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O EXTRAORDINÁRIO DA VIDA
Roteiro
Neste projeto artístico-literário, você vai:
ler A vida que ninguém vê, de Eliane Brum;
Eliane Brum
discutir a importância das crônicas para a reflexão de temas mais amplos, como a morte, a solidariedade, a loucura, a desigualdade social etc.;
trabalhar com os conceitos de prosa poética e sequências descritivas, argumentativas, narrativas e dialogais; produzir um podcast literário para comentar a leitura de crônicas.
Quando reparar na vida dos outros não é algo negativo? Os cronistas, jornalistas e escritores são a chave dessa resposta, pois são capazes de transformar em arte a vida nossa de cada dia!
Motiva O Reparando Em Miudezas
O que é desimportante e inútil para você? Será que também seria inútil e desimportante para o outro? Conhece algum artista que se vale do lixo e do descarte para fazer sua arte?
1. Responda às perguntas a seguir a partir da observação das imagens.
a) O que você vê na imagem?
b) E agora, o que pode ser visto na imagem?
c) Você costuma ter um olhar mais objetivo ou subjetivo para as coisas cotidianas?
Reparando em miudezas
As atividades desta seção visam motivar os estudantes para a leitura, inicialmente, da primeira crônica do livro A vida que ninguém vê por meio de atividades lúdicas que levem os estudantes a entrarem no universo temático da obra que lerão.
Tempo previsto: 1 aula.
Reconstrução das condições de produção, circulação e recepção / Apreciação e réplica: EF69LP44.
Adesão às práticas de leitura: EF69LP49
RESPOSTAS
1. a) Um muro descascado.
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![](https://assets.isu.pub/document-structure/230426201404-059d7af8a8aa3fcb78b64463b78126d2/v1/fcd0647f829c577dc67e92956920fa58.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
b) A partir de outro olhar, é possível ver outras coisas, como uma casa, por exemplo.
c) Resposta pessoal.
2. Convide os estudantes a conhecerem a biografia desse importante artista e pesquisem na internet outras obras de sua autoria.
a) Com materiais do cotidiano.
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b) Os objetos ganham status de objetos estéticos, de contemplação.
c) Resposta pessoal.
3.
a) O cronista pode interferir no cotidiano, fazendo com que o leitor reflita sobre os fatos do cotidiano.
b) Os dois chamam atenção para as coisas do cotidiano e a importância deles.
c) Resposta pessoal.
d) Resposta pessoal.
a) De que maneira são feitos os objetos usados nessa obra?
b) Qual dimensão esses objetos ganham reunidos dessa maneira?
c) Qual leitura você faz dessa obra de arte?
3. Veja o que um cronista diz sobre as crônicas.
I. Luis Fernando Verissimo diz que o cronista é como uma galinha, bota seu ovo regularmente. […] a) Qual é a relação entre o cronista e o cotidiano? b) De que maneira o trabalho dos cronistas se relaciona ao de Arthur Bispo do Rosário? c) Quais cronistas você conhece? d) Que outras informações sobre as crônicas você conhece?
II. […] O cronista é o mais livre dos redatores de um jornal. Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve) falar na primeira pessoa sem envergonhar-se. Seu “eu”, como o do poeta, é um eu de utilidade pública.
III. […] Uma das funções da crônica é interferir no cotidiano. Claro que essas que interferem mais cruamente em assuntos momentosos tendem a perder sua atualidade quando publicadas em livro. Não tem importância. O cronista é crônico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. O cronista é um escritor crônico. In: Porta do colégio e outras crônicas São Paulo: Ática, 2002, v. 16, p. 7-8 (Coleção Para Gostar de Ler).
INTRODUÇÃO QUEM É A ESCRITORA?
Oi! Me chamo Eliane Brum e escrevi o livro A vida que ninguém vê, que é um conjunto de textos a que podemos chamar de crônicas-reportagem, publicados inicialmente em uma coluna do jornal Zero Hora, em 1999. Leia um pouco sobre mim e meu trabalho.
