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1.2. A Imigração Clandestina: O Grande Desafio das Fronteiras Europeias

Apesar deste processo amplo e profundo de europeização, como foi observado por Pierre Berthelet (2003), o desenvolvimento deste arcabouço jurídico-institucional da segurança europeia aparece, em primeiro lugar, como uma “comunhão de interesses nacionais”. Em outras palavras, foi a confluência de interesses particulares dos Estados-membros, em um determinado momento histórico, que tornou possível sua realização. Contudo, o desequilíbrio crescente entre os Estados e interesses nacionais pode igualmente levar a desconstrução desse projeto comum longamente construído.

Como observam alguns autores (Domenach, 1999), a criação do espaço comum de segurança instaurado por Schengen fez emergir igualmente a contradição essencial entre a institucionalização, no plano supranacional, de um espaço sem fronteiras internas e cuja segurança é partilhada (no plano das fronteiras externas), e a manutenção da segurança e da justiça como esferas ainda ancoradas, simbólica e institucionalmente, nos Estados nacionais.

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As funções da justiça e da polícia caracterizam tradicionalmente a ‘identidade’ do Estadonação moderno não só por motivos políticos, mas também ideológicos e simbólicos. Esta percepção (‘nacionalista’) de certas competências e capacidades persiste no plano europeu, a despeito dos diferentes processos de integração (política, econômica, monetária, jurídica, etc.) das últimas décadas.

Tal percepção torna-se mais evidente, frente aos desafios que, apesar de considerados comuns (ou ‘comunitarizados’) recaem majoritariamente sobre certos Estados membros (ou a alguns mais que a outros).

Nestes casos, a “desolidarização” de alguns membros da comunidade parece tornar-se a regra. A dificuldade de encontrar mecanismos de ação conjunta eficazes torna o encargo de proteção do ‘espaço comum’ excessivamente elevado para muitos Estados membros, e não raro desproporcional ao seu tamanho e capacidades (materiais, humanas, econômicas) efetivas.

Um dos desafios que mais evidencia esse processo é a imigração irregular, intimamente relacionada a crimes conexos, como o tráfico de seres humanos e tráficos de outras naturezas (drogas, veículos, etc.).18

A história é praticamente a mesma e tem se repetido, com diferente intensidade e frequência desde o início dos anos 1990: imigrantes de toda a África, Oriente Médio e mesmo Ásia arriscam suas vidas em viagens longas (e cada vez mais perigosas) para a Europa em embarcações frágeis e superlotadas.

Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), quase 3.000 “candidatos a imigrantes” se afogaram no Mediterrâneo até o mês de agosto de 2014. O número de mortos foi de 700 para todo o ano de 2013.

Vale lembrar, como examinado no capítulo 1, que as chamadas ‘rotas do Mediterrâneo’, ainda que importantes, não são as únicas rotas de imigração irregular e tráfico para a Europa.

Estas rotas são, contudo, relativamente mais ‘visíveis’ aos olhos da opinião pública e da mídia europeia e internacional.

De fato, as imagens dramáticas de barcos superlotados e sem qualquer infraestrutura tentando chegar às costas europeias, ou ainda dos cadáveres das vítimas de naufrágios criminosos19 , aparecem com frequência nas primeiras páginas dos jornais europeus, chocando a opinião pública, em particular nos Estados mais afetados, como é o caso da Espanha, Itália ou da Grécia.

A visibilidade do fenômeno, aliada a dinâmicas políticas internas no continente europeu – em particular, a ascensão da direita conservadora, e não raro de partidos de extrema direita em vários países da UE nos últimos anos – tem levado a uma politização cada vez maior do fenômeno migratório, que é, no plano do debate e das políticas, cada vez mais conectado a questões de segurança pública, defesa, e controle de fronteiras. Na UE, a conexão entre imigração-segurança-controle de fronteiras fez-se ao longo dos anos, a partir da década de 1990.20 Esta teve seu ponto de inflexão com o Tratado de Amsterdam (1997). A partir deste momento, as conclusões do Conselho Europeu de Tampere (1999) deixaram clara a abordagem europeia sobre questões de segurança pública, controle de fronteira e migração ao instituir que as políticas de imigração e asilo deveriam levar em conta a “necessidade de um controle coerente das fronteiras externas para frear o problema da imigração ilegal e combater aqueles que a organizam e cometem crimes relacionados" (Pinyol, 2012, p. 262).

