MARIELLE VIVE: LUTANDO POR DIREITOS | Livreto 01_TFG 2020 UNICAMP | Daniele A. Silva

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tfg 2020 arquitetura e urbanismo . unicamp autora: daniele aparecida silva orientação: profª. drª. silvia mikami

MARIELLE VIVE: lutando por direitos uma proposta de assentamento agroecológico em valinhos - sp



assentamento

o contexto

lutando

agroecológico

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por

valinhos

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sp

direitos

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uma

MARIELLE

proposta

de

VIVE:

autora: daniele aparecida silva orientadora: profª. drª. silvia mikami

TFG

Arquitetura e Urbanismo

.

2020

UNICAMP



sp

direitos

-

DANIELE APARECIDA SILVA

uma

MARIELLE

proposta

de

VIVE:

assentamento

lutando

agroecológico

em

por

valinhos

orientação Profª. Drª. Silvia Aparecida M. G. Pina

.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Arquitetura e Urbanismo TFG 2020


Despejo Na Favela Adoniran Barbosa Quando o oficial de justiça chegou Lá na favela E, contra seu desejo Entregou pra seu narciso Um aviso, uma ordem de despejo Assinada, seu doutor Assim dizia a petição Dentro de dez dias Quero a favela vazia E os barracos todos no chão É uma ordem superior Ô, ô, ô, ô, ô, meu senhor! É uma ordem superior Ô, ô, ô, ô, ô, meu senhor! É uma ordem superior Não tem nada não, seu doutor Não tem nada não Amanhã mesmo vou deixar meu barracão Não tem nada não, seu doutor Vou sair daqui Pra não ouvir o ronco do trator Pra mim não tem probrema Em qualquer canto eu me arrumo De qualquer jeito eu me ajeito Depois, o que eu tenho é tão pouco Minha mudança é tão pequena Que cabe no bolso de trás Mas essa gente aí, hein? Como é que faz? Mas essa gente aí, hein? Com’é que faz? Ô, ô, ô, ô, ô, meu senhor! Essa gente aí Como é que faz? Ô, ô, ô, ô, ô, meu senhor! Essa gente aí, hein? Como é que faz?


Agradeço, primeiramente, à minha orientadora Silvia Mikami, sobretudo por sua disposição e dedicação e por também abraçar esse projeto que se tornou tão especial para mim. As indicações bibliográficas foram essenciais para que o trabalho fosse suficientemente embasado e fundamentado. Agradeço, também, a todos os outros professores da graduação com os quais tive a grande oportunidade de aprender e toda a compreensão da comissão do TFG em relação aos ajustes de prazos e propostas para este ano de exceção devido à pandemia. Ao acampamento Marielle Vive por sua receptividade e por terem aceitado o desenvolvimento da proposta de projeto participativo. As consultas e a concessão das informações relacionadas ao acampamento foram substanciais para o desenvolvimento do trabalho. Aos meus familiares, em especial à minha mãe Rosana, que não mediu esforços para me apoiar durante todo esse processo. Sem vocês eu não seria o que sou hoje. Aos meus amigos da graduação, sobretudo aos da minha turma (014), que marcaram positivamente essa etapa da minha vida. Aos meus companheiros de TFG, especialmente Laura e Evandro, por toda a escuta, por todo o apoio, por todas as trocas e por todo carinho, mesmo neste ano de isolamento. E ao meu parceiro de vida, Guilherme, por sempre me incentivar, apoiar e confortar, em todos os momentos. A vocês, com todo carinho, dedico este trabalho! 3


sumário

o sentido da luta apresentação

o contexto

01

introdução a luta por direitos na cidade contemporânea neoliberal a crise urbana e a urbanização brasileira o direito à cidade e à cidadania reforma urbana + reforma agrária movimentos de luta pela terra

6 8 12 13 15 17 20

habitar e produzir em meio à natureza

os conceitos

02

o conceito ampliado do habitar o habitar e a natureza os processos participativos táticas e pistas projetuais

26 27 33 37


marielle vive e o alcance da luta a localização estratégica

o lugar

03

a região metropolitana de campinas o município de valinhos indicadores socioeconômicos o entorno da fazenda eldorado o acampamento marielle vive a área pleiteada a área de intervenção

48 50 52 60 62 72 80 82

o assentamento marielle vive

o projeto

04

referências projetuais o processo participativo detalhamentos da proposta programa de necessidades diretrizes de implantação centro de vivência 1 | detalhamento referências

96 102 104 106 108 124 146


apresentação

Por ser nascida em Nazaré Paulista e criada em Bom Jesus dos Perdões, cidades pequenas do interior de São Paulo, sempre sonhei em poder viajar e entender as dinâmicas das cidades grandes. Mas não imaginava que nas metrópoles os problemas e questões são mais radicais e drásticos quando comparados às cidades menores. Sempre morei em residências unifamiliares, inicialmente em uma cedida pela minha avó e, posteriormente, em outra casa cedida pela minha tia, na qual minha mãe vive até hoje. A construção desta casa foi realizada por meio de um empréstimo feito da Caixa Econômica Federal, mas até o momento ainda não foi finalizada. E, ao longo dos anos fomos cedendo cômodos para outros familiares que também não tinham onde viver. Esse processo todo não fazia muito sentido na minha cabeça, pois não entendia o porquê disso tudo.

