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IV Das leis morais ou decálogo

homens se devem amar, porque assim o digamos, através de Deus, que espiritualiza o seu amor, e só lhes deixa a imortal essência, facultando-lhes a passagem.

Mas se a caridade é uma virtude cristã, diretamente emanada do Eterno e do seu Verbo, também é estreita aliança com a natureza. O caráter da verdadeira religião conhece-se nesta contínua harmonia do céu e terra, de Deus e humanidade. As instituições morais e políticas da antigüidade estão, a cada passo, desavindas com os sentimentos da alma. Pelo contrário, sempre em paz com os corações, o cristianismo não requer virtudes abstratas e solitárias, mas virtudes tiradas das nossas precisões, e a todos proveitosas. Colocou a caridade como poço de águas vivas nos desertos da vida. “A caridade é a paciência”, diz o Apóstolo; “é branda, não porfia primazias com outrem; não procede com temeridade, não se ensoberbece.

“Não é ambiciosa; não visa a ganâncias; não se irrita, nem julga mal.

“Não folga na injustiça; e exulta com a verdade.

“Tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo sofre”. 61

IV Das leis morais ou decálogo

É humilhante para o nosso orgulho ver que as máximas da sabedoria humana cabem em poucas páginas. E como, ainda nessas poucas páginas, abundam erros! As leis de Minos e de Licurgo ficaram em pé, após a queda das nações para quem foram eretas, como pirâmides dos desertos, imortais alcáceres da morte.

Leis do segundo Zoroastro

O tempo ilimitado e incriado é o criador de tudo. A palavra foi filha dele, e de sua filha nasceu Orsmus, deus do bem, e Arimhan, deus do mal.

Invoca o touro celeste, pai da erva e do homem.

A obra mais meritória é cada qual lavrar bem seu campo. Ora com pureza de intenção, de ação, e de palavra. 62

Ensina o bem e o mal a teu filho em tendo cinco anos. 63

61 S. Paul., Ad Corinth., cap. XIII, v. 4 e seg. 62 Zend-Avesta. 63 Xenoph., Cyr.; Plat., De Leg., lib. II.

O ingrato seja castigado pela lei. 64 O filho, que três vezes desobedeceu a seu pai, morra. A lei declara impura a mulher que casou segunda vez. O falsário será chibatado. O mentiroso desprezado. No fim, e no princípio do ano, guarda dez dias festivos.

Leis indianas

O universo é Wichnou.

Tudo o que foi, é ele; tudo o que é, é ele; tudo o há de ser, é ele.

Homens, sede iguais.

Ama a virtude por ela; rejeita o fruto de tuas obras.

Mortal, sê sábio, e serás forte como dez mil elefantes.

A alma é Deus.

Confessa as culpas de teus filhos ao sol e aos homens, e purifica-te na onda do Ganges. 65

Leis egípcias Cnef, Deus universal, trevas incógnitas, obscuridade impenetrável. Osíris é o deus bom; Tifão o deus mau. Honra teus pais. Segue a profissão de teu pai. Sê virtuoso; os juízes do lago julgarão, depois da morte, as tuas obras. Lava o teu corpo duas vezes de dia e duas vezes de noite. Vive com pouco. São reveles os mistérios. 66

Leis de Minos

Não jures pelos deuses. Mancebo, não examines a lei. A lei declara infame quem não tem um amigo. A mulher adúltera touquem-na de lã, e vendam-na.

64 Xenoph., Cyr. 65 Pr. des Br. Histor. of Ind.; Diod. Sic., etc. 66 Herod., lib. II; Plat., De Leg.; Plat., De ls. et Osi.

Vossas refeições sejam públicas, uma vida frugal, e vossas danças guerreiras. 67 (Omitimos as leis de Licurgo, porque são em parte a repetição das de Minos).

Leis de Sólon

Filho negligente em sepultar seu pai, e em defendê-lo, morra. Seja vedado o templo à adúltera. O magistrado vinolento beba a cicuta. Soldado covarde, morra. A lei permite matar o cidadão neutral nas desordens civis. Quem quiser morrer declare-o ao arconte, e mate-se. O sacrílego morra. Esposa, guia teu esposo cego. Homem desmoralizado não poderá governar. 68

Leis primitivas de Roma

Honra os poucos haveres. Que o homem seja agricultor e guerreiro. Reserva o vinho para os velhos. Condena à morte o lavrador que come o boi. 69

Leis dos Gálicos ou dos Druidas.

