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Cinema, jornalismo, fake news e o pacto civilizatório
CINEMA, JORNALISMO, FA K E N EWS E O PAC TO C IVI LI Z ATÓ RI O
Explorando um enredo baseado em fatos reais, a minissérie americana “Inacreditável” revela o universo midiático contemporâneo e o compromisso com a verdade
Por Maurini de Souza
“E a vida imita a arte” diz o ditado popular. Na verdade, quando voltamos aos estudos sobre arte (voltamos muuuito), encontramos, na Grécia Antiga, Aristóteles afirmando que, ao contrário, a arte é que é a imitação (mímesis). Essa imitação (ou recriação, de acordo com algumas leituras) não tem o compromisso de apresentar algo com um referente no mundo, um evento singular “real” – Luckács, filósofo húngaro, observa que a arte se compõe, assim, das características “particulares” (contrariando as “singulares”) de cada tempo – a cultura, as instituições e seus desdobramentos. A liberdade artística é o dominante. Quando assistimos, em um filme, extraterrestres conversando em inglês, participamos imediatamente de um pacto ficcional, adentramos o mundo verossimilhante que se apresenta na tela e nos divertimos, sofremos, choramos, refletimos, mas cientes desse contrato.
Assim, quando um filme se anuncia como “Baseado em fatos reais”, ele nos propõe um novo pacto, em que, diferente de um mundo verossimilhante, a imitação se dá com elementos – ações – que possuem referentes no mundo e serão articulados com mais ou menos rigor quanto ao teor de verdade que propõe. Esse fato, porém, não torna o filme um documentário ou uma reportagem jornalística. Existem barreiras entre as denominadas ficção e realidade que nos acompanham enquanto civilização e, na maior parte das vezes, transitamos tranquilamente por esses espaços.
A minissérie americana Inacreditável, com oito episódios, dirigidos por três profissionais diferentes (três por Lisa Cholodenko, três por Michael Dinner e dois por Susannah Grant), é um exemplo. Veiculada pela Netflix, traz a história de Marie, uma adolescente estuprada no ano de 2008, mas, devido à incompetência policial, além de ter seu testemunho desacreditado e, por pressão, desmentido, sofreu um processo por acusação de ter enganado a polícia. Alguns anos depois, em 2011, devido ao trabalho dedicado de duas policiais, que investigavam ataques com o mesmo estuprador – ele seguiu, depois de Marie, estuprando mulheres em diferentes lugares, aproveitando-se do isolamento entre as diferentes jurisdições, que não possuíam um sistema de compartilhamento de crimes – ele foi preso. O site "M de Mulher" apresenta um resumo de Inacreditável sob outra ótica: “E essa é uma história sobre mulheres. Mulheres estupradas. Mulheres desacreditadas. Mulheres que, ao contrário dos homens à sua volta, batalham para que as
mulheres estupradas sejam tratadas com dignidade – e para que seus dramas recebam a atenção que merecem.” Independentemente da leitura que se teve da obra, entende-se que ela trabalha com acontecimentos reais, mas que não possui a obrigação de se deter neles (por isso a informação: “Baseado...”).
Essa opção de filmes nasce normalmente do jornalismo. Inacreditável foi concebida a partir da reportagem sob o título “Uma história inacreditável de estupro”, assinada por T. Christian Miller, da instituição ProPublica and Ken Armstrong, do Projeto Marshall (disponível, em inglês, em https:// www.propublica.org/article/false- -rape-accusations-an-unbelievable-story). Os articulistas escreveram a reportagem em formato de crônica jornalística. Eles entrevistaram Marie; as policiais que investigaram o caso e prenderam o criminoso – um veterano da infantaria do exército americano, que foi condenado a 327 anos de prisão; o próprio Marc O’Leary, estuprador de 28 mulheres dentre 2008 e 2011, e vários outros. Conforme relatam em “Como nós fizemos a reportagem ‘Uma inacreditável história de sequestro’”.
A reportagem apresenta, ainda, o relatório do FBI sobre os
estupros assinalados como infundados pela polícia de Lynnwood: 21,3% de 47 denúncias. Uma delas foi a de Marie. Ainda se lê, na matéria, a declaração da advogada da cidade ao jornal Herald, no processo aberto pelos danos causados à menina. Além disso, fotos das policiais, dos arquivos da investigação – incluindo o carro, as evidências recolhidas na casa do criminoso – da casa do criminoso, do próprio O’Leary, do registro de prisão e da prisão em que se encontrava. Elementos que, reunidos, apresentam à população informações sobre os fatos e recebidos como componentes de acontecimentos “reais”.
No final da história, os jornalistas informam que, com o valor que recebeu após processar a cidade (150 mil dólares), Marie comprou um caminhão e se tornou caminhoneira, viajando por todo o país; era casada e, em 2015, esperava seu segundo filho. “Recentemente”, eles narram que ela visitou a delegacia e falou com o policial que a descredibilizou; ele pediu perdão e, “para Marie, ele pareceu sincero”.
