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CAPA: A ARTE INDÍGENA NO E-COMMERCE

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A ARTE INDÍGENA NO E-COMMERCE

Por Dinalva Fernandes e Giuliano Gonçalves, da Redação do E-Commerce Brasil

Artesãos indígenas veem no comércio eletrônico a oportunidade de expandir suas marcas, levando tradição e histórias para além das fronteiras

O que é ser índigena de verdade? No imaginário popular, o indígena é uma pessoa que mora no meio da floresta, se veste apenas com adereços feitos com penas de pássaros e vive à margem dos avanços tecnológicos. Mas uma nova geração de artesãos reforça que isso não é verdade. Pensando em desconstruir esse preconceito e provocar reflexões, o designer de moda Sioduhi, de 26 anos, decidiu criar sua marca de roupas para vender na Internet e revelar que povos indígenas podem usufruir da tecnologia sem perder sua identidade. “Independentemente do lugar em que se está, se é na aldeia ou na cidade, fora do País ou no Brasil, a nossa identidade não muda, ela permanece”, afirma.

Fundador e responsável pelo processo criativo da Sioduhi Studio, ele é natural de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, onde vive o povo Waíkahanã (Piratapuya ou “gente peixe” - por isso a logomarca é um peixe), que vive no Alto Rio Negro. Formado em administração pela Uninorte Manaus, com MBA em gerenciamento de projetos pela FGV

-Manaus e curso técnico de modelagem e vestuário pela ETEC Tiquatira em São Paulo, o jovem iniciou a marca em abril de 2020, sendo a primeira coleção lançada em novembro do mesmo ano. O planejamento da marca foi desenhado dentro do e-commerce.

A Sioduhi Studio é uma marca de roupas contemporâneas, com camisas de alfaiataria, calças e camisetas que trazem mensagens indígenas. “O último lançamento oficial foi sobre a história dos povos originários de cada território – desde a América Andina, Rio Negro e Amazônia até a América que a gente conhece hoje –, e como cada povo se autodenominava com suas línguas antes da colonização. Toda a marca traz histórias que não são contadas nos livros de história do País. As pessoas que a consomem não estão vestindo apenas roupas, elas vestem essas histórias. Esse é o grande legado que eu deixo por meio da minha marca”, diz o empreendedor.

De acordo com ele, 70% do público da marca é feminino, sendo a maioria formada por

Foto: Divulgação/Correios

pesquisadores, pessoas que trabalham com sustentabilidade, educação, ativismo, ecologia ou com a causa indígena, além de estudantes de universidades.

A estrutura inteira da marca, da criação à operação, é formada por maioria de setores indígenas ou pessoas da Amazônia, os amazônidas. A marca está voltando para a Amazônia, mas a base de produção continua em São Paulo por enquanto. Hoje, Sioduhi mora em Altamira, no Pará, onde ficará por uns dois anos porque está desenvolvendo um corante natural à base de mandioca para suas peças. “É um desafio muito grande como estilista e como empreendedor porque precisamos pensar em uma nova estratégia de logística e de pessoas para trabalhar nesse novo modelo. Precisamos entender que nem todas as pessoas precisam sair dessas comunidades e de seus territórios para serem conhecidas e terem seus trabalhos valorizados”, acredita.

Devido ao alto custo, a marca trabalha com matéria-prima de empresas de São Paulo. Mas a ideia é expandir os negócios em busca de materiais mais sustentáveis, conforme o crescimento da marca, pois tecidos sustentáveis encarecem bastante o produto, segundo o empreendedor. “Tivemos ajuda de projetos que apoiam pequenos estilistas e de uma marca do Brás [bairro de São Paulo]. Agora estamos afinando as parcerias com fornecedores. Queremos criar toda a cadeia de produção de tingimento usando tecidos do Pará e da Amazônia”, conta.

A marca vende também em alguns pontos físicos, como na Galeria Amazonas, em Manaus, uma vez que as pessoas queriam conhecer mais, tocar na textura das peças. Também é vendida em São Gabriel da Cachoeira, dentro do Instituto Socioambiental (ISA). Em novembro de 2021, o designer viajou para Cusco, no Peru, e levou algumas peças para serem comercializadas por lá. “Estamos elaborando um modelo de negócio especialmente para Cusco. A ideia é produzir por lá também, não só exportar”, revela.

Expansão aos pouquinhos

A Sioduhi Studio faturou em torno de R$ 40 mil em 2020, R$ 60 mil em 2021 e projeta faturar R$ 120 mil neste ano. “Estamos conquistando os espaços aos pouquinhos, para poder ser uma base sólida”, aposta Sioduhi.

