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TENDÊNCIAS, VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS
COLUNISTA
//TENDÊNCIAS, VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS FELIPE MENDES
General Manager Latam da GFK
Essa frase ficou famosa no filme “Tropa de Elite“, quando o Capitão Nascimento reúne uma tropa cansada, após um dia de muita correria, para falar de algo que eles claramente não dominam, talvez até não entendam a razão por que estão aprendendo, mas que no futuro saberão que se tratava de uma aula que poderia significar, literalmente, sua vida ou morte.
Faço um paralelo com a situação em que vivemos hoje. Nossos clientes, sejam de indústrias diversas ou varejistas, estão muito cansados por todas as transformações que precisaram implementar em suas empresas, lutando cada dia para conseguir inovar e ganhar espaço no mercado, porém todos, sem exceção, nos fazem a mesma pergunta: “E aí, GfK, o que vai acontecer com as vendas no pós-pandemia?“. E alguns deles, como o “Aspirante 05“ no filme, quase soltam uma granada quando respondemos “Vai variar muito, dependendo da sua estratégia em relação a regiões, categorias e desenho de go to market ou formato de atuação“. Para que sigam acordados, é óbvio que passamos por essas questões em mais detalhes, explorando alternativas e discutindo implicações, mas queria convidar os leitores da Revista E-Commerce Brasil a também explorar alguns desses elementos neste texto, para que possam construir seus próprios cenários e, com base nisso, desenhar sua estratégia e executá-la com paixão e rigor.
Para provocar esse exercício estratégico, decidi usar a realidade europeia de consumo. Há duas razões principais para isso: eles estão alguns meses à nossa frente em
Atuou em empresas de bens de consumo, como Phillip Morris, Mondelez e Unilever, no Brasil, Chile e México, até a posição de Diretor de Marketing. Em consultorias de data analytics, como a GfK, vem liderando empresas e unidades de negócio desde 2008, especializando-se em realizar processos de turnaround comercial, operacional e financeiro, bem como integração de empresas adquiridas. Felipe é membro do YPO (Young Presidents Organization) desde 2014 e atua em Conselhos de Empresas e Associações, além de ser palestrante frequente em eventos de tecnologia, varejo e comércio eletrônico, sendo investidor de startups nesses segmentos.
relação à vacinação e, ainda mais importante, cada país tem suas particularidades, o que nos permite aprender mais na busca de uma geração eficiente de premissas para o mercado brasileiro.
O bolso apertou de forma diferente
Similares ao Brasil, os europeus sofreram uma redução importante em seu poder de compra no ano de 2020, com o PIB tendo reduzindo 6,8% no total em 2020. Os países de menor renda per capita situados no Leste Europeu foram bastante mais afetados, assim como economias menos desenvolvidas do Oeste, como Chipre e Espanha. No entanto, outros países de renda per capita menor, como os Bálticos (Estônia, Lituânia e Letônia), sofreram reduções menores, em função de menores níveis de contaminação, mas também da ação governamental, que flexibilizou relações laborais para proteção de empregos. Com isso, a recuperação em 2021 já se sente nos Balcãs, com crescimento puxado pelo consumo.
Outro elemento importante é que grandes cidades, e em especial as capitais, sofreram maiores impactos que as cidades periféricas. Há algumas razões para isso, entre elas o peso dos serviços nas cidades grandes, mas também pelo maior impacto proporcional que a injeção de dinheiro do governo tem em cidades com menor renda per capita.
No Brasil, temos o exemplo de cidades do Norte e Nordeste que cresceram consumo agressivamente em 2020, já que o coronavoucher de R$ 600 ao mês era quase o triplo da renda média da população da região. Já em 2021, no entanto, o estado de São Paulo tem apresentado uma recuperação mais rápida da economia. Acompanhar a evolução do PIB regional por trimestre, bem como outros indicadores de poder de compra (renda efetiva da PNAD Contínua, por exemplo) é fundamental na estruturação de um plano de regionalização de vendas (alocação de mercadorias, aluguel de armazéns, parcerias logísticas).
