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I – Busca e a seleção de textos

• Organizem-se em cinco grupos para pesquisar em jornais, revistas, canais de TV e sites de empresas jornalísticas, mas também em blogs, redes sociais, podcasts, canais no YouTube de especialistas em educação, o que está sendo dito sobre o NEM. Todas essas fontes de pesquisa serão usadas como documentos.

Ativa O De Conhecimentos

Análise documental é a técnica de recolhimento de dados que abrange o estudo de diversos tipos de documentos.

[...} Entende-se por documento todas as realizações produzidas pelo homem que se mostram como indícios de sua ação e que podem revelar suas ideias, opiniões e formas de atuar e viver. Nesta concepção, é possível apontar vários tipos de documentos: os escritos, os numéricos ou estatísticos, os de reprodução de som e imagem e os documentos-objeto. [...]

SILVA, Lidiane R. C. et al Pesquisa documental: alternativa investigativa na formação docente. IX Congresso Nacional de Educação (Educere) III Encontro Sul Brasileiro de Psicopedagogia 26 a 29 de outubro de 2009 –PUCPR. Disponível em: http://150.162.8.240/somente-leitura/PNAP_2011_1/Modulo_1/Metodologia_Estudo_ Pesq_Adm/Material_didatico/Textos_apoio/Unidade_5/Pesquisa_documental.pdf. Acesso em: 25 jul. 2022.

• Cada grupo ficará encarregado de pesquisar as informações em veículos de comunicação de uma região do país: Centro-Oeste, Nordeste, Norte, Sudeste e Sul. Mas atenção: não dá para pesquisar em apenas uma ou duas fontes. Cuidado: existem veículos de comunicação que, por si só, chamam mais atenção, provocando, inclusive, a sensação de que tudo que falam é absolutamente verdade, mesmo que seja apenas um recorte da realidade. Existe ainda a possibilidade de, por alguma decisão dos donos do veículo, ele não falar sobre um assunto; isso, entretanto, não significa que esse assunto não existe, não é mesmo?

• Busquem e selecionem textos sobre o Novo Ensino Médio datados desde 2022 – ano em que se deu início à implementação do NEM – até os dias atuais. Procurem reportagens, notícias, editoriais, artigos de opinião, inclusive em formatos de vídeo e podcast

• Reúnam os documentos encontrados na pesquisa e estabeleçam critérios para arquivá-los: eles podem ser agrupados por gênero (reportagem, notícia, artigo de opinião etc.), por veículo de comunicação, por ano de divulgação, entre outros – o ideal é combinar critérios a fim de facilitar a análise posterior.

Parte II – Análise documental dos textos selecionados: foco no tipo de linguagem e nos contextos de produção

• Iniciem identificando a linguagem do documento: ela é verbal, visual, multissemiótica?

• Identifiquem a finalidade do texto: ele foi produzido para apresentar uma crítica, informar e discutir aspectos ligados ao NEM, influenciar a formação de um ponto de vista por parte dos interlocutores?

• Identifiquem, pelo documento analisado, o autor para além da pessoa física: o documento traz marcas que traduzem gostos, preferências, interesses, conhecimentos, preconceitos, posições políticas de pessoas ou instituições?

Parte III – Análise documental dos textos selecionados: foco nos conteúdos

• Produzam uma análise escrita dos conteúdos dos documentos selecionados pelo grupo, orientando-se pelas questões a seguir e retomando as perguntas elaboradas pela turma no 1º episódio:

— As escolas mais vulneráveis têm ofertado a mesma variedade de itinerários formativos que as outras? Os estudantes mais pobres estão tendo o direito de escolher?

— Apenas Matemática e Língua Portuguesa continuam obrigatórias para todos os estudantes durante os três anos do Ensino Médio? Às comunidades indígenas, foi garantido o ensino em suas línguas maternas?

— Como as escolas e as redes têm lidado com a oferta de Filosofia, Sociologia, Arte e Educação Física?

— Língua Espanhola continua fora do currículo ou foi reincorporada a ele?

— O Ministério da Educação promoveu de fato mudanças no Enem, a fim de adequá-lo à realidade do NEM?

— Todas as escolas de Ensino Médio estão funcionando em tempo integral e elas receberam aporte financeiro para aumentar a carga horária?

• Na elaboração das respostas por escrito, procurem esclarecer:

— É possível identificar uma maior ocorrência de textos sobre o NEM considerando um determinado recorte de tempo?

— Os documentos sinalizam propósitos em relação à defesa de algum aspecto específico do NEM? Apresentam argumentos favoráveis à necessidade de todos se engajarem na implementação do NEM?

