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III Dos mistérios cristãos
III Dos mistérios cristãos
TRINDADE
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É de primeira intuição, no tocante a mistérios, a superioridade da religião cristã sobre as religiões da antigüidade. Os mistérios destas não se referiam ao homem, e serviam só de pábulo a discursos filosóficos, ou cânticos poéticos. Os nossos, pelo contrário, entendem-se conosco, e encerram os segredos da nossa natureza. Não se trata de uma fútil combinação de números; mas sim da felicidade e salvação do gênero humano. O homem que, a cada instante, se reconhece ignorante e fraco, rejeitaria os mistérios de Jesus Cristo? Neles se consolam os desgraçados!
A Trindade, primeiro mistério dos cristãos, convida a vastos estudos filosóficos, ou a consideremos nos atributos divinos, ou investiguemos os vestígios do tal dogma outrora aceito no Oriente. É feio método de raciocínio rejeitar o que nos foge à compreensão. Começando pelo que há mais simples na vida, fácil seria provar que tudo ignoramos, e, audazes, interrogamos os artificio da Onisciência! É de presumir que os egípcios conhecessem a Trindade: a inscrição grega do grande obelisco do circo maximo, em Roma, dizia:
O grande Deus; a emanação de Deus; o Brilhantíssimo (Apollo, o Espírito).
Heráclides de Ponto e Porfírio referem um famoso oráculo de Serápis:
Tudo, no princípio, é Deus; depois Verbo e Espírito, três deuses congênitos, e consubstanciados num.
Os magos tinham uma espécie de Trindade nos seus Metris, Oromasis, e Araminis, ou Mitra, Oromaso, e Arimana. Em muitas passagens de seus escritos, Platão parece falar deste dogma.
“Não só”, diz Dacier, “conjecturam que ele conheceu o Verbo, filho eterno de Deus; mas também asseveram que houve notícia do Espírito Santo, e, por isso, alguns longes teve da Santíssima Trindade, tanto que escreveu do seguinte teor ao jovem Dionísio: ‘Devo declarar a Arcademus o que é mais valioso e divino, e vósmuito ansiais saber, e expressamente me perguntaste; pois, segundo ouvi dele, achais insuficiente
a minha explicação acerca do que penso da natureza da causa primária: é forçoso dizer-vo-lo por enigmas, prevenindo que se esta carta se transviar por mar ou por terra, não possa quem a 1er compreendê-la. Todas as coisas estão em volta do seu rei; por ele existem e só ele é a causa das coisas boas, segundo para as segundas, e terceiro para as terceiras’. 12 Na Epinomis, e noutros lugares, estatui como causas o primeiro bem, o Verbo ou entendimento, e a alma. O primeiro bem é Deus; ...o Verbo ou o entendimento é o Filho desse primeiro bem, que ele gerou à sua semelhança; e a alma, que é o termo entre o Pai e o Filho, é o Espírito Santo”. 13
Platão colhera esta doutrina da Trindade de Timeu de Lócrida, que a adotara da escola itálica. Marsílio Ficino, num de suas comentários a Platão, mostra, esteado em Jâmblico, Porfírio, Platão, e Máximo de Tiro, que os pitagóricos conheciam também a excelência de Ternário: Pitágoras até o indicou neste símbolo:
Honorato in primis habitum, tribunal, et Triobulum.
A Trindade é conhecida nas Índias.
“O que eu vi, neste gênero, mais notável e assombroso”, diz o padre Calmette, “foi um texto extraído de Lamaastambam, um dos livros de lá. Assim começa: ‘O Senhor, o Bem, o grande Deus; em sua boca está o verbo’ (o termo de que eles se servem personaliza-o). Depois, acerca do Santo Espírito, diz: ‘Ventus seu espiritus perfectus’, e termina pela criação, atribuindo-a a um Deus único”. 14
No Tibete:
“Eis o que pude saber da religião do Tibete: a Deus denominam Konciosa, e parece terem algum conhecimento da adorável Trindade; porque umas vezes nomeiam-na — Koncikocick, Deus-uno, outras — Koncioksum, Deus-trino. Servem-se de uma espécie de rosário, proferindo estas palavras: om, ha, hum. Se lhes pedem explicação, respondem que om significa inteligência, ou braço, isto é — poder; que ha é a palavra, que hum é coração ou amor, e que estas três palavras significam Deus”. 15
Os missionários ingleses no Taiti descobriram alguns vestígios da Trindade, entre os dogmas dos habitantes daquela ilha.
Além disto, há para nós uma quase prova física da Trindade, até na natureza. O arquétipo do universo, ou, mais claro, o esqueleto do universo, é ela. Não é para crer
12 Ver Platon, de Serranus, tom. III, carta II, pág. 312. 13 Obras de Platão, por Dacier, tom. I, pág. 194. 14 Cart. edif., tom. XIV, pág. 9. 15 Id., tom. XII, pág. 437.
que a forma exterior e material participe da arca interior e espiritual que a sustenta, do modo com que Platão 16 apresentava as coisas corporais como sombras dos pensamentos de Deus? O número TRÊS parece ser, na natureza, o número por excelência. O TRÊS não é gerado e gera todas as outras frações, e daí vem chamar-lhe Pitágoras o número sem mãe. 17
Até nas fábulas do politeísmo se acham vislumbres da Trindade. Três eram as Graças; no Tártaro era o número simbolizado na vida, na morte do homem, e na vingança celeste; três Deuses irmãos, enfim, compunham, reunindo-se, o poder universal.