A venda no varejo alimentar aumentou, mas as pessoas gastaram menos
Considerando a média de 27 países da Europa, os gastos realizados em varejos representavam algo mais de 33% do total de gastos das famílias. Durante a pandemia, esse percentual subiu aproximadamente 2,5 pontos percentuais, para 35,5%. Ainda que pareça pouco, 2,5 pontos percentuais representam um crescimento importante sobre uma base de 33 pontos percentuais (entre 7% e 8%).
No entanto, sabemos que nesses mesmos países as vendas no varejo alimentar cresceram apenas 5,5%, enquanto que em outros varejos vimos uma queda de 3%. Podemos estimar, portanto, que os gastos no varejo como um todo na Europa cresceram aproximadamente 3-4%.
Ou seja, os europeus gastaram 3-4% mais no varejo, mas a representatividade nos gastos totais subiu entre 7-8%... intrigante, não? A explicação é matemática: os europeus gastaram menos no total, devido à economia em outros gastos, como turismo, alimentação fora do lar, transporte etc. Isso significa que há dinheiro acumulado no banco, esperando para ser gasto com a reabertura social. Essa poupança tem sido discutida nos jornais econômicos e nas empresas, pois significa que as indústrias e os varejos precisarão encontrar formas de gerar confiança na população para que ela volte a gastar.
Mas é lógico que há óbvios candidatos para a recuperação. Na Espanha, por exemplo, o canal Alimentar cresceu vendas em apenas 2%, mas a queda nos outros varejos foi de 11%, sendo que em Moda a queda foi acima de 30%. Esse comportamento é muito similar ao Brasil - portanto, com um pouquinho de esperança e um tanto de restrição de produção, já vemos montadoras demorando para entregar carros e varejistas de modas celebrando vendas recordes em datas festivas como Dia das Mães.
A questão é se você pode não estar nesses segmentos... nesse caso, precisará encontrar alternativas para que os futuros compradores enxerguem sua categoria ou varejo como algo onde as pessoas devem gastar suas economias dentro do conceito de revenge spending. Mimos, presentes, upgrades de produto, vale tudo para entrar no coração desse comprador.
Mas infelizmente esse comportamento não é uniforme e se observa apenas nas classes mais altas. As classes média e baixa, de fato, estão mais endividadas e há três razões para isso: 1) maior nível de perda de emprego no setor de serviço, que no geral emprega pessoas de renda mais baixa; 2) compras realizadas durante a pandemia, alavancadas pelo coronavoucher e pela necessidade de equipar o lar, que levou a um crescimento de dois dígitos do varejo de eletroeletrônicos, por exemplo; 3) menor percentual de gastos com serviços, portanto, menos economia durante o lockdown.
Para deixar o conceito mais claro, um país de alta renda compromete cerca de 30% do gasto familiar no varejo (Suíça 28%, Alemanha 29%, Reino Unido 33%). Os outros 70% ficam para gastos com prestadores de serviço, água, luz, escola dos filhos, viagens etc. Já países mais simples podem gastar facilmente mais de 40% no varejo (Polônia 43%, República Checa 46%, Hungria 53%), percentuais que são muito mais similares aos de classe média no Brasil.
Isso implica que ter uma estratégia clara de marcas, faixas de preço e condições de pagamento será fundamental para recuperar gradualmente o consumo de produtos direcionados a esse segmento absolutamente fundamental da população no Brasil.
A inflação da oferta e do “ESG“
Algo com que estamos acostumados no Brasil é a inflação, porém dessa vez o principal direcionador é a restrição na oferta dos produtos. Falta de componentes e aumento de frete marítimo são preocupação constante nas indústrias. Some-se ao fato de que com a China menos impactada pelo vírus, Europa e especialmente Estados Unidos voltando a consumir, os fabricantes globais estão direcionando seus estoques limitados a essas geografias.
Outro elemento novo, mas muito interessante, é que a produção de alguns produtos e componentes foi bastante reduzida, pelo receio de que a sociedade aponte o dedo para a fabricante como sendo uma empresa que não cuida do meio ambiente. Desde a extração de minerais presentes na fabricação de chips até a produção de plásticos, observamos uma crescente restrição de oferta, que pode se estender por alguns anos.