— Os textos comunicam pontos de vista de uma pessoa em particular ou de uma instituição? No caso de ser uma pessoa em particular, é possível identificar a relação dela com o Ensino Médio: professor, estudante, gestor?

— Os textos analisados citam, direta ou indiretamente, outros textos? Se sim, quais? Esses outros textos foram usados para confirmar ou refutar pontos de vista?

— Os textos analisados ajudam os interlocutores a construir uma visão mais positiva ou mais negativa do NEM?

— Como os componentes do grupo se posicionam em relação a esses documentos?

Parte IV – Análise comparativa

• Busquem por peças publicitárias que refletem o discurso oficial, do governo federal ou de governos estaduais sobre o NEM.

• Comparem o que dizem os textos analisados pelo grupo sobre o NEM com o que diz o discurso oficial: há mais pontos de discordância ou de concordância entre esses discursos?

• Registrem os resultados da análise comparativa, destacando trechos dos textos da mídia e dos textos oficiais para fundamentar a análise realizada pelo grupo.

3. Organizem as análises feitas pelo grupo em um relatório e entreguem uma cópia impressa ou digital para os outros grupos. O relatório deve ser escrito na variedade linguística de prestígio, respeitando, portanto, as concordâncias, as regências, a pontuação e a ortografia próprias dessa variedade.

Parte I – Questões a serem consideradas no relatório

• Por meio da análise dos textos selecionados pelo grupo, de que modo o NEM tem sido visto no Brasil desde o ano de sua implantação, em 2022?

• É possível observar mudanças nessa visão que os brasileiros têm do NEM ao longo do período analisado?

• Como essa análise pode contribuir para a importância de as pessoas se engajarem na discussão sobre a qualidade do Ensino Médio público?

Parte II – Estrutura do relatório e o que escrever em cada parte da estrutura

• Título: Formulem um título que deixa claro para os leitores a natureza do trabalho e seus objetivos.

• Introdução: Descrevam sinteticamente o trabalho, trazendo uma justificativa e apresentando os caminhos percorridos pelo grupo. Para isso, respondam a estas perguntas básicas acerca do trabalho: O que é? Por que foi feito? Como foi feito? Além disso, insiram uma reflexão inicial sobre a importância de todos se engajarem no debate sobre o NEM.

• Metodologia: Basicamente, o método utilizado no trabalho foi a análise documental. Descrevam os textos e relatem o percurso do grupo na procura dos textos e na produção das análises.

• Análise dos dados: Discorram sobre as relações entre as descobertas em cada texto pesquisado e os dados obtidos.

• Considerações finais: Apresentem os resultados obtidos na comparação entre o que dizem os textos pesquisados e o discurso oficial sobre o NEM.

• Referências bibliográficas: Apresentem o material utilizado na realização da pesquisa: revistas, matérias de jornais, sites etc. Apresentem as informações completas, de acordo com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Vejam dois modelos:

— Com autor: SOBRENOME, nome. Título da matéria. Nome do periódico (em itálico ou negrito), cidade de publicação, dia, mês e ano. Seção (editoria). Disponível em: URL. Acesso em: dia, mês e ano.

— Sem autor: TÍTULO da matéria. Nome do periódico (em itálico ou negrito), cidade de publicação, dia, mês e ano. Seção (editoria). Disponível em: URL. Acesso em: dia, mês e ano.

6º EPISÓDIO: VAMOS EXPANDIR A RODA DE CONVERSA?

Neste episódio, você vai convidar estudantes, professores e gestores de escolas de Ensino Médio para uma conversa das boas.

6o episódio: Vamos expandir a roda de conversa?

O foco deste episódio é a realização de uma grande roda de conversa para a qual deverão ser convidados, além da comunidade da escola atual, gestores, professores e estudantes de escolas de Ensino Médio. Nessa oportunidade, cada grupo deverá ler o relatório da pesquisa documental realizado no episódio anterior. A partir da leitura dos relatórios, a fala será franqueada a todos os presentes. O objetivo é promover uma aproximação entre os estudantes do 9º ano e a comunidade envolvida com o Ensino Médio.

Tempo previsto: 2 aulas

Conversação espontânea: EF89LP27

Participação em discussões orais de termas controversos de interesse da turma e/ou de relevância social: EF69LP13, EF69LP14, EF69LP15

1. Planejem a roda de conversa, definindo os seguintes elementos: os objetivos da conversa, o local, a data e o horário, uma previsão do número de participantes, tempo de duração da atividade, o convite, os materiais que serão utilizados, uma mensagem para a abertura.

2. Preparem, com a antecedência necessária, o local para que todos os convidados possam ser acolhidos de modo confortável no espaço.