“Minha maloca, a mais linda que eu já vi Hoje está legalizada ninguém pode demolir Minha maloca a mais linda deste mundo Ofereço aos vagabundos Que não têm onde dormir” (Abrigo de Vagabundos - Adoniran Barbosa) 6

Por isso sempre me dediquei aos estudos, pois meus pais sempre me diziam: “sem estudo, a gente que é pobre, não consegue nada. Vai estudar”. E, desde criança, a cada ano que passava, me incomodava cada vez mais com essas questões relacionadas à desigualdade social. Depois, na graduação de Arquitetura e Urbanismo fui entender que as desigualdades perpetuadas pelo sistema econômico vigente dificultam muito a caminhada da grande massa da população. E, nesse sentido, passei a me identificar e sentir muita afinidade à


luta por direitos dos movimentos sociais, à produção coletiva e aos processos participativos. As disciplinas de Moradia Estudantil e Habitação de Interesse Social foram as que eu mais me interessei, no que tange às leituras e debates para as elaborações projetuais. Inclusive, em 2017, realizei uma pesquisa de iniciação científica relacionada à Formas Associativas na produção de Habitação Social, trabalhando com um estudo de caso do único projeto do PMCMV Entidades de Campinas. Deste modo, a minha proposta de trabalho para o TFG tem como foco principal a temática da Habitação de Interesse Social e o direito à cidade a pessoas que se encontram envolvidas em movimentos de luta por moradia. Isso se deve a basicamente três motivos: 1. o primeiro se relaciona à afinidade pessoal supracitada; 2. O segundo à carência habitacional do país, que inclui não apenas o número de déficit habitacional em si, mas também o número de moradias precárias e improvisadas. E eu, enquanto estudante de arquitetura e urbanismo, me vejo na responsabilidade de entender a fundo essa problemática e tentar pensar em soluções projetuais de arquitetura e urbanismo que possam servir para mitigar esse problema; 3. E por fim, o terceiro se deve ao fato da necessidade de trazer à tona a discussão da relação entre a Reforma urbana e a reforma agrá-

ria. Visto que enquanto uma aluna de graduação em vias de me formar, é importante compreender a importância dessas duas reformas e de como caminham juntas. Para os arquitetos, é essencial entender que existe uma dimensão urbana na reforma agrária, sendo necessário, portanto, pensar na relação efetiva do campo com a cidade. E é em meio a essas discussões todas que se manifesta o Marielle. Na busca por um tema que conseguisse englobar todas essas questões me deparei com a luta dos acampados do Marielle Vive e, com o auxílio de minha orientadora, me aproximei do movimento e propusemos a elaboração de um projeto participativo. Assim, pretendo desenvolver um projeto para o grupo de famílias que se encontra acampado no acampamento denominado Marielle Vive. A ocupação teve início em 2018, um mês após o assassinato de Marielle Franco, sendo esse o principal motivo para a sua designação. Hoje, com a pandemia, as 200 famílias estão acampadas há mais de dois anos em um terreno de uma fazenda, em Valinhos (SP), que estava improdutiva. Desta forma, as famílias estão lutando pela reforma agrária e pela consolidação da comunidade e é sob este cenário que meu TFG foi desenvolvido e no qual me dispus a compartilhar meus aprendizados e vivências que obtive durante a minha graduação em Arquitetura e Urbanismo na UNICAMP. 7


introdução O presente Trabalho Final de Graduação (TFG), para o curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), foi desenvolvido sob o contexto da pandemia de COVID-19. Nesse sentido, é importante destacar que o TFG foi elaborado de acordo com as restrições e limitações que o isolamento socioespacial promove, ainda que sempre buscando manter a qualidade e o empenho. Assim, o nível de participação social, o envolvimento, as visitas inloco e o acesso aos dados - os quais são extremamente necessários para que haja uma aproximação com a realidade -, foram dificultados devido a todo este panorama atual. A relevância do presente trabalho relaciona-se ao fato de trazer à tona duas questões de extrema importância para a sociedade contemporânea: o conceito ampliado do habitar e sua relação com os processos participativos nos projetos de arquitetura e urbanismo. A discussão do conceito ampliado do habitar se faz importante à medida que se compreende que o habitar não se trata apenas da unidade habitacional em si, mas sim de toda uma discussão de direitos à cidade, saúde, educação, esporte, lazer, cultura e, inclusive, à natureza. Já os processos participativos se integram nessa discussão uma vez que se apresentam como uma das formas de responder aos problemas político-sociais das cidades ao incluir a opinião, os valores e o desejo dos usuários, garantindo cidadania e democracia na concepção dos espaços (BARONE, 2004). Assim, ao dar voz aos usuários, levando-os à efetiva apropriação e identidade com o espaço construído, as chances de se alcançar um projeto de arquitetura e urbanismo mais adequado e pertinente são maiores. 8

Nesse sentido, este TFG possui como objetivo geral apresentar uma proposta de implantação de um assentamento agroecológico para um acampamento de famílias ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Esse acampamento denomina-se Marielle Vive e localiza-se em Valinhos (SP). O desafio deste TFG se relaciona justamente ao fato de se projetar neste cenário: um assentamento agroecológico em um terreno ocupado por famílias ligadas ao MST na Zona Rural da cidade. E como objetivo específico, devido a todas as restrições que o contexto de pandemia apresenta, bem como as restrições físicas do próprio território, este TFG buscou apresentar uma resposta projetual mais detalhada para a centralidade principal do atual acampamento que, por possuir a Catenária, a Horta Mandala e todos os serviços coletivos como a ciranda, a cozinha comunitária e a enfermaria, já se enquadra como um espaço importante e reconhecido pelos acampados. Neste sentido, a escolha de seguir com o detalhamento desta área do assentamento seria a contribuição mais relevante como um produto de TFG para subsidiar a comunidade no atual momento do acampamento e, ao mesmo tempo, condizente com os prazos do calendário deste ano letivo. Para tanto, optou-se por realizar um projeto participativo a fim de identificar e reconhecer as reais necessidades dos sujeitos, isto é, as demandas e preferências dos moradores no que tange ao programa de necessidades. Em projetos participativos o usuário (que no caso desta pesquisa é um coletivo de pessoas) participa de todo o processo, compondo todo o escopo das decisões relacionadas ao projeto, seguindo as metodolocontexto


gias previamente definidas. Este tipo de projeto é importante para que além de ampliar o repertório arquitetônico, as famílias consultadas compreendam seus direitos como cidadãos e saibam como reivindicá-los (LANA, 2007). Ainda que alguns dos processos e atividades não tenham sido realizadas devido a todo o contexto da pandemia, foi possível, por meio de algumas visitas e consultas à lideranças, chegar a um programa de necessidades e a uma proposta de implantação correspondente às necessidades dos usuários e moradores. Deste modo, os métodos a serem utilizados nesse projeto são descritos a seguir: 1. Revisão bibliográfica sobre os temas pertinentes à pesquisa: literatura relacionada a temas como a cidade contemporânea neoliberal, o direito à cidade e à cidadania, a crise urbana e a urbanização brasileira, a relação entre reforma agrária e reforma urbana, movimentos sociais de luta pela terra, processos participativos, diretrizes ambientais e de sustentabilidade e o conceito ampliado do habitar.

Além disso, algumas lideranças, coordenação e apoiadores do acampamento foram consultados e, este contato foi facilitado pelo grupo de trabalho (GT) criado na UNICAMP, do qual fazemos parte. Deste modo, a partir dessas consultas foi possível identificar algumas pistas e preferênciaspara a elaboração das diretrizes de implantação e do Programa de Necessidades. Em suma, este memorial subdivide-se em quatro livretos. O primeiro se dirige à explanação do contexto da temática referente à luta por direitos na cidade neoliberal. O segundo aos conceitos estruturadores que fundamentam o projeto. O terceiro se dirige à análise física e socioeconômica do lugar onde se encontra a área de intervenção. E, o quarto, ao detalhamento do projeto.

2. Estudos de casos na literatura: estudo de referências de possibilidades de morfologia, arranjos de habitação coletiva e assentamentos agroecológicos, ecovilas e/ou cohousings. 3. A partir destes levantamentos, realizou-se consultas a algumas lideranças do acampamento Marielle Vive para que fosse possível identificar e reconhecer suas necessidades, demandas e preferências relacionadas às suas expectativas relacionadas ao futuro assentamento e às moradias. Para isso, foram realizadas duas visitas ao acampamento, anteriormente ao início da pandemia.

contexto

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“Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me? Olhos sujos no relógio da torre: Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse. Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos. O sol consola os doentes e não os renova. As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. (...)” (A Flor e a Náusea – Carlos Drummond De Andrade)


01

o sentido da luta


a luta por direitos na cidade contemporânea neoliberal Para iniciar este capítulo de contextualização, escolheu-se um trecho do poema “A flor e a náusea” do livro “A Rosa do Povo” de Carlos Drumond de Andrade. Neste poema, o eu lírico apresenta uma crise existencial por se ver em um mundo injusto e desigual, de mercadorias, cifras e códigos, apresentando muitas semelhanças ao mundo atual neoliberal. Como a flor que rompe o asfalto, a luta por direitos e por cidadania se apresenta como uma forma de transformar este panorama, tendo em vista que pode ter diversos sentidos: enfrentar, reivindicar, trabalhar, opor-se e empenhar-se. As reivindicações por direitos humanos, ainda que produto da Modernidade (SANTOS, 1989), podem ser identificadas na sociedade desde à Antiguidade. Na antiga Mesopotâmia, por exemplo, as pessoas já buscavam transformar em leis os direitos que acreditavam que os pertenciam, como com a criação do Código de Hamurabi. Já na Idade Média, com a Magna Carta inglesa, alguns direitos humanos passaram a ser assegurados na constituição. Mas é na Idade Moderna, como supracitado, que se situam os maiores exemplares da conquista por direitos humanos: a Constituição americana (1787) e, sobretudo, a Revolução Francesa (1789) - amplamente associada aos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade-, a partir dos quais se redigiu a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, criada por sua Assembleia Nacional. E somente na Idade Contemporânea, após a Segunda Guerra Mundial, em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual prevê punição àqueles que a desrespeitarem. Paralelamente a isso, é importante ressaltar a 12

nova configuração política que se instaurou após a Guerra Fria (1947 – 1991), visto que o capitalismo passou a ser o modelo econômico predominante e vigente, apoiado no neoliberalismo que, após os anos 1970 com a crise do petróleo, instaurou-se como a nova doutrina socioeconômica. O neoliberalismo caracteriza-se por tentar retomar os ideais do liberalismo clássico à medida que preconiza o livre mercado, as privatizações e, sobretudo, o Estado mínimo. Logo, impele o controle sobre os gastos públicos e, consequentemente, os investimentos em serviços sociais, caracterizando, assim, a “financeirização da vida cotidiana” (SMITH, 2009). A ordem neoliberal que propaga uma ampla dominação do capital sobre a sociedade contemporânea, segundo Neil Smith (2009), ainda que vigente, está falida. Essa perda de poder se deve a uma sucessão de crises econômicas desde a década de 1990 até a crise de 2008, considerada como o arremate necessário para comprovar a obsolescência do modelo neoliberal. Pois, contraditoriamente, os Estados necessitaram intervir na economia, injetando dinheiro nos bancos, além da ocorrência das estatizações de diversas empresas multinacionais. Assim, constata-se que os dogmas neoliberais geram uma grande desigualdade social, expressada pela existência de uma “coletividade de despojados” (CARVALHO, 2008). Isso porque, ao defender a individualização, a independência e o Estado mínimo, uma infinidade de pessoas fica impossibilitada de ter acesso aos chamados direitos básicos econômico-sociais que deveriam ser garantidos à toda população, independentemente de raça, gênero e classe, e não delegados à pura e simples meritocracia. contexto


É neste panorama histórico-social que, a partir da segunda metade do século XX, movimentos sociais tomam protagonismo e passam a reivindicar os direitos das denominadas “minorias”, isto é, grupos de pessoas que não foram incorporados durante o processo de constituição dos direitos humanos universais supracitados, não tendo suas questões consideradas devido ao avanço do capitalismo e da lógica neoliberal. Tais reivindicações, na tentativa de materializá-las em políticas sociais, relacionam-se estritamente à solicitações referentes a direitos básicos do ser humano, como à igualdade social, de gênero, de raça, direito à saúde, à educação, à cultura, ao lazer, à natureza, bem como à cidade (CARVALHO, 2008). Nesse sentido, é importante ressaltar que, com a dinâmica neoliberal, as cidades sofreram grandes transformações, produzindo um caos urbano sistêmico (SMITH, 2009). A decorrência dessas transformações ficam evidentes quando recuperamos a questão da produção do espaço de Henri Lefevbre (2013). Visto que, para o filósofo francês, o espaço é um produto (social). E, portanto, um resultado da produção da sociedade e fundamentalmente histórico. Deste modo, para compreender nossas cidades, é necessário compreender previamente a condição da nossa sociedade atual: neoliberal, mercadológica e desigual.

Figura 1. Desigualdade social. Fonte: ipsnews.net, 2010 (modificado pela autora)

contexto

a crise urbana e a urbanização brasileira Levando em consideração todo esse cenário socioeconômico evidenciado, pode-se identificar uma consequente crise urbana que faz com que a luta por direitos esteja cada vez mais acirrada e em busca da obtenção dessa série de direitos já mencionados. De acordo com Robert Park, sociólogo e urbanista citado por David Harvey em seu artigo sobre o “Direito à cidade”, a cidade é “a tentativa mais bem-sucedida do homem de reconstruir o mundo em que vive” sendo, portanto, um reflexo da sociedade em que vivemos. Essa afirmação reforça a conceito já mecionado do espaço como produto social de Lefevbre. E, deste modo, sendo a sociedade atual pautada pelo consumo, depara-se com uma conjuntura em que, necessariamente, encara-se a cidade como uma mercadoria, sendo esse um dos pontos-chave que exemplificam a crise urbana atual. “ (...) Produtos? Sim, em um sentido específico: notadamente por um caráter de globalidade (não de “totalidade”) que os “produtos” não têm na acepção comum e trivial, objetos e coisas, mercadorias (ainda que precisamente o espaço e o tempo produzidos, mas “loteados”, sejam trocados, vendidos, comprados, como “coisas” e objetos!) (...)” (LEFEVBRE, 2013, p. 124).

A crise urbana, que pode ser percebida mediante o aumento das desigualdades sociais, bem como a segregação socioespacial, traz à tona questionamentos e manifestações por parte da população. E isso se deve especialmente ao processo de urbanização integrado ao crescimento econômico neoliberal fundamentado na desigualdade gerada pelo capitalismo. Nesse processo, depreende-se que não temos cidades de direitos, mas sim, cidades de negócios à serviço do capital. 13


Como evidência para essa questão pode-se ressaltar os projetos de requalificações e mega construções realizadas em contextos de copas e olimpíadas, por exemplo. Isso porque tais projetos de desenvolvimento urbano estão intrinsecamente associados, não apenas a grandes empresas de construção, mas também ao consumismo e ao turismo global. E é neste processo que ocorrem as expulsões, despejos e demolições de pessoas vulneráveis economicamente (SMITH, 2009). Neil Smith aponta, em seu texto “As cidades após o neoliberalismo?”, que um marco importante na discussão sobre o debate do urbanismo contemporâneo foi o anúncio por parte da ONU de que em 2005 a população do mundo seria 50% urbana. Sendo assim, a emigração massiva, o grande crescimento populacional e a consequente explosão do mercado imobiliário foram algumas das consequências dessa nova dinâmica urbana. E essa política de explosão especulativa do mercado imobiliário demonstra que existe apenas um tipo específico de cidade que pode ser construído: cidades que não são para pessoas, mas sim para o lucro e onde as pessoas com maior poder aquisitivo querem e podem pagar para morar.

industrialização e o rápido crescimento econômico provocou uma lógica de desigualdade socioespacial e exclusão social, aliados à especulação imobiliária que sobrepujou as demandas sociais (MARICATO, 2001). O cenário capitalista que domina o mundo faz com que haja uma generalização da mercadoria que toma conta das relações sociais. Portanto, tudo é mercadoria, inclusive o espaço. E no capitalismo das cidades, a mercadoria-moradia adquire um valor, um preço, de acordo com a localização e com as características de seu entorno: a chamada renda imobiliária. Deste modo, entende-se que no capitalismo patrimonialista, em que há sociedades desiguais, produz-se cidades desiguais. Isso indica que a grande massa trabalhadora, que veio para as cidades com o êxodo rural, não terá condições econômicas para comprar imóveis no mercado formal e é assim que as terras são ocupadas ilegalmente, formando-se as periferias: espaços onde se constrói sem código de obras e sem lei de parcelamento do solo (MARICATO, 2015). Assim, aumentam a cada dia as informalidades nas relações de trabalho, as favelas, o número de crianças abandonadas, e, também, a violência ur-

No caso do Brasil, segundo Ermínia Maricato (2015), ainda que a crise urbana no Brasil tenha se revelado com as manifestações de julho de 2013, suas raízes podem ser encontradas nas décadas de 1980 e 1990, quando as cidades brasileiras sofreram o impacto da reestruturação produtiva do neoliberalismo o qual trouxe um modelo de forma e uso de ocupação do espaço. A crise no país se deve, especialmente, ao modelo de urbanização sobre o qual o Brasil se desenvolveu. Ainda que o processo de urbanização brasileiro apresente grandes ganhos como a redução da mortalidade infantil e da taxa de natalidade e o aumento da expectativa de vida, a rápida 14

Figura 2. Segregação socioespacial. Fonte: www.arionaurocartuns.com.br , 2016. (modificado pela autora)

contexto


bana. Tal violência urbana se relaciona principalmente aos números de homicídios da população pobre (MARICATO, 2001).

o direito à cidade e à cidadania

Desta forma, a autora traz a questão da assimetria existente entre as cidades capitalistas desenvolvidas e as cidades subdesenvolvidas e/ ou em desenvolvimento. Pois, tentou-se importar como modelo as experiências e lições dos países desenvolvidos para organizar as cidades do Brasil. E este cenário é muito bem ilustrado por Ermínia em “As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias (2000)”. Segundo com Ermínia (2015), esse modelo importado ocasiona o que Milton Santos denomina de “exílio da periferia”. Tal exílio se refere à imobilidade devido à carência e/ou ineficiência dos transportes públicos eficientes e baratos e de equipamentos e serviços coletivos nas periferias. Este exílio, isto é, exclusão e segregação sociais, também está intimamente ligado à inacessibilidade aos serviços e infraestruturas como: saneamento básico, drenagem, abastecimento, serviços de saúde, educação, cultura, lazer e oportunidades de emprego formal. Ademais, a população exilada nas periferias também apresenta maior exposição às vulnerabilidades ambientais, à violência (marginal ou policial), à discriminação racial, de gênero e idade (MARICATO, 2001).

Ao trazer à luz o cenário do “caos urbano sistêmico” delineado por Smith, em que coexistem a desregulamentação, o desemprego, a desigualdade, a violência e a segregação socioespacial, surge a necessidade do debate acerca do “direito à cidade” - conceito constantemente associado ao filósofo francês Henri Lefebvre.

(...) A questão de que tipo de cidade queremos não pode ser divorciada do tipo de laços sociais, relação com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos que desejamos. O direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade. (...) (HARVEY, 2012, p. 74)

contexto

Para Lefevbre (2001), o direito à cidade faz parte de um pensamento utópico, de cunho e conteúdo revolucionário e ideológico. Pois, para transformar a lógica mercantilista de produção do espaço, a luta popular é lida como premente, à medida que é imprescindível uma sociedade transformada. Assim, o direito à cidade, para o autor, diz respeito à uma cidade diferente da atual, com uma sociedade urbana transformada, em que os valores de uso suplantam os de troca. David Harvey também discute, em seu artigo sobre direito à cidade, sobre a necessidade de reinventar as nossas cidades. Para Harvey (2012), discutir sobre o direito à cidade é imprescindível para que rompamos com a lógica mercadológica e passemos a construir espaços de convivência de acordo com nossos desejos e sonhos, vinculados sempre aos laços sociais, à natureza, aos diferentes estilos de vida, tecnologias e valores estéticos. Nesse sentido, o conceito de direito à cidade corresponde, basicamente, a uma ampliação do direito à moradia em dois níveis: o físico-geográfico e o político. O sentido físico-geográfico diz respeito ao fato de que deve-se levar em consideração não apenas o entorno imediato, mas também todo o conjunto da cidade e seus distintos atributos relacionados à moradia: os serviços e equipamentos, os espaços públicos e a mobilidade (DEL15


GADO JARAMILLO, CÁRDENAS VILLAMIL, GARCÍA BAÑALES, 2008). Por isso a segregação socioespacial e a desigualdade - produtos da crise urbana já mencionada-, ilustra a primordialidade dessa discussão sobre o direito à cidade. Pois, a tendência, cada vez mais comum, de espraiamento e expansão do perímetro urbano provoca polarização de equipamentos e, muitas vezes, inacessibilidade à cidade para populações periféricas. Já o nível político diz respeito à produção do espaço levando em consideração práticas sociais de autogoverno e autogestão. Em suma, o direito à cidade requer a presença de uma democracia inclusiva e participativa. Isso corresponde à urgência de democratizar a experiência urbana que David Harvey discute em seu artigo. Essa democratização relaciona-se à luta pela implementação de políticas públicas que favoreçam a participação popular, fazendo valer o seu direito de opinar e reinventar a cidade, de acordo com seus desejos para todos, sem exceção. Para Harvey, somente com a participação popular é possível consolidar o direito à cidade. Nesse ínterim, pode-se dizer que a consolidação do direito à cidade relaciona-se intimamente ao exercício de cidadania, uma vez que requer a participação ativa dos cidadãos. Em “O Espaço do cidadão”, Milton Santos explana acerca do que é ser cidadão em um mundo neoliberal. Deste modo, o autor argumenta que a cidadania se aprende e se reivindica, sendo, portanto, um dos direitos pelos quais deve-se lutar constantemente para a sua manutenção. Milton Santos aponta em seu livro que Tereza Haguette descreve a cidadania a partir de uma evolução de conquistas. A primeira seria a conquista de direitos políticos individuais: o que se relaciona ao fato de ser reconhecido como cidadão, com liberdades básicas e fundamentais; A segunda, aos direitos coletivos: o que já possibi16

litaria a formação de associações representativas legitimadas, exercitando poder político. E a terceira refere-se à conquista de direitos sociais: a partir dos quais finalmente seria possível exigir do Estado a proteção aos indivíduos proteção e padrões de vida decentes. Contudo, com o capitalismo e o neoliberalismo, o autor afirma que houve uma atrofia da cidadania. Visto que ela pode ser destrinchada em diferentes graus a depender das classes sociais. O escopo da cidadania, portanto, está relacionado ao poder de consumo. Assim, afirma-se que existe uma hierarquização do grau de acessibilidade dos cidadãos, fazendo com que o indivíduo passe da condição de um “cidadão imperfeito”, com restrições de direitos civis, políticos e sociais, a um “consumidor mais que perfeito”. Desta forma, os espaços, cada vez mais marcados por injustiças e desigualdades, constituem-se, em espaços sem cidadãos. Tais espaços se caracterizam não só pela disseminação do não cidadão-consumidor que convive com a alienação, a especulação mobiliária e a construção de templos modernos (shopping centers e os supermercados). Mas também pelo esvaziamento da cidadania em si, devido à ausência, à população periférica, de recursos humanos e equipamentos indispensáveis para a vida em sociedade como: hospitais, postos de saúde, escolas, espaços de lazer e cultura (SANTOS, 2007). Portanto, a luta por cidadania que é viva, dinâmica e coletiva, deve basear-se em princípios de solidariedade, liberdade e de personalidade ativa. Além disso, deve-se levar em consideração a busca pela manutenção e ampliação da democracia para que construa-se uma cidadania ativa ligada ao território, à cultura popular e espaço vivido. Em suma, trata-se da construção de um sentimento de pertencimento do indivíduo na comunidade política e na herança social. contexto


reforma urbana + reforma agrária As Reformas Urbana e Agrária fazem parte das conhecidas reformas de base, que incluem também educação, saúde e política. Neste tópico, pretende-se explicitar do que se tratam essas duas reformas e de como se dá a relação entre elas. Já que para solucionar a crise urbana, advinda do modelo neoliberal, e, garantir os direitos sociais e a cidadania à grande massa população, as reformas (urbana e agrária) são fundamentais. De acordo com Ermínia Maricato (2015), existem muitos indicativos que comprovam que a Reforma Urbana é imprescindível no Brasil. Principalmente quando percebemos as condições sob as quais vive a grande parcela da população periférica: exilada, sem acesso à transporte de qualidade e equipamentos públicos e à mercê da violência e das trocas de favores políticos que são cada vez mais comuns. Por isso, a autora constantemente afirma que reforma urbana é direito à cidade. Em suma, a reforma urbana corresponde a uma série de políticas públicas com o intuito de reformular a lógica atual das cidades, democratizando o acesso às pessoas com menor poder aquisitivo de modo a disponibilizar estruturas básicas em regiões periféricas, reaproveitando os espaços ociosos e/ou subutilizados e, ampliando as políticas de mobilidade urbana. Esse tipo de reforma é indispensável no Brasil tendo em vista o crescimento desordenado e sem planejamento das cidades devido ao crescente processo de industrialização e, consequente, êxodo rural desde a década de 1950. Pois, a urbanização não foi acompanhada pela oferta de infraes-

truturas básicas. E, além disso, a nova demanda e procura por novas moradias favoreceu a especulação imobiliária que encareceu o preço da terra nas cidades, restando à população mais carente o acesso a terras frágeis ambientalmente, irregulares e/ou distantes do centro. Em seu livro “Para entender a crise urbana”, Maricato afirma que a maior parte da cidade é totalmente ilegal do ponto de vista urbanístico. Isso porque existe uma infinidade de propriedades sem registro, desrespeitando as leis ambientais, de código de obras, parcelamento e zoneamento. Por isso, não se pode dizer que não existem planos e leis, o que falta é a implementação do imenso arcabouço legal que possuímos: Estatuto da Cidade, Ministério das Cidades, Programa Nacional de Regularização Fundiária, Conselho Nacional das Cidades, Lei de Consórcios Públicos, Planos Diretores Participativos, Lei de Saneamento e Lei de Mobilidade Urbana, dentre outros. Assim, esta discussão vai ao encontro de debates que acusam o atual sistema capitalista de transformar os espaços em mercadoria, favorecendo às classes mais abastadas e, contribuindo com os processos de favelização e segregação socioespacial. Nesse sentido, para uma Reforma Urbana efetiva, é necessário repensar a política urbana nacional de modo a conter o crescimento desordenado das cidades, o padrão fundiário, a mobilidade excludente e proporcionar espaços de melhor qualidade para todos, sem distinção.

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O QUE É A REFORMA URBANA? combate à especulação imobiliária, lotes vagos e terras ociosas moradias à parcela mais carente da população saneamento básico e ambiental segurança e mobilidade urbana eficientes ordenação não concentrada de equipamentos públicos infraestrutura às áreas periféricas contenção do crescimento desordenado de áreas urbanas

Quadro-Síntese 1. (Elaborado pela autora)

contexto

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Já para compreender a reforma agrária, é necessário entender, a priori, como se deu o histórico processo de concentração de terras no Brasil. Visto que os comuns conflitos como despejos, reintegrações e disputas por terra, em geral, têm como raiz estrutural a concentração de terras seja no campo ou na cidade. A concentração fundiária, a qual provoca conflitos rurais e urbanos, sempre foi incentivada no país, desde a colonização. Seja por meio da distribuição das capitanias hereditárias e sesmarias - que resultaram em latifúndios-, ou com a criação da lei de terras em 1950, mercantilizando a posse da terra, visto que só poderia ter acesso a ela quem tivesse poder aquisitivo, deixando os ex-escravos, os imigrantes e os brasileiros pobres sem direito à terra. Isso mostra que a força política sempre esteve aliada à propriedade da terra. Atualmente, por exemplo, grande parte da elite é rentista vivendo de terras e aluguel (PORTELLA, FERNANDES, 2008). O efeito colateral pós Lei de Terras e início da industrialização brasileira foi o êxodo rural, uma vez que as pessoas passaram a recorrer ao urbano. E, ao chegar nas cidades, com subempregos e sub-salários, restaram apenas as áreas não visadas pelo mercado imobiliário: áreas ambientalmente frágeis e/ou distantes dos centros. Vimos, portanto, uma grande expansão dos centros urbanos e de suas periferias, com pouco ou nenhum planejamento, aumento dos índices de violência e desemprego, dos congestionamentos e da poluição, piorando a qualidade de vida das populações urbanas (PORTELLA, FERNANDES, 2008). Essa concentração fundiária suscita, também, outro debate: o da soberania alimentar. Uma vez que a produção latifundiária de monocultura e agroexportação é voltada para o mercado externo e de commodities não permitindo que se decida 18

sobre quais alimentos serão cultivados, produzidos e comercializados localmente (PORTELLA, FERNANDES, 2008). Esse quadro gera conflitos não apenas no campo. Os latifúndios ociosos e o inchaço urbano são dois dos problemas causados pela questão agrária brasileira. A densidade demográfica do Brasil do censo do IBGE de 2010¹ mostrou que há uma imensa concentração de população nas regiões Sul e Sudeste e, também, nas áreas litorâneas do Nordeste. Entretanto, outras extensas áreas do território brasileiro estão sub habitadas, assinalando um desequilíbrio da ocupação do território. Assim, pode-se assinalar que é impossível compreender o campo sem a cidade e vice-versa. Nesse sentido, afirma-se que existe uma relação estrita entre a reforma urbana e a reforma agrária, uma vez que com a redistribuição de terras, muitas famílias teriam melhores condições de vida no campo e as grandes cidades desinchariam. Portanto, a luta por direito à cidade relacionada a eliminar a ocupação das periferias mais distantes, está completamente interligada à luta pela reforma agrária. Visto que o cidadão precisa de terra, seja rural ou urbana (PORTELLA, FERNANDES, 2008). Tais problemas identificados como parte da crise urbana já mencionada vêm provocando mudanças na dinâmica populacional. As pessoas mais abastadas, por exemplo, se mudam para condomínios de luxo em áreas rurais, fugindo da cidade real e em busca de uma cidade murada. Entretanto, as áreas rurais ainda são muito carentes de infraestrutura fazendo com que haja uma visão preconceituosa contra o campo. O que resulta numa carência de políticas públicas voltadas para as áreas rurais, uma vez que se acredita que a vida rural é pior que a urbana, devendo desaparecer (PORTELLA, FERNANDES, 2008).