Vender em marketplace ainda não é uma opção para o designer. A marca só vende em galerias de arte e pelo site próprio, onde oferece diversas opções de pagamento, como cartão de crédito, Pix e boleto. “Não vendemos em marketplace porque ainda não encontramos nenhum específico com um bom custo-benefício para fazermos parceria”, afirma. O tíquete médio da marca é de R$ 300.

O corante elaborado pela empresa é um dos 30 projetos selecionados do programa Inova Amazônia, promovido pelo Sebrae Nacional, e deve ser lançado oficialmente em setembro. A marca também está confirmada para participar do Brasil Eco Fashion Week, que é a primeira semana de moda sustentável do País, e será realizada em novembro, na capital paulista.

Logística ainda é a principal dificuldade

A principal forma de postagem da marca é com os Correios, mas também utiliza transportadoras, como no caso de peças específicas para Manaus e São Gabriel da Cachoeira. Isso ocorre principalmente se forem volumes grandes, por terem um custo-benefício melhor. E a logística ainda é a principal dor do empreendedor.

“Os volumes grandes são vendidos mais para pessoas jurídicas. As pessoas físicas não reclamam, mas o prazo de entrega, dependendo do local, é de 25 dias. Isso nos coloca num lugar um pouco triste com pessoas que moram em Rio Branco, Manaus, Belém ou mesmo no Nordeste, e gera um pouco de desconforto”, relata. Algumas pessoas compram e enviam as peças para outros países, como Austrália, EUA e Alemanha, pois a empresa ainda não tem infraestrutura de envio internacional.

O poder das mãos da mulher indígena

Se hoje um consumidor consegue adquirir produtos indígenas (inclusive em marketplaces), isso só é possível porque do outro lado existem artistas na produção. Diferentemente do designer de moda Sioduhi, que aos 26 anos criou sua marca de roupas, Luakam Anambé só tirou o seu sonho do papel depois dos 40. Hoje com 53 anos, Luakam diz que a sua criação veio ao mundo quando sua netinha completou seu primeiro aniversário. “Registrei a boneca com o mesmo nome da minha neta, Anaty, como uma forma de homenageá-la”, diz. Suas bonecas artesanais, aliás, vão muito além de brinquedos para fazer companhia para crianças.

Anaty significa “menina” em Tupi-Guarani. Porém, engana-se quem acha que o motivo da criação da Anaty foi única e exclusivamente o nascimento da neta de Luakam. O “embrião” desse produto existe há mais de 50 anos, quando a indígena do povo Anambé, do estado do Pará, tinha oito anos e trabalhava em uma casa de fazendeiros. “Vim de uma família de muitos irmãos, e meus pais eram analfabetos e sem condições de cuidar de nós. Por isso, eles me ‘deixaram’ com essa família, onde eu trabalharia em troca de alimento e estudo”.

Nesse período, ao acompanhar essa família durante um Arraial do Círio de Nazaré (uma das maiores festas religiosas do Brasil, que ocorre no Pará), Luakam teve o seu primeiro contato com uma boneca. A esposa do fazendeiro, no entanto, lhe cortou as esperanças ao dizer que ela teria que trabalhar, e não brincar. “Daquele dia em diante, eu carreguei dentro de mim uma vontade de batalhar para ter quantas bonecas eu quisesse”, afirmou. Porém, uma vida de muitas dificuldades adiaria os sonhos de Luakam.

Aos 14 anos, foi forçada a se casar. Pouco tempo depois, já estaria com dois filhos e, aos 19, conseguiu a separação. Por muitos anos, sua vida se dividiu entre viver novamente com o seu povo Anambé e em outros lugares, como o Rio de Janeiro, para trabalhar. Foi na Cidade Maravilhosa, aliás, que o seu sonho começou a ganhar vida. Por volta dos 42 anos, Luakam ressignificou aquele sentimento de criança de ter suas bonecas. “Entendi que aquela história de luta e desejos não era só minha, e havia muitas outras pessoas que não puderam ter uma boneca quando quiseram, principalmente entre os povos indígenas”.

Nasceu então a Anaty, a princípio para sua netinha brincar. Ao levar a boneca à feira, porém, Anakam viu o brilho nos olhos das pessoas e vislumbrou uma forma de unir o útil ao desejável. O útil, porque de alguma forma aquela venda lhe traria o sustento para criar a si e aos filhos. Já o desejo seria o de quebrar o preconceito étnico/racial que circundava os povos indígenas. “Acredito que uma criança que tenha uma boneca Anaty em mãos crescerá com outro entendimento, assim como uma mentalidade de que não existem só pessoas brancas e negras. Infelizmente, ainda sofremos um enorme preconceito, e o meu desejo é combater isso com minhas bonecas”.