1. Leia as informações sobre Eliane Brum que se encontram na orelha do livro A vida que ninguém vê
Gaúcha de Ijuí, nascida em 1966, Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista. Iniciou no jornalismo em 1988 e tornou-se uma das repórteres mais premiadas do Brasil. Publicou seis livros – cinco de não ficção e um romance. Pela Arquipélago Editorial, lançou A vida que ninguém vê (2006, Prêmio Jabuti de melhor livro de reportagem), A menina quebrada (2013, Prêmio Açorianos de melhor livro do ano), O olho da rua (2017, segunda edição) e Meus desacontecimentos (2017, segunda edição). Atualmente, desenvolve seu principal projeto de reportagem na Amazônia e é colunista do portal El País a) Na breve biografia, há mais informações pessoais ou profissionais? b) No texto, é dito que Eliane é jornalista, escritora e documentarista. Quais informações sobre essas três atividades são mencionadas?
BRUM, Eliane. A vida que ninguém vê Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2006. (Orelha da quarta capa).
2. Leia agora uma biografia mais atualizada da jornalista, retirada de seu site http://elianebrum.com/biografia.
![](https://assets.isu.pub/document-structure/230426201404-059d7af8a8aa3fcb78b64463b78126d2/v1/209656dfc2eb0227e20dd82c18760e8f.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
Gaúcha de Ijuí, nascida em 1966, Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista. Publicou oito livros no Brasil – sete de não ficção e um romance –, além de participar de coletâneas de crônicas, contos e ensaios. Em 2019, publicou seu primeiro livro de reportagens em inglês, pelas editoras Graywolf, nos Estados Unidos, e Granta, no Reino Unido. The Collector of Leftover Souls foi também traduzido para o italiano e para o polonês. Assina a direção e codireção de quatro documentários. O primeiro deles, Uma História Severina, foi reconhecido por 17 prêmios nacionais e internacionais. Eliane é a jornalista mais premiada do Brasil, segundo levantamento anual feito pelo site especializado Jornalistas & Cia. Em 2021, recebeu o Prêmio Maria Moors Cabot, oferecido pela Columbia University School of Journalism, de Nova York (EUA), o mais relevante prêmio de jornalismo das Américas e o mais antigo do mundo, por sua carreira. É colunista do jornal espanhol El País e colaboradora de vários jornais e revistas da Europa e dos Estados Unidos, como The Guardian e The New York Times Jornalista há quase 35 anos e cobrindo a Amazônia há quase 25, Eliane Brum trabalhou em Porto Alegre nos primeiros 11 anos da carreira e em São Paulo nos 17 anos seguintes. Desde 2017, vive e trabalha a partir de Altamira, no Médio Xingu, um dos epicentros da destruição da floresta amazônica.
Introdu O
Quem é a escritora?
As atividades desta seção visam introduzir a obra a ser lida, ou seja, as condições de produção, com foco na autoria da obra.
Tempo previsto: 1 aula
Reconstrução das condições de produção, circulação e recepção / Apreciação e réplica: EF69LP44
Adesão às práticas de leitura: EF69LP49
Respostas
1. Caso os estudantes não saibam, explique a eles que as orelhas são as dobras da primeira e da quarta capa de um livro de capa mole, que podem trazer a sinopse da obra, comentários sobre ela e informações sobre o escritor.
a) A maioria das informações se refere à questão profissional. A informação pessoal que aparece é o ano e local de nascimento (1966, Ijuí).
b) Sobre o jornalismo, é dito que ela iniciou em 1988 e tornou-se uma das repórteres mais premiadas do Brasil. Também é mencionado que ela trabalha para o jornal El País e que está fazendo uma reportagem na Amazônia. Sobre ser escritora, aparece a informação de que escreveu seis livros (cinco de não ficção e um romance) e o nome de alguns deles publicados pela Arquipélago Editorial. Não há informação sobre os documentários produzidos por ela.