Ao longo dos anos 2000 e 2010, a UE adotou, assim, uma série de políticas e instituições que relacionam diretamente a questão da segurança ao controle de fronteira e a gestão da migração. Foi nesse momento que o ‘plano’ ou ‘abordagem global’ foi proposto como mecanismo para tratar e combater a imigração ilegal.

Em 2001, o Conselho Europeu propôs um plano de coordenação e apoio aos países de origem e trânsito de imigrantes (i.e. antes do cruzamento das fronteiras europeias), reforçando os instrumentos de cooperação técnica e financeira no combate ao tráfico de seres humanos, e reforçando os mecanismos de readmissão.

Um ano depois, em 2002, o Conselho Europeu, reunido em Sevilha, aumentou ainda mais a dimensão “securitária” no controle das fronteiras e gestão da imigração na UE, propondo medidas para harmonizar as práticas dos diferentes membros no combate à imigração ilegal (política de vistos, readmissão, expulsão, repatriação) e promover uma ação coordenada e integrada na gestão das fronteiras (Koff, 2005). Encontram-se aí as sementes para a posterior criação da Agência Europeia de Fronteiras (Frontex).

19 Essas embarcações são, na verdade, disponibilizadas por traficantes de seres humanos que organizam a viagem de barco das costas da África do Norte (Líbia, Tunísia, Egito) até as costas europeias. Não raro, para escapar aos controles das guardas costeiras europeias, os traficantes provocam o naufrágio das embarcações provocando a morte dos passageiros (muitos dos quais não sabem nadar). 20 Pode-se destacar três representações e definições que relacionam segurança e imigração no contexto Europeu. A primeira associa a imigração irregular e a segurança à questão da “ordem pública”, fazendo da luta contra a imigração e as redes de tráfico ilegal uma questão de central para a manutenção da ‘ordem pública’ nos países europeus. A segunda associa a imigração ao crime, e tende a criminalizar os imigrantes irregulares. Esta perspectiva tem justificado, em diferentes países da UE, a introdução de legislações cada vez mais repressivas, que exigem, por exemplo, que os imigrantes apresentem seu registo criminal a cada processo relativo a demandas de residência legal, de nacionalidade, etc. Por fim, a terceira perspectiva, mais recente e cada vez mais forte no plano Europeu, associa a imigração e segurança de fronteiras ao terrorismo internacional (Solanes, 2005; Withol de Wenden, 2000; Bigo, 2000). As três abordagens coexistem e podem ser encontradas em diferentes planos, políticas e programas em questões de imigração e segurança na UE.

Por fim, as orientações específicas para uma ‘abordagem global das migrações’ foram estabelecidas em 2004 (Conselho Europeu de Haia). Nesse momento, os objetivos da luta contra a migração irregular são também definidos: o reforço da logística e cooperação econômica para fortalecer o regresso voluntário dos migrantes em trânsito, a ampliação dos acordos de readmissão e campanhas de informação sobre os riscos de imigração ilegal, o reforço da capacidade humana e técnica para a vigilância das fronteiras dos países de origem e de trânsito, e intensificação da luta contra as organizações de tráfico de imigrantes. Como veremos, grande parte dos programas, projetos e ações implementados pela França e pela Espanha na última década são diretamente guiados por esses objetivos e estratégias.

A despeito de todo esse aparelhamento normativo, institucional, material e econômico, o impacto sobre os fluxos migratórios de determinadas regiões em direção da Europa tem sido avaliado como ‘ínfimo’.

Frontex anunciou recentemente que há uma tendência de forte progressão da imigração irregular, em particular pelas rotas do Mediterrâneo. Segundo a agência, mais e mais pessoas irão arriscar suas vidas nos próximos meses, tentando cruzar de forma irregular uma das fronteiras exteriores da Europa.

De fato, depois de uma relativa acalmia no início da década, no ano de 2014 atingiu-se um ‘pico’ nos números da imigração irregular que já supera os números atingidos durante a chamada Primavera Árabe.

Frontex contabilizou 140 mil travessias ilegais das fronteiras externas da UE até meados de julho 2014, uma grande parte desse número eram de pessoas fugindo da Síria e Líbia, onde a situação política permanece caótica.21

A imigração irregular não atinge a todos os países europeus igualmente, mas em particular aqueles que se encontram “às portas” da Europa, como muitos dos Estados que nos interessam nesta consultoria – em particular a Espanha, Itália, e em certa medida, igualmente a França.