A procura pelas bonecas nas feiras cresceu e Luakam percebeu uma oportunidade de aumentar sua escala de produção. No auge das vendas, chegou a pandemia e ela viu o seu sonho escorrer pelos dedos, pois todo o comércio de rua se fechava. Após um período de sofrimento sem vender uma boneca sequer, a artesã recebeu a ajuda de uma amiga que colocaria seus produtos para divulgar nas redes sociais e vender em um e-commerce.

Foi nas redes sociais que Luakam encontrou uma forma de mostrar a cultura e a história de seu povo Anambé. “Agradecemos a Nhanderú (Deus, em Tupi-Guarani) todos os dias por nos permitir aprender com as redes sociais”, vibra. No digital, inclusive, ela tem a oportunidade de mostrar detalhes das bonecas que sempre quis. “Lá eu consigo mostrar todo o cuidado que temos na fabricação e no envio dos produtos, assim como produtos naturais e ausência de plástico tanto na produção como na logística. Até mesmo a esterilização das embalagens eu apresento nas plataformas digitais para gerar valor às bonecas”.

Ainda assim, a artista afirma que nem sempre é fácil levar as bonecas Anaty para todo o Brasil. “Se eu recebo encomendas em regiões mais distantes, como o Acre, não consigo enviar pelos Correios. Afinal, o valor que eu gasto com a entrega acaba sendo quase o mesmo da produção”, lamenta. Nesses casos, ela precisa esperar a oportunidade de viagem de algum conhecido e incluir os produtos na bagagem.

Outro ponto de dificuldade, segundo a artesã, é a falta de ajuda dos bancos aos pequenos empreendedores. “Não temos parcerias ou ajuda governamental, por exemplo. Tudo sai dos nossos esforços, das nossas vendas. Eles [bancos] precisam entender que os pequenos de hoje se tornarão os grandes de amanhã”. E se depender de Luakam, a história das Bonecas Anaty ainda está só no começo: “Nosso objetivo é que o mundo todo nos conheça. Não descansarei enquanto isso não acontecer”, promete.

Correios ainda são maior transportador

Apesar dos imprevistos narrados por Luakam, assim como na Sioduhi Studio, os Correios ainda são os responsáveis pela maior parte das entregas de produtos indígenas. Isso porque estão presentes em todo o território nacional, inclusive em municípios mais remotos. O transporte é realizado regularmente via terrestre e fluvial, fazendo com que as entregas cheguem até em regiões mais longínquas.

A estatal possui soluções que apoiam o desenvolvimento de empreendedores, como o Programa AproxiME. Trata-se de um conjunto de soluções voltadas para capacitação, oferta de serviços aderentes às necessidades do negócio e desenvolvimento no comércio eletrônico. No Amazonas, por exemplo, o programa presta consultoria aos indígenas, que estudam e se organizam em cooperativas em localidades como Umariaçu, em Tabatinga, e Tefé. O AproxiME subsidiou mais de 65 mil novos contratos desde sua implantação, há dois anos.

A estatal também conta com uma equipe de vendas voltada para o comércio exterior, que pode auxiliar qualquer nicho de mercado (inclusive o artesanato indígena) a realizar operações de exportação.

Segundo os Correios, a população indígena está bastante concentrada nos estados do norte do Brasil. No Amazonas, por exemplo, os dez maiores municípios do Estado - dentre eles Tabatinga, Tefé, São Gabriel da Cachoeira, Coari e Parintins - concentram grande parte dos indígenas de todo o País, com uma produção significativa de artesanato, que atualmente é encaminhado para outras regiões e para o exterior. Nas regiões como Alto do Rio Negro e Alto Solimões, respectivamente, 96% e 93% da população é indígena.

No Brasil, as regiões que mais compram de povos indígenas são Sul e Sudeste. No exterior, destacam-se vendas para Espanha, Itália, Portugal, Alemanha, Inglaterra, Suíça, China, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Estados Unidos e Canadá.

Apoio aos indígenas também chega pelo marketplace

Pouco antes do início da pandemia, em 2019, a Americanas.com e a Fundação Amazônia Sustentável (FAS) lançaram o Jirau da Amazônia. Para quem ainda não conhece, trata-se de uma iniciativa de digitalização de produtos de artesãos de comunidades ribeirinhas e indígenas do Amazonas. Ou seja, povos que vivem de artesanato têm a oportunidade de vendê-los dentro do marketplace da Americanas. Mariana Araújo, que é a coordenadora de Sustentabilidade da Americanas S.A., afirma que a iniciativa “leva geração de renda para aqueles que mantêm a floresta de pé”.

Interessante mencionar que 100% do lucro das vendas do Jirau é revertido para o desenvolvimento do projeto, localizado em comunidades de Unidades de Conservação (UC) do Amazonas. “Já tivemos grandes resultados até aqui. Ao todo, impactamos mais de 319 artesãos, sendo mais de 50% mulheres indígenas e ribeirinhas. Hoje, somamos mais de 25 grupos produtivos que formam uma forte rede de apoio e cooperação em 21 comunidades nos estados do Amazonas e também do Pará”, diz Araújo.