Para tornar a situação ainda mais interessante, está a desvalorização das moedas, comum em momentos de insegurança e desbalanço de fundamentos macroeconômicos, os quais impactam mais fortemente países menos desenvolvidos.
Do ponto de vista de demanda, sabemos que estamos mais atrás de produtos do que de serviços, portanto a inflação de produtos
hoje é maior. No entanto, quando houver recuperação dos serviços, se ocorrer de forma muito intensa, poderemos ter escassez de profissionais. Isso elevará a remuneração deles e poderá trazer inflação também a serviços. Em resumo, não é de se descartar uma corrosão no poder de compra da população, o que, também sabemos, afeta novamente mais as classes mais baixas.
A descentralização do fluxo de pessoas
Dados da GfK na Alemanha demonstram que, durante o lockdown, os centros comerciais localizados em cidades grandes (acima de 500 mil habitantes) sofreram uma maior redução de visitas (65%) do que aqueles em cidades menores (49%). É ainda mais interessante observar que, mesmo durante o início da reabertura, ainda se observou uma queda de 24% das visitas em cidades grandes, se comparadas ao fluxo médio de 2019. Nas cidades menores, especialmente aquelas em zonas periféricas, esse fluxo caiu apenas 10% nesse período. A modificação se deve em grande parte à mudança de hábito da população, que passou a viajar menos para as grandes cidades durante a semana, em função do home office. Ao ficarem em suas cidades de origem, o comércio local (em especial, o de vizinhança) floresceu, já que as pessoas passaram a gastar seus euros novamente nessas cidades.
No Brasil, vemos situações similares, com o renovado interesse das indústrias de alimentos no Mercado de Vizinhança, bem como seguidos anúncios de varejistas maiores investindo nesse formato. Ainda em lojas físicas do canal alimentar, vemos renovado apetite por aquisições de redes regionais, não apenas de concorrentes, mas também de gestores como o Pátria Investimentos. No varejo eletrônico, também observamos uma corrida às cidades periféricas, com contratação de cada vez mais depósitos descentralizados e compra de mídia local.
Para 2022, com a retomada do trabalho no escritório, sabemos que empresas mais liga-
das a serviços buscarão seguir com jornadas flexíveis, ou seja, com dois ou três dias de home office. Esse setor da economia (Serviços) está mais presente em cidades grandes, portanto podemos esperar um desafio contínuo para a recuperação do volume do varejo físico nessas cidades.
Além disso, nas cidades grandes, a oferta logística (em especial dos last milers) também é maior, o que faz com que seja mais cômodo comprar através do e-commerce, mesmo em compras com algo de conveniência. Finalmente, as pessoas que trabalham em home office parcial estão considerando deslocar-se para cidades periféricas, para viverem em casas mais confortáveis e de menor custo. Vale acompanhar o boom do mercado imobiliário e o surgimento de escolas de primeira linha nessas cidades, que podem trazer a reboque o crescimento do varejo de construção, eletroeletrônicos, papelaria e outros.
A democratização dos cliques tem suas restrições
Mesmo na Europa, em (grupo de) países com mais infraestrutura e renda como o Reino Unido e a Áustria, vemos uma grande disparidade entre as vendas online de grandes centros e de cidades menores. As quatro principais razões para isso são: a) perfil populacional; b) renda média; c) infraestrutura tecnológica; d) infraestrutura logística (já abordada anteriormente).
As cidades maiores ou mais urbanizadas concentram em geral mais trabalhadores e mais alocados em escritórios. Em função disso, eles têm acesso às estruturas tecnológicas de suas empresas, muitas vezes com laptops corporativos que levam para suas casas e onde podem realizar suas compras, e isso também se aplica à qualidade da conexão. Finalmente, em quase todos os casos, há um maior percentual de pessoas entre 30-45 anos, que combinam um bom domínio da tecnologia com uma maior renda discricionária.