Contudo, muitos imigrantes utilizam esses países ‘de entrada’ apenas como uma passagem para penetrar no espaço comum e atingir, a partir daí, outros Estados da União (em geral, países que oferecem melhores oportunidades de trabalho, ou onde os imigrantes possuam familiares, etc.). Esses outros países, ainda que não recebam os fluxos de imigrantes diretamente nas suas costas, acabam por sentir as consequências da imigração irregular posteriormente.

Tendo em vista o fluxo cada vez maior (de pessoas, bens, mercadorias, drogas, etc.) que passam pelas suas fronteiras nacionais, países como a Espanha, França, a Itália são cada vez mais pressionados por seus pares no plano europeu para reforçar o controle de suas fronteiras.

Estes Estados, por outro lado, demandam cada vez mais a ajuda (material, humana, financeira) por parte dos demais membros da União, bem como dos fundos especiais e outras instituições europeias. A imigração irregular, bem como as demais ameaças às fronteiras externas da União, é responsabilidade de todos e não só daqueles que se encontram, por razões geográficas às suas ‘portas’.

21 Antes mesmo da Primavera Árabe, houve crises graves e contínuas de refugiados nas fronteiras terrestres espanholas entre Marrocos e os enclaves de Ceuta e Melila. Como se verá, já em 1993, o fluxo de imigração ilegal foi grande o suficiente para justificar que as autoridades espanholas construíssem uma rede de cercas entorno dos seus enclaves na região, que foram reforçadas em 1995, 1998 e, novamente, depois de incidentes, em 2005, e mais recentemente, em 2012.

A situação tem certo paralelo com a pressão migratória nas zonas de fronteira brasileira, onde os estados da federação mais afetados pelo tráfico de seres humanos e imigração irregular, como o Acre, são raramente os estados de destino final dos imigrantes, que, em geral, têm como objetivo estabelecer-se em grandes centros urbanos do sudeste e centro-oeste.

Também como ocorre atualmente no Brasil, os estados que encontram-se nas zonas de fronteira têm demandado cada vez mais o apoio institucional, material, humano e financeiro por parte do Governo Federal, tendo em vista que a pressão e desafios que devem enfrentar é não só desproporcional aos meios que possuem, mas igualmente uma responsabilidade que deve ser assumida pelo conjunto da federação.

Na Europa, a questão da solidariedade entre os membros da União e da responsabilização conjunta por um problema que afeta a todos em última análise tem sido fortemente colocada pelo problema da imigração irregular e tráfico de seres humanos. Esta questão permanece em aberto, pois apesar dos debates políticos, em termos de meios efetivos e ações concretas, muitos Estados membros continuam tendo que assumir sozinhos (ou quase) a pressão crescente em suas zonas de fronteira.

Com 130 mil imigrantes que chegaram à Europa por mar até o mês de Agosto de 2014, segundo dados do ACNUR, há uma necessidade premente da UE de montar operações de busca e salvamento sustentado para evitar que apenas alguns Estados-membros continuem a arcar com as responsabilidades e custos destas operações.

A operação “Mare Nostrum”22, por exemplo, organizada pela marinha italiana e iniciada em 2013, durou quase um ano e custou cerca de 9 milhões de euros por mês – um encargo considerável para o país que, há anos, em conjunto com as autoridades da Espanha, Chipre, Malta e Grécia, demanda a partilha dos custos com países vizinhos e outros membros da UE.

Contudo, a despeito dessas demandas, as operações para proteger as fronteiras da Europa enfrentam cortes importantes. Frontex diz que enfrenta um déficit de 2,3 milhões de euros depois de estender as operações na Itália – esta é uma quantia significativa para um ano já extremamente difícil em que organização teve que reduzir seu orçamento operacional para apenas 42 milhões de euros. Além disso, por questões de competência institucional, muitas vezes Frontex não pode participar de forma mais efetiva em ações na região do Mediterrâneo.23

Em outras palavras, Frontex, que deveria ajudar os Estados sob maior pressão migratória a coordenar suas ações e programas de controle e segurança de fronteiras, enfrenta dificuldades orçamentárias e institucionais, o que limita sua capacidade real de assistência e coordenação.

Como ressaltamos, a solidariedade europeia está sendo colocada à prova “às portas da Europa”, e tal desafio pode ter impactos duradouros (e negativos) não só na segurança, mas também em outras dimensões da política europeia.