3. Convidem, além das pessoas da comunidade de sua atual escola, estudantes, professores e gestores de escolas de Ensino Médio para a roda de conversa sobre o NEM, que pode ter a seguinte configuração:

I. No primeiro momento, cumprimentem e agradeçam pela presença de todos e solicitem que coloquem os celulares no modo silencioso.

II. Em seguida, apresentem a programação do evento: a apresentação do tema, a leitura dos relatórios de pesquisa documental realizada pelos grupos sobre o NEM, seguida de um “papo reto”, no qual os convidados terão a oportunidade de avaliar a implantação do NEM em suas escolas e de responder às perguntas de vocês.

III. Nesse terceiro momento, devem ser colocadas em prática as atividades programadas.

IV. Por último, deve ser garantido um espaço para que os participantes reflitam sobre o que foi debatido na roda de conversa.

4. Realizem a atividade, procurando se ater ao que foi programado e roteirizado.

5. Agora é o momento de avaliar a roda de conversa realizada: de que modo ela contribuiu para vocês construírem um olhar fundamentado sobre Novo Ensino Médio?

Esta atividade é importante porque, prestes a ingressar no Ensino Médio, os estudantes precisam estar bem-informados sobre essa etapa da escolarização básica. A formação de jovens protagonistas só acontecerá se eles se engajarem no debate por uma escola de qualidade para todos e todas. Aja como mediador da roda de conversa e cuide para que todos que queiram falar tenham esse direito garantido. Oriente os estudantes a respeitarem os turnos de fala, evitando interromper colegas e demais convidados.

Respostas

5. Resposta pessoal.

7o episódio: Mesmo tema, outro campo de atuação social Conto

Neste episódio, os estudantes são convidados a refletir sobre um conto que narra as relações entre o professor e os estudantes em uma sala de aula do século XIX.

Tempo previsto: 3 aulas

Reconstrução das condições de produção, circulação e circulação:

EF69LP44

Reconstrução da textualidade e compreensão dos efeitos de sentidos provocados pelos usos de recursos linguísticos e multissemióticos:

EF69LP47

Produção de textos orais / Oralização:

EF69LP53

Recursos linguísticos e semióticos que operam nos textos pertencentes aos gêneros literários: EF69LP54

Estratégias de leitura / Apreciação e réplica: EF89LP33

Reconstrução das condições de produção, circulação e recepção / Apreciação e réplica: EF69LP46.

Respostas

1. a) • A principal diferença é que, na imagem da esquerda, o escritor é retratado como branco, dada as vestes e o pince-nez, pequeno óculos sem haste típico do século XIX; já, na imagem da direita, colorizada, fica evidente a cor da pele de Machado de Assis.

b) • Evidenciar a negritude de Machado de Assis, invisibilizada pela elite intelectual de sua época.

• A expectativa é de que os estudantes compreendam que a atitude dos universitários se relaciona com o objetivo de romper com o silenciamento ou apagamento do povo negro na história brasileira. Aos olhos da elite branca, era absurdo que um escritor tão talentoso fosse negro.

2. Peça aos estudantes que se alternem na leitura do conto, já que ele é razoavelmente longo.

Gentleman: homem elegante, refinado.

7

MESMO TEMA, OUTRO CAMPO DE ATUAÇÃO SOCIAL CONTO

Neste episódio, você vai ler o “Conto de escola”, escrito por um dos mais consagrados escritores brasileiros: Machado de Assis.

1. Antes de mergulhar no conto, vamos conhecer mais sobre Machado de Assis?

a) Analise estas duas imagens do escritor.

• Qual a principal diferença de característica física do autor entre as duas imagens?

b) A reprodução do lado esquerdo é a imagem clássica de Machado de Assis, amplamente divulgada em livros; a do lado direito é a mesma fotografia recriada pela campanha “Machado de Assis real”, realizada por estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares, localizada em São Paulo. Responda:

• Em sua opinião, qual é o objetivo dessa campanha?

• Como você avalia a atitude dos estudantes da Faculdade Zumbi de Palmares? Fale para os colegas.

2. Agora, a turma vai fazer uma leitura coletiva de “Conto de escola”.

Conto de escola

A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia – uma segunda-feira, do mês de maio – deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.

Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.

Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinquenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.

— Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.

Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinquenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.

— O que é que você quer?

— Logo, respondeu ele com voz trêmula.

Boceta: caixinha.

Cordovão: couro de cabra.

Rapé: fumo em pó.

Sova: surra.

Suetos: folgas, feriados.

Tesa: reta.

Aperreado: aflito.

Bojava (bojar): flutuava.

Fitava (fitar): fixava a vista.

Mofino: fraco, frágil.

Papagaio: pipa.

Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.

Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.

— Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.

— Não diga isso, murmurou ele.

Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.

— Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.

— Que é?

— Você

— Você quê?

Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.

Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...