Na Inglaterra, as cidades com perfil mais industrial, como Liverpool, Manchester e Newcastle, apresentam compras online em níveis muito menores do que o resto do país. Já na Áustria, esse percentual menor se observa em cidades no interior do país, com maior orientação rural. Como dito anteriormente, essas cidades também representam um desafio logístico adicional, mesmo em países muito menores do que o Brasil.
A implicação dessa diferença na democratização dos cliques é clara: ainda que exista menos concorrência em cidades menores e mesmo com o crescimento da renda em algumas cidades do interior, com forte dependência do setor agro, é fundamental simplificar o processo da compra online. Desde a usabilidade dos sites e apps até o “peso” para rodar em conexões mais lentas, bem como a oferta de produtos e a qualidade da logística, tudo merece uma revisão importante.
Por outro lado, nas grandes cidades, vemos ofertas diárias de entregas em 24 horas, algo que os compradores hoje valorizam tanto quanto o “frete grátis”, porém que vão gerando custos crescentes de operação. Em um país grande como o nosso e tão desigual, a regionalização é um desafio adicional para se encontrar crescimento lucrativo no pós-pandemia.
A força de cada modelo no online
Nos dados de vendas monitorados pela GfK, especificamente para o mercado de Duráveis e de Tecnologia, observamos em todo o mundo um crescimento mais acelerado dos varejos brick and click do que dos pure
players, porém esse efeito é muito maior em países menos desenvolvidos. Na Europa Ocidental, em 2019, os pure players representavam 53% das vendas em 2019 e passaram a exatos 50% em 2020. Já na Europa Oriental e Central, os percentuais foram de 60% e 49%, respectivamente.
Já em relação à divisão das vendas entre lojas físicas e online, vimos a participação do e-commerce dos 12 países mais ricos da Europa crescer de 29% em 2019 para 40% em 2020. Para compor esses 40% de 2020, temos o Reino Unido com fantásticos 61%, seguidos pela Holanda com 49% e Suíça com 44%. Reparem que são três países de tamanho reduzido, quando comparados ao Brasil, e de renda muito mais alta.
O interessante de observar no Brasil é que temos um híbrido: a nossa participação de vendas online cresceu 80% nos brick and click em 2020 contra “apenas“ 20% dos pure players, comportamento mais próximo dos países da Europa do Leste. Por outro lado, as vendas online representam hoje algo mais próximo a 50%, ou seja, percentuais “europeus ocidentais“.
Isso significa que há grande disposição à compra online e que outros segmentos precisam apenas encontrar o formato correto para crescer ainda mais a participação do e-commerce. Mas, ao mesmo tempo, fica claro o poder das grandes redes para concentrar as vendas, daí a frenética corrida pela liderança em audiência nos marketplaces e as inúmeras aquisições feitas para se reforçar o ecossistema para os sellers (e ganhar lindos fees com os serviços agregados). Em termos de aquisições, talvez o mais ativo seja o Magazine Luiza, que em 2020 reportou ter comprado 21 empresas, para reforçar suas quatro prioridades: novas categorias, fintech, Magalu as a Service e Magalu Ads.
Realizar exercícios estratégicos nunca foi tão importante e tão oportuno
Há uma frase de Roger Martin, Reitor da Rotman School of Management e Consultor em Estratégia, que vale ser trazida para essa reflexão: “Estratégia é a arte de melhorar suas chances de vencer. Você não pode nunca ter certeza de que a sua estratégia terá sucesso, porque você não pode prever o futuro por completo. Mas se você é criativo e rigoroso (no processo estratégico), você pode dar a si mesmo a possibilidade de criar algo novo e maravilhoso“.
Ainda que esses exercícios possam ser extremamente cansativos e demandantes, como a aula do Capitão Nascimento, eles são fundamentais, pois vivemos um momento único para empreendedores e executivos, onde a incerteza pode se transformar em desespero ou oportunidade, dependendo da sua atitude estratégica e capacidade de execução.
Como diria o Capitão, “Nesta cidade, quem quer ser policial tem que escolher: ou se corrompe, ou se omite, ou vai pra guerra”. E você, caro leitor, vai pra guerra?