22 A Operação de Resgate Mare Nostrum foi iniciada em 18 de outubro de 2013 no sul do Mediterrâneo, com a participação de funcionários, unidades navais e aeronaves da Marinha italiana, o Exército, Força Aérea, a Polícia nacional (Carabinieri), os Serviços de Alfândega, Guarda Costeira, a bordo de embarcações e outras unidades nacionais com o objetivo de controlar os fluxos migratórios na região (com foco especial na área em torno da ilha de Lampedusa). 23 Embora o mandato da Frontex seja coordenar a ação dos Estados membros no controle das fronteiras, e não realizar missões de busca e salvamento, em ações no Mediterrâneo é praticamente impossível dissociar as duas coisas. Em cada operação marítima de controle da fronteira, existe a obrigação de salvar vidas já que na maioria dos barcos que chegam às costas europeias, os traficantes colocam em perigo a vida dos passageiros-imigrantes.

Como recentemente foi ressaltado pela Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), entre outras instituições e ONGs internacionais, todas as nações europeias têm a obrigação de ajudar os Estados que, como a Itália, a Espanha, a Grécia, tem que enfrentar sozinhos as pressões crescentes em suas fronteiras. O risco da inação e da falta de coordenação pode ser a desintegração do sistema de controle e segurança europeu.

Entre dezembro de 2010 e abril de 2011, logo após os primeiros momentos da chamada ‘Primavera Árabe’, mais de vinte mil imigrantes (principalmente tunisianos) chegaram à pequena ilha italiana de Lampedusa, desencadeando a crise mais ampla no âmbito do sistema Schengen.

Naquele momento, as autoridades italianas deslocaram um grande número de migrantes para os chamados “campos de retenção administrativa”, localizados no continente, a partir do qual muitos partiram para a França com documentos fornecidos pelas autoridades italianas. Quando as autoridades francesas enviaram então alguns deles de volta para a Itália, o Governo italiano retaliou reduzindo voluntariamente a segurança em torno dos campos de retenção (o que de fato implicou uma facilitação na fuga desses imigrantes).

Os Ministérios do Interior dos dois países acabaram por concordar em reforçar a cooperação para reduzir o fluxo de migrantes em todo o Mediterrâneo, mas, na verdade, as tensões entre França e Itália continuam e são visíveis no nível local (i.e. nas cidades que situamse nas zonas de fronteira).

Além da questão da solidariedade e da partilha de riscos (e dos encargos) comuns, imigração irregular coloca também na ordem do dia da agenda política europeia outra questão que há muitos anos vem sendo o foco do debate acadêmico: terá o processo de europeização diminuído a capacidade efetiva dos Estados europeus de controlar suas próprias fronteiras? Ou, ao contrário, teria tal processo reforçado da segurança nas fronteiras comuns?

Em outras palavras: a cooperação em questões de segurança e controle de fronteira é eficaz ou é, na verdade, contraproducente?

A literatura muitas vezes parece apresentar duas visões contraditórias. Por um lado, existe a imagem de um "liberalismo embutido" que deixou a Europa sem meios para controlar suas fronteiras contra os grandes desafios contemporâneos.24 Por outro lado, uma parte considerável da literatura, vê um movimento contínuo na direção de um reforço das fronteiras na Europa, que tem sido caracterizada muitas vezes como "Europa fortaleza" (Geddes, 2000).

Geralmente, ambos os lados do debate tendem a notar o aumento do número de instrumentos colocados à disposição dos Estados para controlar e reforçar a segurança nas zonas de fronteira, mas discordam sobre a eficácia destes instrumentos.

Na prática, pode-se dizer que capacidade de muitos Estados europeus de controlar suas fronteiras externas parece ter sido reforçada por uma cooperação cada vez mais densa. Contudo, tal cooperação não parece ser suficiente para atingir eficazmente todos objetivos da política comum de segurança europeia nessa matéria.

Tendo em vista as pressões crescentes dos últimos anos sobre certos Estados (em

24 Christopher Caldwell, por exemplo, traz o argumento de fronteira aberta à sua conclusão lógica, com o argumento de que a Europa parece estar sem meios para combater este crescente "ameaça", e sem a vontade política de encontrar os meios. A Europa não pode limitar a imigração, ele escreve, nem é capaz de integrar ou controlar a vida de quem passar pelos seus portões. Em vez disso, os europeus parecem empenhados em proteger os “movimentos” e tendências globais que destruiriam os “valores e liberdades europeias” (Caldwell, 2009).

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