártico, a mais de 65º do Equador, ou cerca de 7.215Km ao norte desse paralelo que salomonicamente divide o mundo. Solo quente e seus vapores de enxofre que sugerem que a terra mastigara dentes de alho, e o ar gélido de cristalizar a ponta do nariz – esses ventos nórdicos têm o dom de midas, mas ao invés de ouro é em gelo que a tudo transformam, nos alertam: hora de descer as vertentes de Eldfell. Não sem antes dar uma última contemplada na pacata cidade de Vestmanneyjar a seus pés. Pacata, serena, mas, desde 1973, prevenida: qualquer ronco da terra e a única alternativa é zarpar para a ilha maior, a Islândia.

Rochas e solo vulcânicos do topo do Eldfell.

O centro urbano da ilha de Heimaey e seus 5 mil habitantes. Na erupção de 1973 do Eldfell, 2/3 da cidade foram cobertos pelas lavas e cinzas incandescentes.

Painel na trilha para o Eldfell exibe o fluxo de lavas e a deposição de cinzas e lápilis sobre Heimaey, em 1973.

Horas depois, apoiado sobre a amurada do ferry-boat, um tanto saudoso, via a imagem da ilha de Heimaey, insinuada entre lençóis de nevoeiro e fachos da luz solar, aos poucos se esvair, como uma miragem. Ora de aportar em Landeyjahöfn, apenas um terminal para o ferry, para novos fascínios na terra do gelo e do fogo, a Islândia.

Terra de gelo (Eisland, no idioma nórdico) e, paradoxalmente, do fogo! Parte da ilha, que tem a metade do tamanho do território paranaense, é coberta pelas maiores geleiras da Europa. Delas, blocos sólidos se fragmentam em uma laguna e poucos quilômetros adiante fluem para o mar. São os icebergs, que se chocam contra as ondas do Atlântico Norte, uns partem à deriva da corrente, enquanto outros encalham logo à frente, nas areias negras como breu, negras dos resíduos vulcânicos. Gelo e fogo de novo se encontrando. Depois do inverno, quando, enfim, o dia clareia para perdurar por horas a fio, o degelo

Indicações

forma fluxos vorazes de água líquida. Cascatas despencam pelas encostas das montanhas, quase todas vulcânicas...

No solo, durante o verão, tons de verde exibem a tundra formada principalmente por musgos, líquens, algumas gramíneas e um jardim graciosamente florido.

No ar, costurando voos pelo céu, uma diversidade de aves em que se destacam os puffins, seja pela sua formosura ou pelo voo meio desajeitado (precisa bater rapidamente suas pequenas asas para deslocar seu corpo sobre as águas e, invariavelmente, descansar em colônias, sobre as rochas das falésias). da vida vegetal, que por sua vez atrai a fauna... e o ciclo sempre se reinicia... Os cenários rústicos de um dos países de maior desenvolvimento humano (ou seja, de melhora qualidade de vida e de menor desigualdade social), de acordo com a ONU, nos convidam a algo que não devíamos tão facilmente esquecer: religarmo-nos com a natureza. Viagens ou expedições fotográficas como tal, demandam e se plenificam por meio da contemplação, essa singela forma de oração ao tempo, ao fogo, ao gelo, à vida... à majestosa criação divina.

comente este artigo: comunicacao@colegiomedianeira.g12.br

A Islândia nos lembra que nossa casa comum é um planeta vivo, totalmente dinâmico e fascinante, cujas paisagens mudam por vezes mais rapidamente do que imaginamos. Mesmo a atividade vulcânica e outras forças geradas nas entranhas da Terra, têm sua digna função regeneradora de solos,

Francisco Carlos Rehme é geógrafo e professor de geografia. Especialista em Geografia Física - Análise Ambiental, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em Currículo e Prática Educativa, pela PUC-Rio. Além disso, é Mestre em Geografia, em Dinâmica da Paisagem, pela UFPR. Atualmente, é professor de geografia da 1ª e da 3ª série do Ensino Médio no Colégio Medianeira.

O grande bazar ferroviário | Paul Theroux

Nestas páginas o americano Paul Theroux conta a façanha de cruzar a Europa e a Ásia, saindo da Inglaterra e chegando ao Japão, com o Expresso do Oriente e, retornando ao Velho Continente a bordo do Expresso Transiberiano, registra suas impressões sobre os países pelos quais passou e sobre os tipos com os quais cruzou durante a viagem.

Cem dias entre céu e mar | Amyr Klink

"Cem dias entre céu" e mar é publicado na segunda metade do século XX (1985), pelo escritor brasileiro Amyr Klink. O livro narra viagens em barco pelos oceanos, tratando da rota que durou cem dias cursada pelo próprio autor da obra, o qual enfrentou tempestades, exaustão pelas várias horas gastas remando para chegar ao seu destino: a Bahia.

This article is from: