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I Primazia da tradição de Moisés sobre todas as demais cosmogonias
LIVRO TERCEIRO Verdades das Escrituras: Queda do homem 75
I Primazia da tradição de Moisés sobre todas as demais cosmogonias
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Há verdades que ninguém impugna, sem embargo de se não poderem evidenciar com provas imediatas: a rebeldia e queda do espírito da soberba, a criação do mundo, a felicidade primitiva, e a queda do homem, pertencem ao número dessas verdades.
É impossível crer que uma mentira absurda se torne uma crença universal. Abri os livros do segundo Zoroastro, os diálogos de Platão e os de Luciano, os tratados morais de Plutarco, os fastos dos chineses, a Bíblia dos hebreus, os Edda dos escandinavos, diferi-vos aos negros da África, ou aos sábios sacerdotes índicos, todos vos hão de relatar as maldades do deus do mal, e pintar os fugitivos instantes da felicidade do homem, e as longas calamidades que advieram à perda da sua inocência.
75 Vede a nota 5.ª, no fim.
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Diz algures Voltaire que nós temos o pior traslado de todas as tradições acerca da origem do mundo, e elementos físicos e morais que o formam. Soar-lhe-ia melhor a cosmogonia dos egípcios, o grande ovo alado dos sacerdotes de Tebas? 76
Veja-se o que relata gravemente o historiador logo imediato a Moisés na antigüidade.
“O princípio do universo era um ar sombrio e torvo, um vento formado por ar sombrio, e turbulento caos. Esse princípio era imenso, e não tivera, por largo espaço, limites nem forma. Logo, porém, que esse vento se namorou de seus próprios princípios, resultou daí uma mixtão 77 , e esta mixtão denominou-se desejo, ou amor.
“A mixtão, completada, tornou-se princípio de tudo; mas o vento não conhecia a sua própria obra, a mixtão. Esta gerou, à sua parte, com o vento, seu pai, o barro, e deste saíram todas as gerações do universo”. 78
Se passamos para os filósofos gregos, Tales, fundador da seita Jônica, considerava a água como princípio universal. 79 Platão supunha que a divindade organizara, mas não pudera criar o mundo. 80 Deus — diz ele — formou o universo, segundo o modelo que tinha em si ab aeterno. 81 Os objetos visíveis são apenas sombras das idéias de Deus, únicas substancias verdadeiras. 82 Deus insuflou um sopro da sua essência nas criaturas. Daí tirou um terceiro princípio, espírito e matéria conjuntamente, e esse princípio houve nome alma do mundo. 83
Aristóteles discursava como Platão acerca da origem do universo; mas engenhou o belo sistema da cadeia dos entes; e, ascendendo de ação em ação, provou que em alguma parte existia o primeiro motor. 84
Zenão sustentava que o mundo se arquitetara com sua energia própria; que a natureza é esse todo que compreende tudo, que esse todo é composto de dois princípios, um ativo, outro passivo, que existem unidos sempre, e não operam em separado; que esses dois princípios são subordinados a um terceiro, a fatalidade; que Deus, matéria, e fatalidade são um só; que estes formam, ao mesmo tempo, as rodas,
76 Herod., lib. II; Diod. Sic. 77 Arcaísmo: mistura. [N. E.] 78 Sanch., ap. Euseb., Præper. Evang., lib. I, cap. X. 79 Cic., De Nat. Deor., lib. I, n.° 26. 80 Plat., Tim., pág. 28; Diog. Laert., lib. III; Plut., De Gen. Anim., pág. 78. 81 Plat., Tim., pág. 29. 82 Plat., Rep., lib. VII, pág. 516. 83 Id., in Tim., pág. 34. 84 Arist., de Gen. An., lib. II, cap. III; Met., lib. XI, cap. V; De Coel., lib. XI, cap. III. etc.
o movimento, as leis da máquina, e obedecem, como partes, às leis que ditam, como todo. 85
Segundo a filosofia de Epicuro, o universo existe de toda a eternidade. Há só duas coisas na natureza: o corpo e o vácuo. 86
Os corpos compõem-se do agregado de partes materiais infinitésimas, que são átomos, com um movimento interno, que é a gravidade: em plano vertical se faria a sua revolução, se, por uma lei particular, não descrevessem uma elipse no vácuo 87 .
Presumiu Epicuro este movimento de declinação, para evitar o sistema dos fatalistas, que se reproduziria com o movimento perpendicular dos átomos. Mas a hipótese é absurda; porquanto, se a declinação do átomo é uma lei, de necessidade o é; uma causa obrigada como poderia produzir um efeito livre?
A terra, o céu, os planetas, as estrelas, as plantas, os minerais, os animais, incluindo o homem, nasceram do concurso fortuito desses átomos, e logo que a virtude produtiva do globo se evaporou, as raças viventes entraram em perpetuidade pela geração. 88
Os membros dos animais, formados ao acaso, não tinham particular destino algum: a orelha côncava e furada não era para ouvir, os olhos convexos e redondos não eram para ver; mas os animais serviam-se maquinalmente destes órgãos apropriados a tal uso pelo acaso, preferindo-os a outro sentido qualquer. 89
Depois de expostas semelhantes cosmogonias filosóficas, seria inútil falar das dos poetas. Quem não conhece Deucalião e Pirra, a idade áurea e a de ferro? No concernente às tradições derramadas pelos demais povos da terra, nota-se na Índia um elefante sustentando o globo; no Peru tudo é feito pelo sol; no Canadá o grão- -lebrão, é o pai do mundo; na Groenlândia o homem saiu de uma concha; 90 a Escandinávia, enfim, viu nascer Ask e Embla; Odin lhes deu alma, Hœnerus o entendimento, e Lœdur o sangue e a formosura.
Askum et Emlam, omni conatu destitutos,
85 Lært., lib. V; Stob., Eccl. Phys., cap. XIV; Senec., Consol, capítulo XXIX; Cio., De Nat. Deor., Anton., lib. VII, 86 Laert., lib. II et lib. X. 87 Lucret., lib. II; Laer., lib. X. 88 Lucret., lib. V-X; Cic., De Nat. Deor., lib. I, cap. VIII-IX. 89 Ibid., lib. IV-V. 90 Vide Hesiod.; Ovid.; Hist. of Hindost.; Herrera, Histor. de las Ind.; Charlevoix, Hist. de la Nouv. France; P. Laefit., Moeurs des Indiens; Travel, in Greeland by a Mission.