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III Constituição primitiva do homem

Então, caminha em direção oposta a ela o canadense, tirando da sua flauta sons suaves e monótonos; abaixa o réptil o colo matizado, entreabre com o focinho a fina ervagem, e vai de rastos sobre as pegadas do músico que a fascina, parando se ele para, e recomeçando a segui-lo quando o vê afastar-se. Assim foi posta fora do nosso campo a serpente, por entre multidão de espectadores selvagens e europeus, que mal ousavam crer seus olhos. Vendo aquele prodígio da música, todos à uma clamaram que se deixasse ir a maravilhosa serpente.

A esta espécie de indução, tirada dos costumes da serpente, em abono das verdades da Escritura, juntaremos outra que nos empresta uma palavra hebraica. Não será muito extraordinário, e filosófico ao mesmo tempo, que o nome genérico do homem, em hebreu, signifique febre ou dor? Enosh, homem, tem sua raiz no verbo unash, estar perigosamente enfermo. Tal nome não o dera Deus ao nosso primeiro pai; nomeou-o simplesmente Adão, barro vermelho ou lodo. Depois do pecado é que a posteridade do Adão houve nome de Enosh, ou homem, que tão perfeitamente condizia com suas misérias, e que memorava tão eloqüentemente a culpa e o castigo. Em momentos de angústia, porventura, Adão, presente às dores de sua esposa parturiente, e recebendo nos braços o primogênito Caim, o mostraria ao céu, exclamando: Enosh! (oh dor!) Triste exclamação, que talvez servisse para designar a raça humana, no decurso dos tempos.

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III Constituição primitiva do homem

NOVA PROVA DO PECADO ORIGINAL

Algumas provas morais aduzimos do pecado original, quando falamos do batismo e da redenção. Convém não passar de corrida, por assunto de tamanho quilate. “O nó da nossa condição”, diz Pascal, “prende nas voltas e enleios naquele abismo; de modo que mais incompreensível é o mistério, do que para o homem é o próprio mistério”. 96

Parece-nos que pó de inferir-se da disposição do universo um argumento novo da nossa primitiva degeneração.

96 Pasc., Pens., chap. III, pens 8.

Se contemplarmos o mundo, notaremos que, por uma lei geral e ao mesmo tempo particular, as partes integrantes, os movimentos interiores ou exteriores, e as qualidades dos seres, estão em perfeita harmonia. Pelo que, os corpos celestes, cumprem suas revoluções com admirável acordo, e cada corpo, sem empecer-se, descreve a curva que em particular lhe foi ordenada. Um só globo nos dá luz e calor: estes dois acidentes não se acham repartidos por duas esferas: o sol os identifica em seu orbe, como Deus, cuja imagem ele é, une ao princípio que fecunda o princípio que alumia.

A mesma lei para os animais: as idéias destes, se assim podemos nomeá-las, estão sempre uniformes com o seu sentir, a sua razão com as suas paixões. Por isso não se dá neles aumento ou diminuição de inteligência. É fácil seguir esta regra das harmonias nas plantas e nos minerais.

Que incompreensível destino faz que só o homem seja excetuado dessa lei tão necessária à ordem, à conservação, à paz, e à felicidade dos entes? Quanto mais visível é a harmonia das qualidades e movimentos no restante da natureza, tanto mais a sua desunião é sensível ao homem. Em permanente luta se travam nele entendimento e desejo, razão e coração. Se atinge ao mais elevado grau da civilização, rebaixa ao ínfimo da moral. Se é livre, é selvagem; se se pule, forja cadeias para si próprio. Se brilha pelas ciências, apaga-se-lhe a imaginação; se poeta, apouca-se-lhe o pensamento; lucra o coração o que a cabeça perde; e dos desfalques do coração aproveita a cabeça. Com o opulentar-se em sentimentos, vem o empobrecer de idéias; o dilatar-se em idéias é amesquinhar-se em sentimentos. A força endurece-o e desorna-o; a fraqueza dá-lhe graças. Uma virtude é sempre a portadora de um vício, e sempre, ao retirar-se, o vício lhe leva na ressaca uma virtude. As nações, vistas em seu complexo, apresentam idênticas alternativas; perdem e recuperam a revezes a luz. Disseras que o gênio do homem, com um facho em punho, voa de contínuo em redor deste globo, através das trevas que nos envolvem; mostra-se nas quatro partes do mundo, como esse astro noturno, que ora minguando, ora crescendo, constante diminui a cada passo para um povo o clarão que para outro aumenta.

É, pois, de boa razão pressupor que o homem, no seu primitivo estado, foi semelhante ao restante da criação, e que esse estado se formava da perfeita aliança do pensar e do sentir, e da imaginação com a razão. Disto virá talvez o convencimento, observando-se que esta reunião é ainda hoje precisa para se gozar de uma sombra dessa felicidade que perdemos. Assim, basta a dedução do raciocínio e as probabilidades da analogia para achar o pecado original, que o homem, qual vemos, não pode ser o homem primitivo: contradiz a natureza; quando tudo é ordem, é desordenado só

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