Na série, os diretores optaram trocar o caminhão por um SUV, em que ela coloca sua bicicleta, elemento que a acompanhou durante toda a série, mas que não é citada na matéria. A bicicleta é uma composição da personagem que, necessariamente, não fazia parte da vida de Marie (ou pode ter sido incluída após a conversa entre o diretor e a pessoa em que a série se baseou). Alguns pontos da matéria são mantidos, outros alterados de alguma maneira; chama a atenção o biotipo das policiais: na série, a atriz que interpretou Stacy Galbraith se parecia com Edna Hendershot e vice- -versa. Mas isso não é importante porque uma série de TV não é um órgão informativo. O pacto ficcional é dominante nesse universo.
Como afirma Marcelo Costa, no seu trabalho “Francisco de Assis, o cinema humaniza o santo” (UFPR, 2018), os filmes históricos se confundem com a história do cinema no final do século XIX, mas somente passou a atrair a atenção dos historiadores, dentro de parâmetros estabelecidos, nos últimos 50 anos. Ele afirma que, apesar dessa aproximação, precisa-se levar em conta que “O drama histórico tem uma linguagem própria, metafórica e simbólica, (...) A história-ficção, que tem uma de suas formas nas obras cinematográficas, atende a alguns critérios de função e funcionamento, na construção do seu discurso: a escolha das informações está ligada ao presente; o princípio de organização das informações é estético e dramático;
a sua função explícita é o prazer”. Essa afirmação é também válida na comparação ao jornalismo – na relação entre ficção e informação, cada um deve permanecer em seu lugar e, quando se encontram (em filmes baseados em fatos ou em reportagens sobre produtos de ficção), devem ser claros quanto aos seus lugares, preservando os pactos firmados no caminhar civilizatório.
A capacidade da população não especializada em nenhuma dessas duas áreas adentrar esses dois universos é fruto da cibercultura; para Henry Jenkins, no livro “A cultura da convergência”, as possibilidades trazidas pelas redes sociais articuladas pela Internet não descartam as mídias anteriores, mas se congregam a elas. Assim, quando se assiste um filme “Baseado em fatos reais”, buscam-se, na rede, elementos que compõem o entendimento e associações entre as diferentes mídias que coexistem em nosso tempo. É um pacto ampliado, menos exclusivo, mais influente, já que, em momentos, eles se cruzam – como neste artigo, em que o filme e a reportagem são trazidos à tona.
Nunca, porém, tais tendências deveriam alterar os pactos construídos historicamente via conquistas de cidadania. O teor de verdade obtido pelo jornalismo
é fruto do embate ininterrupto entre manipuladores da informação – que traziam à tona apenas elementos do fato que serviam para sustentar sua plausibilidade – e jornalistas que se pautavam por trazer elementos representativos da diversidade do acontecimento para, assim, fornecer à população informações fidedignas.
Nos nossos dias, um terceiro grupo se observa e é objeto de inquietação. Utilizando-se, da ficção, de seu fundamento estético e liberdade de criação de universos não existentes a partir da imitação (recriação, mímesis) da realidade, em associação com o teor de verdade conquistado pelo jornalismo, as fake news se apresentam a uma população desprotegida por confiar nos pactos construídos no caminhar da História. Quando alguém reúne elementos díspares e os apresenta em contextos específicos como jornalismo, sendo ficção, esse alguém é criminoso. A ruptura e o desprezo a tudo o que construímos, enquanto humanidade, nas áreas das artes e no âmbito informativo são as molas propulsoras desses fabricantes de barbárie. Seu produto vem de encontro com o que denominamos Cultura, o que nos diferencia do bestial a que fugimos enquanto sociedade.
Neste sentido, é importante a reflexão quanto aos caminhos que desejamos trilhar. Antes de aceitar notícias fantasiosas e maneira, antes de compartilhamos tal material por considerá-lo informativo, vamos refletir em quanta reportagem séria é produzida atualmente nas redes, nos informarmos das diferentes fontes de informação, de diferentes veículos de comunicação com os mais diversos cunhos editoriais e credibilidade pública. Assim, estaremos dando uma chance a mais para a sociedade que construímos e uma oportunidade a mais para nós mesmos em corrigir as tantas falhas que essa sociedade apresenta no caminhar da cidadania.
compartilhá-las por avaliá-las prazerosas ou interessantes, vamos pensar no tanto que já construímos de material prazeroso e interessante na área das artes e entretenimentos – teatro, literatura, pintura, cinema, fotografia, televisão – e que já foram consagrados em nossa civilização. Da mesma
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Maurini de Souza é jornalista e doutora em Sociolínguística (UFPR). Atualmente é professora na Universidade Tecnologica Federal do Paraná (UTFPR) para o mestrado em Linguagens e as graduações em Comunicação Organizacional e Letras.
Indicações
A detração: breve ensaio sobre o maldizer | Leandro Karnal
Este livro trata daquele inescapável hábito, de toda hora, do ser humano falar mal do outro, seja do que esse outro fez ou disse, seja do que pretende fazer. A detração permeia nosso cotidiano sem que nos apercebamos dessa prática. São múltiplas as modalidades do maldizer e isso é o que aborda o autor Leandro Karnal.
O jornalista e o assassino | Janet Malcolm
Pautando temas tão polêmicos quanto a ética do jornalismo e a liberdade de imprensa, este livro se tornou um clássico instantâneo sobre a relação entre jornalismo e poder. A obra conta a história de um médico condenado pelo assassinato da esposa e das duas filhas, que moveu um processo inaudito contra um jornalista que escrevera um livro sobre ele com base em entrevistas feitas durante o julgamento e na prisão.