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III Da Esperança e Caridade

Santo Ambrósio, sem exércitos, sem legiões, venceram tiranos, domesticaram leões, arrefeceram as lavaredas, e embotaram as espadas?” 58 É de si tão formidável a fé, que, assestada a fins perversos, aniquilaria o universo. Um homem, intimamente convencido, subjugando a sua à razão alheia, tudo executa. Isso prova que as mais eminentes virtudes, separadas de Deus, tidas somente em conta de conveniências morais, orçam quase pela extrema dos vícios. Se os filósofos tivessem ponderado nisto, não se dariam tanto afã em demarcar as balizas do bem e do mal. O cristianismo não careceu, como Aristóteles, de inventar uma escala, para nela graduar engenhosamente uma virtude entre dois vícios; cortou a dificuldade com mão segura, mostrando-nos que as virtudes só são virtudes quando refluem para a sua divina origem.

Convencer-nos-emos desta verdade, se aplicarmos a fé às ocupações da vida, mas empregando-a por intercessão das idéias religiosas. Da fé vão nascer as virtudes sociais, pois que o dogma que nos manda crer em um Deus justiceiro, é o mais forte sustentáculo da política e da moral, por assentimento unânime dos sábios.

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Enfim, se empregardes a fé no seu genuíno exercício, 59 se a referirdes inteiramente ao Criador, se a tomais como olhos da inteligência para enxergardes as maravilhas da cidade santa e o império celeste, se a tomardes como enlevo para superardes as penas desta vida, reconhecereis que os livros santos não exaltaram demais esta virtude, quando falaram dos prodígios que por ela podem operar-se. Fé celestial! Fé consoladora! Fazes mais que transportar montanhas: ergues os pesos opressores que afogam o coração humano!

III Da Esperança e Caridade

A esperança, segunda virtude teologal, tem quase a mesma força da fé: a vontade gera a força. Alcança quem ardentemente deseja. “Buscai” — diz Jesus Cristo — “e achareis; batei, e abrir-se-vos-á”. Pitágoras, no mesmo sentido, dizia: O poder está ao pé da necessidade; porque necessidade supõe privação, e a privação trava-se de mãos com o desejo. Gerador do poder, o desejo ou a esperança é um verdadeiro gênio;

ninguém nos perdoaria que de fé derivássemos fogo, nem fogono singular teria já a mesma força.” [N.T.]. 58 Ambros., De Offic., cap. XXXV. 59 Vede a nota 4.ª, no fim.

há nela a virilidade fecundante, e a sede insaciável. Homem, que em seus projetos se engana, faltou-lhe ardor no desejo; minguou-lhe aquele amor que cedo ou tarde avassala o objeto a que aspira, amor, que posto na divindade, abrange tudo, e se saboreia em todos os mundos, por infinda esperança sempre satisfeita, e sempre renovada. Há, porém, essencial diferença entre fé e esperança, considerada força. A fé tem seu foco fora de nós, vem-nos de objeto estranho; a esperança, pelo contrário, nasce-nos do íntimo, e comunica ao exterior. A fé vem-nos como incutida; a esperança geramo-la nós. Esta é amor, aquela obediência. Mas, como a fé gera mais facilmente as outras virtudes, e diretamente se deriva de Deus, e é, por conseguinte, emanação do Eterno, sendo por isso mais bela que a esperança, que só é parte do homem, a Igreja colocou judiciosamente a fé na primeira plana 60 . Tem a esperança um particular distintivo: é o aliar-se intimamente com as nossas misérias. Sem dúvida foi revelação celeste a religião que fez da virtude uma esperança! Esta nutriz dos desgraçados, aconchegada ao homem como a mãe a seu filho enfermo, embala-o em seus braços, pende-o dos seios copiosos, e sacia-o do leite que mitiga as dores. Já o vigia no solitário leito, já o adormece com feiticeiras cantilenas. Não é para maravilhar o ver a esperança, tão entranhável e tão ingênita de nosso ser, transformar-se, para o cristão, em virtude de rigoroso preceito? De modo que, ainda que não queira, há de o cristão esgotar a largos sorvos o delicioso vaso, onde tantos infortunados se julgariam ditosos roçando os lábios por momentos. E ainda mais (suprema maravilha!) será ele recompensado, porque esperou; equivale a dizer recompensado por ter feito a sua própria felicidade. O fiel, sempre em guerra, sempre a braços com o inimigo, é tratado, em sua derrota, pela religião, como os generais vencidos, que o senado romano recebia em triunfo, só porque não desesperaram da salvação final. Ora, se os antigos atribuíam toque sobre-humano ao homem que não desesperava, que pensariam eles do cristão que, em sua admirável linguagem, já não diz conservar, mas praticar a esperança? No tocante à caridade, filha de Jesus Cristo, quer dizer, ao pé da letra, graça e júbilo. A religião, querendo reformar o coração humano, e inclinar para a virtude as nossas afeições e ternuras, inventou uma nova paixão: não quis para exprimi-la a palavra “amor”, que é apoucada em gravidade; não quis “amizade”, que se esvai no túmulo; não quis “piedade”, porque é vizinha do orgulho; achou a expressão charitas “caridade”, que abrange as três primeiras, e tem ao mesmo tempo o quer que seja de celeste. Pela caridade, dirige nossos pensamentos para o céu, depurando-os e reportando-os ao Criador. Pela caridade nos ensina a maravilhosa verdade de que os

60 Arcaísmo: no primeiro plano [N.E.]

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