1.  Densidade demográfica no Brasil. Disponível em <https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=10&uf=00>.

contexto


Existem muitos setores da sociedade que defendem a política da reforma agrária para que se possa superar tais problemas e conflitos. Nesse sentido, sua implementação consiste no assentamento de pessoas que querem trabalhar com a terra no campo. É uma política pública federal que objetiva principalmente a desconcentração fundiária e a democratização do acesso à terra (PORTELLA, FERNANDES, 2008). A reforma agrária estrutural ainda não foi implementada no Brasil. Um dos momentos mais icônicos desse debate foi no governo João Goulart, com a proposta de Reformas de Base, não logrando após o Golpe Militar de 1964. E, apesar dos militares terem criado o Estatuto da Terra - o qual traz pela primeira vez o conceito da função social da terra-, nunca foi concretizado. Portanto, é com a redemocratização que os debate de luta pela terra e reforma agrária ressurgem. Nesse ínterim, é importante destacar a diferença entre reforma agrária e luta pela terra, visto que a primeira trata-se de uma política pública que deve ser realizada pelo Estado. Enquanto que a segunda trata-se da reivindicação, na maioria das vezes conflituosa, pelo acesso à terra feita por movimentos sociais. Os movimentos utilizam a ocupação de terras improdutivas como estratégia para pressionar o governo a implementar a política pública (PORTELLA, FERNANDES, 2008). É válido ressaltar que essa prática possui como diretriz o art. 5°, inciso XXIII da Constituição Federal de 1988 que trata da função social da propriedade. Isso significa que, ainda que tenha um proprietário, a terra precisa prestar serviço aos interesses dos cidadãos e ser produtiva, não podendo estar ociosa e estimulando a especulação imobiliária. É comum que proprietários de terras denominem essa estratégia de ocupação como invasão de propriedades particulares. Mas contexto

para os camponeses, trata-se da ocupação de uma terra improdutiva que não cumpre a função social impelida pela própria constituição. Assim, o documento mais importante do Estado compromete que o mesmo realize a reforma agrária por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), autarquia federal que já existia desde 1970. Considerando o fato de que a luta pela terra sofre uma enorme estigmatização é importante que se compreenda sua dinâmica e seu processo. Ela se inicia com os trabalhos de base que dizem respeito aos debates e discussões que capacitam politicamente as famílias e os trabalhadores que decidem entrar para o movimento. Após muitos estudo e análises, encontra-se terras que não respeitam sua função social, podendo, assim, serem ocupadas. A partir do momento que se ocupa um terreno, inicia-se as negociações com os proprietários. Nesse momento, a ocupação já está se organizando estruturalmente para que se possa transformar em um acampamento. Nesse momento, há duas perspectivas de futuro: o juiz aceitar o pedido das famílias e desapropriar a terra ou negar e pedir reintegração de posse. No caso da desapropriação, o acampamento se transforma em um assentamento e novas lutas se iniciam: por infraestrutura, por crédito agrícola, por assistência técnica. Já no caso de pedido de reintegração de posse, as famílias são despejadas, muitas vezes violentamente, sendo obrigadas a procurar uma outra terra para ocupar (vide figura 3).

.. .. .. .

O QUE É A REFORMA AGRÁRIA? democratizar o acesso à terra, para produção e/ou edificação participação popular na definição de políticas públicas políticas de financiamento agrícola e à habitação popular combate à especulação imobiliária garantia de equipamentos e serviços no campo e na cidade infraestrutura rural e urbana regularizações considerando os impactos ambientais e sociais

Quadro-Síntese 2. (Elaborado pela autora)

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movimentos de luta pela terra Neste contexto de luta pela terra é válido retomar a intrínseca relação entre as reformas agrária e urbana. Isso porque a luta pela terra não existe apenas no ambiente rural, mas também nas cidades. Nesse sentido, no ambiente urbano também não se trata apenas da luta por moradia, uma vez que lutam não somente pela casa, mas também por direito à cidade, à infraestrutura e a serviços. Raquel Rolnik afirma em seu livro “Guerra dos lugares” que, apesar dos movimentos de lutas urbanas das décadas de 1970 e 1980 terem sucumbido à lógica do mercado, existe hoje um novo ciclo protagonizado pela juventude, bem como por Movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Este movimento é composto por trabalhadores urbanos que se encontram em situações vulneráveis, visto que são sem-teto, não possuem moradia própria e/ou não conseguem pagar aluguel. Já os trabalhadores sem terra também organizam-se em diversos movimentos. Os mais conhecidos são as Ligas e Via Campesinas e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Além disso, são apoiados por diversas intituições como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Igreja Católica. Estas ligas, formadas por trabalhadores da terra, foram criadas pelo Partido Comunista Brasileiro, em 1946, com o intuito de lutar por reforma agrária e pela melhoria das condições de vida no campo, antes da Ditadura Militar. Sabe-se que muitas pessoas aliadas às Ligas e/ou à CPT foram presas, perseguidas ou assassinadas pelo regime ou até mesmo por jagunços contratados por latifundiários (PORTELLA, FERNANDES, 2008). A Via Campesina, criada em 1992, é uma organização internacional que abrange diversos mo20

vimentos de luta pela reforma agrária no mundo. Essa organização luta pela construção de um modelo rural que garanta a soberania alimentar, pela preservação do meio ambiente e pelo desenvolvimento econômico e social por meio da socialização da terra e da renda (PORTELLA, FERNANDES, 2008). No Brasil, são diversos os movimentos vinculados à Via Campesina: Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o qual possui protagonismo na luta por reforma agrária no país. O MST O MST foi fundado em 1984 e, em 1990 já estava presente em todas as regiões do país com o intuito de lutar pela reforma agrária, utilizando as estratégias das ocupações de terra, para lutar pela implementação dos assentamentos rurais (vide figura 3). TRABALHOS DE BASE