Para sustentar e fortalecer a operação de vendas do Jirau, a Americanas investe na capacitação dos artesãos indígenas em relação ao empreendedorismo e à gestão de negócios. Nesse caso, o time de sustentabilidade da companhia faz questão de acompanhar o desenvolvimento dos projetos desde o início. “Além de treinamentos online, oferecidos a todos os lojistas parceiros que vendem no marketplace da Americanas S.A., são realizados workshops de produção de conteúdo. Isso vale inclusive para os povos indígenas, com instruções sobre fotos e vídeos mais assertivos”, lembra a coordenadora.

Live commerce das comunidades indígenas

Existe uma agenda de campanhas nas redes sociais, ações com cupons de desconto e um espaço especial na Americanas ao Vivo. Aliás, foi a partir dessa iniciativa de live commerce que a Americanas permitiu às ONGs mostrarem seus produtos e interagirem ao vivo com milhões de clientes no app. As lives do Jirau, em especial, vão muito além das vendas de artesanatos. Afinal, são espaços onde os artistas e os ribeirinhos podem falar sobre sua cultura, de onde vêm os insumos utilizados na produção dos itens, como ocorre o preparo dos materiais, detalhes do design de cada item e de sua história… “É uma oportunidade para a comunidade mostrar um pouco da sua cultura e da história das comunidades, trazendo conhecimento e aprendizado para quem não conhece a Amazônia”.

Em 2021, por exemplo, uma única apresentação fez com que o Jirau da Amazônia vendesse em dois dias (no dia da live e no dia seguinte) o equivalente ao montante de uma semana inteira. Para Araújo, o sucesso dessas lives é resultado da combinação de um trabalho único dos artesãos, autoral, e da forte preparação que eles recebem da plataforma para melhor apresentação dos seus produtos. “Criamos as oficinas de fotografia, além de apoio na infraestrutura das comunidades com a instalação de antenas para otimizar o sinal de Internet. No caso das lives do Jirau na Americanas ao Vivo, organizamos toda a estrutura de filmagem, direção e roteiro em Manaus”, explica.

Peculiaridades de um e-commerce de produtos indígenas

Na plataforma criada para o Jirau, a comunidade local pode vender jóias, acessórios, peças decorativas e artigos de casa e decoração - produzidos com sementes naturais, fibras e madeiras de reaproveitamento. Há ainda fruteiras, cestas, jogos americanos, abanos, colares, pulseiras, bolsas, luminárias, óculos… São muitos os itens apresentados no catálogo, que em sua maioria demandam cuidados especiais. Classificados como “frágeis”, requerem caixas adequadas, assim como embalagens protegidas para garantir a integridade durante o processo logístico - nesse caso, são entregues para todo o Brasil pela logística da Americanas S.A.

Foto: Divulgação/Correios

Segundo Araújo, os casos de logística reversa dos produtos vendidos pelo Jirau são mínimos, muito disso graças ao cuidado com o cadastro dos produtos. “Trabalhamos para que os anúncios sejam muito bem feitos, tanto em fotos como em descrição. Isso garante que o cliente tenha uma visão real de como o produto é e, ao recebê-lo, supere suas expectativas”. A executiva ainda destaca que a Americanas S.A. está em todos os estados do Brasil, em mais de 900 cidades,

com centros de distribuição, hubs logísticos e lojas. “Quando ocorre qualquer pedido de troca ou devolução, toda essa estrutura atua para o processo ser exatamente o mesmo de qualquer outro produto disponível em nossas plataformas”.

Jirau inspirou Americanas Social

Foi a partir do projeto do Jirau da Amazônia que a Americanas S.A. lançou, em fevereiro de 2021, a Americanas Social. Trata-se de uma plataforma que permite a venda de produtos de projetos sociais tanto no site como no aplicativo, e cujo lucro é revertido para as causas assumidas. “A Americanas Social tem o objetivo de fomentar a geração de renda e a empregabilidade em comunidades de vulnerabilidade social. Nossa meta é impactar ainda mais comunidades e grupos produtivos e trabalhar na capacitação e no desenvolvimento deles”, explica Araújo.

A plataforma reúne projetos com diferentes tipos de causas, que vão desde a geração de renda de pessoas, como mulheres em vulnerabilidade social e indígenas, até a conservação ambiental e a preservação de animais silvestres. Dentro da Americanas Social já estão instituições e grupos como Costurando Sonhos, Orientavida, Vocação, AmazôniaAtiva, Amparo Animal, Jirau da Amazônia, Instituto Ipê, Central do Cerrado e Cabelegria.

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