Os filósofos dividiam em três partes o homem moral, e os Padres da Igreja presumiram achar a imagem da Trindade espiritual na alma humana.
“Se obrigarmos ao silêncio os nossos sentidos”, diz Bossuet, “e nos restringirmos por algum tempo ao interno recolhimento de nossa alma, lá onde a verdade mais resplende, aí veremos uns longes da imagem da Trindade, que adoramos. O pensamento, que sentimos nascer como gérmen de nosso espírito, como o filho de nossa inteligência, alguma idéia nos dá do Filho de Deus, desde o princípio concebido na inteligência do Pai celestial. Chama-se Verbo o Filho de Deus, para que nós saibamos que ele nasce no seio do Pai, não como os corpos nascem, mas como nasce em nossa alma esta palavra interior que lá nos fala quando contemplamos a verdade.
“A fecundidade, porém, do nosso espírito não está somente nessa palavra interior, nesse pensamento intelectivo, nessa imagem da verdade que se forma em nós. É-nos prezada não só a palavra interior, mas também o espírito em que ela nasce; e, prezando-a, em nós sentimos coisa que não apreciamos menos que o nosso espírito e pensamento; é o fruto de ambos, que os une, que se une a eles, e com eles faz uma só vida.
“Desta sorte — tanto quanto é possível relacionar o homem com Deus — se produz em Deus o amor eterno, emanação do Pai que pensa, e do Filho que é o pensamento do pai, para fazer com ele e seu pensamento uma só natureza igualmente feliz e perfeita”. 18
16 In Rep. 17 Hier., Com. in Pith. O número 3, simples como é de per si, é o único que se compõe de símplices, e que se torna em simples decompondo-se: não se pode compor um outro número complexo sem o 3, exceto o 2. As gerações do 3 são surpreendentes, e tem relação com a poderosa unidade, que é o primeiro elo da cadeia dos números, e que enche o universo. Os antigos fizeram freqüente uso dos números tomados metafisicamente, e é necessário não condenar de leve Pitágoras, Platão, e os sacerdotes egípcios, dos quais eles receberam esta ciência, como imbecis ou tolos. 18 Boss., Hist. Univ., seg. part., pág. 167 e 168, T. II, éd. stér.
Aí fica um formoso comentário às singelas palavras do Gênesis: Façamos o homem.
Tertuliano, no seu Apologético, acerca deste grande mistério da nossa religião, exprime-se assim:
“Deus criou o mundo com a palavra, com a razão, e com o poder. Os vossos próprios filósofos concordam em que logos, o verbo e a razão, é o criador do universo. Os cristãos somente acrescentam que a própria substância do verbo e da razão, substância pela qual Deus produziu tudo, é o espírito; que essa palavra, ou verbo, deve ter sido pronunciada por Deus; que Deus a gerou, pronunciando-a; que, por conseqüência, é filho de Deus, e Deus, em virtude da unidade de substância. O raio prolongado do sol, não é separação de substância, mas sim extensão. Assim o verbo é espírito de um espírito, e Deus de Deus, como luz acesa de outra luz. Assim o precedente de Deus é Deus, e os dois, com o seu espírito, formam um, diferente em propriedade, não em número; em ordem, não em natureza; o filho saiu do seu princípio, ficando nele. Ora, este raio de Deus baixou ao seio de uma virgem; encarnou; e fez-se homem unido a Deus. Esta carne, sustentada do espírito, nutre-se, cresce, fala, ensina, opera: é Cristo”.
A mais simples inteligência pode compreender esta demonstração da Trindade. Convém saber que Tertuliano discursava para homens que perseguiam Jesus Cristo, e muito queriam achar brecha por onde agredir a doutrina e os pregoeiros dela. Basta de provas: aduzam-nas aqueles que estudaram a seita itálica e a alta teologia cristã.
Quanto aos símbolos que afiguram à fraqueza de nossos sentidos o máximo mistério, difícil nos é conceber que o terrível triângulo de fogo, esculpido na nuvem, cause irrisão na poesia! O Pai, sob a imagem de um ancião, venerando predecessor dos séculos, ou figurado como efusão de luz, será pintura inferior às da idolatria? Não é de maravilhar ver o Espírito Santo, espírito sublime de Yahweh, representado como emblema de doçura, de amor e de inocência? Se, porém, anseia em Deus o desejo de propagar sua palavra, o Espírito não é já a pomba que abrigava o homem sob suas asas pacíficas; é um verbo visível, é língua de fogo que fala todos os dialetos da terra, e cuja eloqüência ergue ou derruba impérios.
Se quisermos pintar o filho de Deus, bastam-nos as palavras de quem o contemplou na sua glória: “Estava posto num trono, diz o Apóstolo; resplandecia-lhe o semblante como o sol ao meio-dia, e os pés como bronze fundido na fornalha: coruscavam-lhe duas chamas os olhos. Uma espada de dois gumes lhe saía da boca; tinha na mão direita sete estrelas, e na esquerda um livro selado com sete selos. Diante