OCUPAÇÕES DESPEJO

NEGOCIAÇÕES ACAMPAMENTOS DESAPROPRIAÇÃO ASSENTAMENTO LUTA POR SUBSISTÊNCIA

Figura 3. A estratégia de luta pela terra. Elaborado pela autora com base em (PORTELLA, FERNANDES, 2008).

contexto


Nesta dinâmica de luta pela terra, o MST elaborou uma estrutura sólida, dividida em diversos setores (vide figura 4). E, deste modo, cada acampamento e assentamento avalia suas necessidades e demandas para adaptar essa estrutura à sua realidade. Essa organização foi imprescindível para que os MST se tornasse uma das principais organizações políticas do Brasil conhecidas no mundo. No total, milhares de famílias puderam conquistar a terra por meio da luta e da organização dos trabalhadores rurais. Mesmo após a conquista da terra, as famílias permanecem organizadas nos MST, visto que é apenas o primeiro passo da luta por reforma agrária. Após conquistar a terra, uma nova luta se inicia: a luta por subsistência, pelos direitos básicos de acesso à infraestrutura, assistência técnica e créditos agrícolas. Nesse sentido, por possuir um dimensão nacional, a estrutura organizacional se repete em nível regional, estadual e nacional. As famílias assentadas e acampadas do MST organizam-se numa estrutura participativa e democrática. As famílias organizam-se em núcleos-base que discutem as necessidades de cada área. Cada núcleo possui dois coordenadores (um homem e uma mulher). Outro aspecto importante é que nas assembleias de acampamentos e assentamentos, todos têm direito a voto: adultos, jovens, homens e mulheres.

Figura 4. A estrutura organizacional do MST. Elaborado pela autora com base em https://mst.org.br/quem-somos/.

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Quando ocorre a implementação completa de assentamentos, há uma mudança qualitativa nos municípios e em seu entorno. Isso porque há uma desconcentração fundiária e aumento da população local. A população passa a ter mais acesso à oferta de alimentos e, consequentemente, a menor preço. Contudo, quando há uma implementação incompleta (sem crédito agrário, infraestrutura e assistência técnica), essas melhorias na qualidade de vida não se concretizam, visto que a 21


Figura 5. Assentamentos rurais no Brasil. Fonte: Atlas Geográfico escolar (2016). Modificado pela autora

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NORDESTE NORTE

milho, mandioca, café, arroz de sequeiro, farinha de mandioca, feijão de corda, limão, cupuaçu, feijão, inhame, banana, aipim/macaxeira, goma/polvilho, algodão herbáceo, leite, abóbora, caju, melancia, coco, laranja, abacaxi, castanha, arroz beneficiado, cana de açúcar

centro oeste

No item anterior falou-se sobre a cidadania nas cidades: a cidadania urbana. Milton santos (2007) também fala sobre a cidadania rural. Isso porque o homem do campo muitas vezes é menos titular de direitos que as pessoas da cidade. Já que muitos dos direitos básicos lhes são negados, com a desculpa de que não há recursos. No livreto 2, sobre os conceitos, explana-se inicialmente acerca do conceito ampliado do habitar o qual pode ser associado a essa questão de cidadania e obtenção de direitos.

milho, feijão-de-corda, mandioca, arroz-de-sequeiro, farinha de mandioca, inhame, batata doce, banana, aipim/macaxeira, goma/polvilho, leite, queijo, algodão, herbáceo, abóbora, caju, melancia, coco, laranja, abacaxi, castanha

milho, amendoim, mandioca, café, arroz de sequeiro, farinha de mandioca, feijão de corda, limão, feijão, banana, algodão herbáceo, abóbora, caju, melnacia, coco, laranja, abacaxi, castanha, arroz beneficiado, cana de açúcar

sudeste

A produção agropecuária dos assentamentos é muito diversificada (vide tabela 1), sendo que parte dela destina-se ao mercado local por meio de atacadistas, varejistas e/ou feiras. Os assentamentos são prova de que a reforma agrária é imprescindível, sendo possível por meio dela obliterar a fome e a pobreza do país.

região produção agropecuária dos assentamentos

milho, quiabo, mamão, jiló, maxixe, abacate, mandioca, café, arroz de serqueiro, farinha de mandioca, feijão de corda, limão, mamona, tomae, alface, couve-flor, feijão, inhame, banana, aipim/macaxeira, fécula, polvilho, algodão herbácea, abóbora, pepino, cenoura, melancia, coco, laranja, abacaxi, castanha, arroz beneficiado, café, cana de açúcar, leite

sul

produção agrícola passa a ser apenas para subsistência.

milho, soja, fumo, mandioca, arroz de serqueiro, feijão, abóbora, arroz beneficiado, batata doce, batata inglesa, amendoim, alface, queijo, erva-mate, aipim, cana de açúcar, cebola, pêssego, batata salsa, mel de abelha

Tabela 1: Produção agropecuária dos assentamentos rurais. Fonte: (PORTELLA, FERNANDES, 2008). Modificado pela autora.

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Canção da Terra Pedro Munhoz

Tudo aconteceu num certo dia Hora de ave maria o universo vi gerar No princípio o verbo se fez fogo Nem atlas tinha o globo Mas tinha nome o lugar Era terra, terra E fez o criador a natureza Fez os campos e florestas Fez os bichos, fez o mar Fez por fim, então, a rebeldia Que nos dá a garantia Que nos leva a lutar Pela terra, terra Madre terra nossa esperança Onde a vida dá seus frutos O teu filho vem cantar Ser e ter o sonho por inteiro Ser sem-terra, ser guerreiro Com a missão de semear À terra, terra Mas apesar de tudo isso O latifúndio é feito um inço Que precisa acabar Romper as cercas da ignorância Que produz a intolerância Terra é de quem plantar À terra, terra



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