2.
a) As informações atualizadas são as seguintes: são oito, e não seis livros escritos por ela, além da sua participação em coletâneas de crônicas, contos e ensaios; o novo prêmio recebido por ela e a informação de que ela não é uma das jornalistas mais premiadas, mas a mais premiada do Brasil; o nome dos jornais e das revistas que ela escreve além do El País, The Guardian e The New York Times b) São novas as informações de que seus livros foram traduzidos (para o inglês, o italiano e o polonês) e publicados em outros países e a quantidade de documentários produzidos, além do nome do primeiro deles e a informação de que foi premiado. a) Eliane Brum fala sobre como foi despertada para a literatura, ou seja, como começou a gostar de ler. b) Resposta pessoal. c) São textos que não falam de temas e pessoas que interessariam o público em geral. d) Sim. É possível saber disso a partir da atividade anterior. e) Os peixes eram embrulhados em folhas de jornal antigos, por isso ela usa a expressão “embrulhar peixe”. Dessa forma, ela aponta duas concepções do fazer jornalismo e afirma ter uma visão mais otimista. a) Quais informações você diria que foram atualizadas? b) Quais informações sobre ela foram adicionadas?
3. Incentive os estudantes a visitarem o site oficial da escritora: http://elianebrum. com/livros/ (acesso em: 30 jun. 2022).
![](https://assets.isu.pub/document-structure/230426201404-059d7af8a8aa3fcb78b64463b78126d2/v1/7fbcd6936e9412a4623c5a77ad9ffc86.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
Este é o momento de os estudantes se valerem de seus conhecimentos prévios sobre os gêneros que se situam entre os campos jornalístico e literário, como as crônicas, por exemplo. O jornalismo literário se refere a uma forma de escrever reportagens, que “vai além das aparências e mergulha fundo nos fatos, gerando obras criativas, que exploram o lado autoral de cada jornalista, e ao mesmo tempo exigem destes profissionais o apuro na apresentação de dados minuciosos e a procura do ser humano por trás dos fatos objetivos.” Disponível em: www.infoescola. com/comunicacao/jornalismo-literario (acesso em: 19 jul. 2022).
3. Leia trechos de uma matéria realizada com Eliane Brum à época do lançamento do livro A vida que ninguém vê, publicada em 2006.
A Arte De Tornar Vis Vel
O despertar depoimento à Vanessa Bueno
“Aprender a ler foi uma super descoberta para mim. Era a coisa que eu mais gostava de fazer quando criança, e é até hoje. Tinha uma livraria perto da minha casa lá em Ijuí que se chamava Cultura. Quem cuidava dos livros era a Lili. Ela me deixava ficar sentada no chão, no cantinho, lendo de graça. Sem dúvida, Lili foi uma das pessoas mais importantes da minha infância. Comecei por Monteiro Lobato, li toda a obra. Leio rápido. Mesmo hoje, com muito trabalho, são dois livros por semana. (…) Sempre me preparo com antecedência para ler. Deito no meu sofá azul com uma xícara de leite condensado, uma colher e um edredom, mesmo que esteja quente. Só saio de lá depois de acabar, feliz. […]”.
Jornalismo literário
“As pessoas classificam meus textos como jornalismo literário. Fico honrada, porque tem gente muito bacana nessa área. Mas não gosto de me catalogar. No início, sofri um pouco com esse meu jeito de escrever. Não que eu tenha criado algo novo. Quando comecei, os caras do New Journalism americano já faziam isso há tempos. Mas vivíamos um momento no Brasil em que a Folha de S.Paulo, por exemplo, explorava um estilo de texto mais objetivo. […]”.
[…] Prêmio Jabuti
“O fato de terem premiado ‘antinotícias’ com um Jabuti é muito significativo. Contar a vida de alguém é uma responsabilidade imensa. Como repórter, já tive experiências inacreditáveis, em que pensava: meu Deus, estou vivendo! Mas ainda falta ficção. Sinto que preciso deixar meus demônios falarem. Sonho em um dia conseguir dinheiro para passar um ano sem trabalhar, só criando. Me relaciono com o mundo escrevendo. Só escrevo sobre assuntos que me interessam. Já derrubei um montão de pautas. Um repórter pode achar que o que ele faz embrulha peixe, ou pensar que é uma testemunha da história. Escolhi ser testemunha.” a) O que Eliane Brum aborda no trecho “O despertar”? b) O que são textos classificados como jornalismo literário? c) O que são “antinotícias”? d) Ela conseguiu publicar seu livro de ficção? e) Converse com um colega sobre o significado do trecho “Um repórter pode achar que o que ele faz embrulha peixe, ou pensar que é uma testemunha da história. Escolhi ser testemunha.”
BUENO, Vanessa. A arte de tornar visível. Revista da Cultura, [S. l.], [20--]. Disponível em: http://elianebrum.com/elianebrum/wpcontent/uploads/2011/10/A-vida-1.pdf. Acesso em: 30 jun. 2022.
LEITURA E INTERPRETAÇÃO (PARTE I) O QUE PODE UM OLHAR?
Na crônica-reportagem que está prestes a ler, você vai se emocionar com o encontro entre Israel Pires e Eliane Vanti e com o que aconteceu a eles depois disso.
LEITURA E INTERPRETAÇÃO (PARTE I)
O que pode um olhar?
Eliane Brum
1. Observe a fotografia que acompanha a crônica-reportagem “História de um olhar” e responda às perguntas.
Nesta seção, os estudantes farão a leitura da primeira crônica-reportagem do livro A vida que ninguém vê, de Eliane Brum.
Tempo previsto: 1 ou 2 aulas
Reconstrução das condições de produção, circulação e recepção / Apreciação e réplica: EF69LP44
Reconstrução da textualidade e compreensão dos efeitos de sentidos provocados pelos usos de recursos linguísticos e multissemióticos: EF69LP47
Adesão às práticas de leitura: EF69LP49.
Produção de textos orais / Oralização: EF69LP53
Estratégias de leitura / Apreciação e réplica: EF89LP33
Figuras de linguagem: EF89LP37
Coesão: EF09LP11 a) Onde as pessoas parecem estar? b) A fotografia está desfocada e apenas um detalhe está nítido. Qual é esse detalhe e de que forma ele se relaciona ao título da crônica-reportagem? c) Quais previsões sobre o texto é possível fazer com base nessa fotografia?
![](https://assets.isu.pub/document-structure/230426201404-059d7af8a8aa3fcb78b64463b78126d2/v1/5c2593c46a9396fa8592ace677875407.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
2. Leia o texto em voz alta com os colegas.
Hist Ria De Um Olhar
O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca Resgata. Reconhece. Salva.
Inclui.
Esta é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por enxergar, reconhece. E por reconhecer, salva.
Esta é a história do olhar de uma professora chamada Eliane Vanti e de um andarilho chamado Israel Pires.
Um olhar que nasceu na Vila Kephas. Dizem que, em grego, kephas significa pedra. Por isso um nome tão singular para uma vila de Novo Hamburgo. Kephas foi inventada mais de uma década
Respostas
1. a) É possível dizer que Israel, seus colegas e a professora Eliane estão em uma sala de aula, pois ele está sentado e, em sua mesa, aparecem papel e lápis.
b) A parte dos olhos de Israel e de dois de seus colegas estão nítidos. O termo “olhar” liga o destaque da fotografia ao título, “História de um olhar”.
c) Resposta pessoal. Os estudantes devem discutir a simbologia do termo “olhar”. Eles podem observar, ainda, que algo se passará na escola, já que é onde as personagens parecem se encontrar.
2. Escolha estudantes para prepararem a leitura do texto e lerem para os colegas. Você pode fazer uma lista e, a partir dela, eles podem seguir lendo os parágrafos.
atrás pedra sobre pedra. Em regime de mutirão. Eram operários da indústria naqueles tempos nada longínquos. Hoje, desempregados da indústria. Biscateiros, papeleiros. Excluídos.
Nesta Kephas cheia de presságios e de misérias vagava um rapaz de 29 anos com o nome de Israel. Porque em todo lugar, por mais cinzento, trágico e desesperançado que seja, há sempre alguém ainda mais cinzento, trágico e desesperançado. Há sempre alguém para ser chutado por expressar a imagem-síntese, renegada e assustadora, do grupo. Israel, para a Vila Kephas, era esse ícone. O enjeitado da vila enjeitada. A imagem indesejada no espelho.
Imundo, meio abilolado , malcheiroso, Israel vivia atirado num canto ou noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe morta, vivendo em uma casa cheia de fome com a madrasta e uma irmã doente. Desregulado das ideias, segundo o senso comum. Nascido prematuro, mas sem dinheiro para diagnóstico. Escorraçado como um cão, torturado pelos garotos maus. Amarrado, quase violado. Israel era cuspido. Era apedrejado. Israel era a escória da escória.
Um dia Israel se aproximou de um menino. De nove anos, chamado Lucas. Olhos de amêndoa, rosto de esconderijo. Bom de bola. Bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. Até a porta onde Lucas desaparecia todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até a porta onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou até lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar.
Aconteceu neste inverno. Eliane, a professora, descobriu Israel. Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro dele mesmo. Um vulto, um espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata pidão, dando a cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la.
Eliane viu Israel. E Israel se viu refletido no olhar de Eliane. E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel descobriu um outro Israel navegando nas pupilas da professora. Terno, especial, até meio garboso Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro.
Capturado por essa irresistível imagem de si mesmo, Israel perseguiu o olho de espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do olhar. E, quando perceberam, Israel estava no interior da escola. E, quando viram, Israel estava na janela da sala de aula da 2ª série C. Com meio corpo para dentro do olhar da professora.
Uma cena e tanto. Israel na janela, espiando para dentro. Cantando no lado de fora, desenhando com os olhos. Quando o chamavam, fugia correndo. Escondia-se atrás dos prédios. Mas devagar, como bicho acuado, que de tanto apanhar ficou ressabiado , foi pegando primeiro um lápis, depois um afago. E, num dia de agosto, Israel completou a subversão. Cruzou a porta e pintou bonecos de papel. Israel estava todo dentro do olhar da professora.
E o olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala de aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de olhos de crianças. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor. E, no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba feita, roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da professora. Trazia até umas pupilas novas, enormes, em forma de facho. E um sorriso também recém-inventado. Entrou na sala onde a professora pintava no chão e ela começou a chorar. E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram de lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel.
Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o abandonou. Vive hoje nesse olhar em formato de sala de aula, cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas. Refletido por esses olhos, Israel passou a refletir todos eles. E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel. E as crianças, que têm na escola um intervalo entre a violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos olhos de Israel.
Israel, não importa se alguém não gosta de você. O que importa é que você siga a vida, aconselha Jeferson, de oito anos. Israel, não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares, promete Greice, de nove. Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vandinho, porque todo mundo tem medo do Vandinho, tranquiliza Lucas, nove. Israel, tu me botas na garupa no recreio?
E foi assim que o olhar escorreu pela escola e amoleceu as ruas de pedra.
Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou o respeito da vila, a admiração do pai. Vai ganhar uma vaga oficial na escola. Já consegue escrever o “P” de professora. E ninguém mais lhe atira pedras. A professora, depois que se descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e chora à toa. Parou de reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A redenção de Israel foi a revolução da professora.
Em 7 de Setembro, Israel desfilou. Pintado de verde-amarelo, aplaudido de pé pela Vila Pedra. [18 de setembro de 1999]
BRUM, Eliane. A vida que ninguém vê Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2006. p. 22-25.
ATALHO
Abarca (abarcar): abraça, envolve, alcança.
Abilolado: um pouco doido, maluco.
Acossada: perseguida, atacada, acuada.
Afaga (afagar): acaricia, faz carinho.
Cucas: quitute de origem alemã, comum na região sul do Brasil.
3. O você sentiu ao ler o texto?
Escória: alguém desprezível, vil.
Flagelada: atormentada, castigada.
Garboso: elegante.
Pária: excluído, marginalizado.
Ressabiado: desconfiado.
Vagalhão: grande vaga, onda.
4. Qual é a função dos três primeiros parágrafos? De que maneira eles se relacionam com o restante do texto?
5. O que são apresentados no quarto e no quinto parágrafo?
6. No sexto e no sétimo parágrafo, há o aprofundamento de uma das personagens. Responda: a) Quais informações objetivas são apresentadas sobre ela? b) Explique as expressões usadas para caracterizá-la.
I. “Israel, para a Vila Kephas, era esse ícone. O enjeitado da vila enjeitada. A imagem indesejada no espelho.”
II. “Desregulado das ideias, segundo o senso comum.”
III. “Israel era a escória da escória.” olhos de crianças. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor.” (Parágrafo 13) b) I. “Israel, para a Vila Kephas, era esse ícone. O enjeitado da vila enjeitada. A imagem indesejada no espelho.”
7. Em que circunstância Eliane, a professora, descobriu Israel? Como foi esse encontro?
• O que aconteceu com Israel depois disso?
8. Qual passagem do texto mostra que a ação da professora contagiou toda a turma?
9. Como a vida da professora e dos colegas se transformou depois de Israel?
9. A presença de Israel na sala fez com que a professora, “que andava deprimida e de mal com a vida”, voltasse a se sentir bem, “bela, importante”. Assim como as crianças aprenderam que seus destinos, assim como o de Israel, não estão predeterminados e, portanto, podem traçar para si próprias trajetórias de sucesso.
3. Resposta pessoal. Incentive os estudantes a explicarem o que produziu neles o efeito relatado.
4. Os três primeiros parágrafos funcionam como uma tese defendida pela escritora, em que a história que ela conta em seguida serve de exemplo para aquilo que reflete no início do texto: a ideia de que é possível fazer coisas grandiosas a partir de pequenas atitudes.
5. No quarto parágrafo, a narradora apresenta as personagens: a professora Eliane Vanti e o andarilho Israel Pires. Já no quinto parágrafo, apresenta-se o espaço em que as personagens se movimentam: a Vila Kephas, em Novo Hamburgo, região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
6. a) Israel era um rapaz de 29 anos que vivia com o pai pedreiro, a madrasta e uma irmã doente. Sua mãe morreu e sua família era muito pobre.
Israel era excluído e rejeitado por pessoas também excluídas e rejeitadas socialmente. Como as pessoas não queriam se lembrar da própria pobreza, espelhada na figura de Israel, elas o desprezavam.
II. “Desregulado das ideias, segundo o senso comum.”
Aqui há uma relativização da ideia de que Israel era doido ou maluco. O senso comum, ou seja, as pessoas que não o conheciam direito, achava que ele não tinha boas ideias.
III. “Israel era a escória da escória.”
A narradora repete e reforça a ideia de exclusão social de Israel e das pessoas do bairro onde ele morava. Ele é descrito como “imundo, meio abilolado, malcheiroso, Israel vivia atirado num canto ou noutro da vila”; era “escorraçado”, “torturado”, “amarrado”, “quase violado”, “cuspido”, “apedrejado”.
7. No dia em que Israel seguiu Lucas até a porta da escola, a professora o viu. O olhar trocado por Eliane e Israel foi capaz de fazê-lo sentir-se como pessoa, como ser humano. O olhar dela de reconhecimento o humanizou: “Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro”.
• Aos poucos, a professora ganhou a confiança de Israel, que passou a frequentar a escola.
8. “E o olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala de aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de
10. No parágrafo 15, aparecem diálogos entre Israel e os colegas, no entanto, esse discurso não é marcado por aspas ou travessões, somente pela fala (com o vocativo), pelos verbos de dizer (aconselha, promete, tranquiliza) e pelo nome da personagem que fala e sua idade (“Jeferson, de oito anos”; “Greice, de nove”; “Lucas, nove”). Além disso, no último diálogo, aparece somente a fala e não há identificação de quem falou ou de como falou (verbos de dizer).
11. Sete de setembro de 1822 é o dia da independência do Brasil e, desde então, a data é comemorada para reforçar a ideia de patriotismo: sentimento de orgulho, amor e devoção à pátria, a seus símbolos (bandeira, hino, brasão, riquezas naturais e patrimônio material e imaterial) e a seu povo.
12. No parágrafo 16, é dito que “o olhar escorreu pela escola e amoleceu as ruas de pedra”, ou seja, a atitude de reconhecimento e acolhimento de Israel por parte da professora fez outras pessoas dentro e fora da escola também reproduzirem a mesma atitude. Nos parágrafos 17 e 18, há exemplos desse reconhecimento: ele ganhou a admiração do pai, ganhou uma vaga oficinal na escola, as pessoas não lhe atiravam mais pedras, foi aplaudido de pé pelos moradores de Vila Pedra no desfile de 7 de setembro.
13. Resposta pessoal.
Espera-se que os estudantes tentem se lembrar de episódios vividos ou relatados por pessoas próximas em que a ação de alguém fez diferença para o outro, como a história de Israel e Eliane.
14. a) No trecho “Porque em todo lugar, por mais cinzento, trágico e desesperançado que seja, há sempre alguém ainda mais cinzento, trágico e desesperançado.”, a repetição das palavras “cinzento”, “trágico”, “desesperançado”, usadas de forma metafórica (“cinzento”, por exemplo, simboliza algo negativo, mórbido, triste) e metonimicamente (“lugar” se refere às pessoas que moram naquele espaço), acaba reforçando as características negativas da personagem.
No trecho “De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. Até a porta onde Lucas desaparecia todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até a porta onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou até lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar”. O termo “porta” é usado metonimicamente para se referir à escola; a repetição da expressão “até a” ajuda a chamar atenção para a caracterização da escola; a gradação construída a) Cite dois trechos em que aparecem figuras de linguagens, como a metonímia, a comparação, a metáfora, a gradação, a repetição. Em seguida, explique o uso dessas figuras.
10. Identifique no texto como o discurso direto foi apresentado.
11. O que simboliza o desfile de 7 de setembro?
12. Comente a relação entre os parágrafos 16, 17 e 18.
13. Você já vivenciou algo ou teve conhecimento sobre algum fato que comprova a tese da cronista? Comente com os colegas sobre o episódio lembrado.
14. Observe a linguagem usada na história que você leu.
Ativa O De Conhecimentos
Vamos relembrar o conceito de metáfora, comparação, metonímia e gradação?
1. Metáfora: consiste em uma comparação, mas sem a presença da conjunção. “O olhar amoleceu as ruas de pedra.”
2. Comparação: estabelece uma comparação entre dois ou mais elementos ligados por uma conjunção. “Suas lágrimas são como um vagalhão.”
3. Metonímia: consiste em substituir uma palavra por outra com a qual ela apresenta sentido pertinente. “Vive hoje cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam histórias.”
4. Gradação: sequência de palavras, sinônimas ou não, que intensificam uma mesma ideia. A progressão pode ser crescente ou decrescente. “E o olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala.” b) Você diria que o texto pode ser caracterizado como prosa poética?
15. Por que o segundo parágrafo é composto por apenas uma palavra?
16. As crônicas costumam ter duas classificações levando-se em consideração sua estrutura: narrativa e argumentativa. Como você classificaria a crônica de Eliane Brum? Por quê?
Ativa O De Conhecimentos
As crônicas podem apresentar uma estrutura predominantemente argumentativa ou narrativa.
Conquista
Os textos podem ser estruturados a partir de sequências narrativas, descritivas, dialogais e argumentativas.
17. Identifique trechos dessas sequências no texto, lembrando que elas têm o objetivo de narrar uma ação realizada por alguma personagem (sequência narrativa), descrever um local ou uma personagem (sequência descritiva), mostrar o diálogo entre personagens (sequência dialogal) e apresentar uma defesa de um ponto de vista (sequência argumentativa).
a partir dos elementos que complementam o termo “fome” (de comida, de afago, de lápis de cor, de olhar) intensifica a falta de perspectiva e de direitos que vivia a personagem; o termo “olhar” é usado metaforicamente para designar reconhecimento. No trecho “E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram de lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel”, a comparação entre as lágrimas e um vagalhão dão ideia da dimensão do tamanho da emoção da professora e a gradação e a metáfora usada na expressão “lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel” servem para mostrar as consequências da ação da personagem.
b) Espera-se que os estudantes respondam que sim, devido ao uso frequente de figuras de linguagem responsáveis por produzir certo efeito no leitor.
15. O objetivo é destacar o termo “inclui” e a ideia que ele representa. No caso do texto, destaca-se a ideia de inclusão social. Ele é o clímax da gradação que se inicia no parágrafo anterior: “O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva.”
16. A crônica “História de um olhar” pode ser classificada como uma crônica narrativa, pois a cronista conta uma história, embora ela defenda uma opinião no início do texto. As crônicas argumentativas não apresentam uma única história que organiza toda a estrutura do texto.