— De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde. — Então agora...

— Papai está olhando.

Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública.

Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.

No fim de algum tempo – dez ou doze minutos – Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.

— Sabe o que tenho aqui?

— Não.

— Uma pratinha que mamãe me deu.

— Hoje?

— Não, no outro dia, quando fiz anos...

— Pratinha de verdade?

— De verdade.

Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.

— Mas então você fica sem ela?

— Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?

Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...

Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.

Compreende-se que o ponto da lição era dif ícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, – e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, – parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, – mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado

Azinhavrado: esverdeado por conta da corrosão do material.

Brandir: agitar de um lado para outro. Olhos do diabo: furos existentes nas extremidades da palmatória.

Pratinha: moeda.

Algibeira: bolso oculto.

Cunho: parte em relevo da moeda.

Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. — Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...

— Tome, tome...

Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e – tanto se ilude a vontade! – não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.

— Dê cá

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.

De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

— Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.

— Diga-me isto só, murmurou ele.

Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.

— Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.

Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

— Venha cá! bradou o mestre.

Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.

— Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disse-me o Policarpo.

— Eu...

— Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.

Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.

— Perdão, seu mestre... solucei eu.

— Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!

— Mas, seu mestre...

— Olhe que é pior!

Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!

Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dois serem cinco.

Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?

— Tu me pagas! tão duro como osso! — dizia eu comigo.

Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na rua Larga de S. Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.

Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao b) Provavelmente não. A tendência é de que Policarpo descrevesse a escola como um lugar essencial para a formação dos jovens. Também é provável que ele fizesse uma avaliação positiva da forma como desempenhava seu papel de professor. diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...

Arquejava (arquejar): respirava com dificuldade.

Fustigado: castigado. Impropérios: insultos, ofensas.

2. Como o conto de Machado foi escrito no século XIX, ele traz muitas palavras que não são mais utilizadas ou são pouco utilizadas atualmente: isso pode ser apontado como evidência da variação linguística em função do tempo – o português de hoje não é o mesmo do século XIX.

3. a) Para a personagem, a escola é uma prisão, um lugar em que ele não pode se divertir, já que todas as coisas boas – a pipa, o céu azul, os garotos que ficam na vadiagem – estão do lado de fora. Além disso, Pilar achava as aulas chatas, maçantes, até porque ele era um dos mais inteligentes e espertos, acabando as atividades antes e depois “matando o tempo”.

4. • A corrupção se materializa quando Raimundo oferece uma moeda a ele, Pilar, para que lhe ensinasse a matéria. Ele percebe a gravidade por conta de sua repercussão: os impropérios e a palmatória usada por Policarpo em ambos os meninos. A delação se materializa pela ação de Curvelo, que delata a “negociata” ao professor.

5. • Resposta pessoal. Castigos como os relatados por Pilar são proibidos atualmente, embora muitos jovens ainda sofram violência física no espaço escolar – há ainda os constrangimentos em decorrência de bullying. Discuta com os estudantes se há ações adotadas na escola que podem ser classificadas dessa forma e problematize ações que podem ser feitas para minimizar essa ideia do castigo, da punição. Retome a importância do diálogo para a resolução de conflitos, lembrando os jovens de que todos temos direitos e deveres.

• Tanto a escola do tempo de Machado quanto a escola dos tempos atuais vivem tensões e polêmicas, pois a escola acaba refletindo um contexto mais amplo, para além de seus muros. O tema desta missão pode ser sintetizado em: Que escola queremos? A pergunta pode ser transferida para a personagem central da história: Qual seria a escola dos sonhos de Pilar?

Comichão: coceira.

De manhã, acordei cedo. A ideia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...

Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...

Machado de Assis. Os melhores contos de Machado de Assis. 15. ed. São Paulo: Global, 2004. p. 135-141.

2. Levante uma hipótese para explicar por que as várias palavras que compõem o boxe Atalho podem ser consideradas uma evidência do fenômeno da variação linguística. Explique sua hipótese.

3. A história é contada a partir da perspectiva de Pilar, narrador-personagem, que já está mais velho, e relembra a história. Responda: a) Qual é a relação dessa personagem com a escola e com as aulas? b) Se a história fosse contada pelo professor Policarpo, ela seria a mesma? Fale para a turma o que você pensa.

4. No último parágrafo do conto, Pilar cita os conhecimentos que a situação narrada proporcionou a ele: delação e corrupção.

• Como esses dois conceitos se materializam na história?

5. Na escola do século XIX, quando um estudante tinha uma conduta considerada inadequada, ele era punido pelo professor, inclusive fisicamente.

• Você acha que esse tipo de procedimento ainda se faz presente na escola de hoje? Converse com os colegas e o professor.

• Como o conto de Machado de Assis se relaciona com o tema desta missão?

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