O universo é eterno, a alma imortal. Honra a natureza. Defendei vossa mãe, vossa pátria, a terra. Admite a mulher a teus conselhos. Honra o estrangeiro, e põe de parte, na colheita, o quinhão dele. Que o infame seja atascado em lama. Não ergas templos, e confia só à tua memoria a história do passado. Homem, tu és livre; não tenhas propriedade. Honra o velho, e não possa o mancebo depor contra ele.

67 Arist., Pol.; Plat., De Leg. 68 Plut., in Vit. Sol.; Tit. Liv. 69 Plut., in Num.; Tit. Liv.

O valente será recompensado depois da morte, e o covarde punido. 70

Leis de Pitágoras

Honra os deuses imortais, assim como as leis os estatuíram.

Honra teus pais.

Faz o que te não punja a memória.

Não adormeças antes de examinares três vezes em tua alma as obras do dia.

Inquire-te: Onde estive? Que fiz? Que deveria ter feito?

Assim, após santa vida, quando teu corpo se tornar aos elementos, ressurgirás imortal e incorruptível: não poderás morrer jamais. 71

Pouco mais se pode resenhar da antiga sabedoria dos tempos, tão preconizada. Aí, é Deus representado como coisa escura; escuro é de certo por sobejidão de luz; trevas nos enturvam a vista quando fitamos o sol. Aí, proclama-se infame o homem que não tem um amigo: o legislador, assim, quis proclamar infames todos os infelizes? Mais adiante, o suicídio é de lei. Enfim, alguns desses sábios parecem olvidar inteiramente o Ente Supremo. E que vago, incongruente, e vulgar, na maior parte dessas sentenças! Os sábios do Pórtico e da Academia enunciam alternadamente máximas tão contraditórias, que é possível mostrar-se no mesmo livro que o autor cria e não cria em Deus, reconhecia e não reconhecia uma virtude positiva, que a liberdade é o principal dos bens, e o despotismo o melhor dos governos.

Se no acervo de tantas perplexidades, se vê surgir um código de leis morais, sem contradições, sem erros, que faz cessar nossas incertezas, e nos ensina o que se deve crer acerca de Deus, e que ligamentos nos ligam com os nossos semelhantes; se tal código se anuncia com firmeza de tom e simplicidade de dizer não conhecido, será lícito duvidar que tais leis emanaram do céu? Esses preceitos divinos cá os temos; e que preceitos para o sábio! E que pinturas para o poeta!

Vede esse homem que desce de abrasados píncaros. Encostada ao peito, abarca uma tábua de pedra, com os braços; dois raios de fogo lhe ornam a fronte;

70 Tac., De Mor. Germ.; Strab.; Coes.; Com.; Edda; etc. 71 A este resumo poderia acrescentar-se um extrato da República, de Platão, ou antes dos doze livros de suas leis, que são, a nosso ver, a sua obra-prima, tanto pelo belo quadro dos três velhos que discorrem no caminho da fonte, como pela razão que brilha nesse diálogo. Tais preceitos, porém, não vieram à prática, e nos abstemos, por isso, de os mencionar. Quanto ao Alcorão, o que lá se nos depara santo e justo, é copiado quase palavra por palavra das nossas sagradas Escrituras; o remanescente é uma compilação dos rabinos.

resplende-lhe o rosto em glórias do Senhor; precede-o o terror de Yahweh. Recorta o horizonte a cordilheira do Líbano, com as suas neves eternas, e seus cedros que roçam as nuvens. Prostrada no sopé do monte, a posteridade de Jacó esconde o rosto, receosa de ver Deus, e de morrer. Calam-se os trovões, e tais palavras soam:

Escuta-me, Israel, que eu sou Yahweh, teus deuses, 72 que te resgatei da terra de Mitzraim 73 , da casa de servidão.

Não terás outros deuses diante de mim.

Não farás ídolos por tuas mãos, nem alguma imagem do que está nas espantosas águas superiores, nem do que há debaixo delas sobre a terra, nem de coisa que haja nas águas debaixo da terra. Não reverenciarás tais imagens; nem as servirás, porque eu sou Yahweh, teus deuses; o Deus forte e zeloso, que vingo nos filhos a iniqüidade dos pais, até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem, e sou misericordioso mil vezes para aqueles que me amam e guardam os meus preceitos.

Não tomarás em vão o nome de Yahweh, teus deuses, porque o Senhor não tomará por inocente aquele que toma em vão seu nome.

Lembra-te de santificar o dia de sábado. Trabalharás seis dias na tua obra, e no sétimo dia de Yahweh, teus deuses, não farás obra alguma, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu escravo, nem a tua escrava, nem o teu camelo, nem teu hóspede, diante das tuas portas; porque em seis dias fez Yahweh as maravilhosas águas superiores, 74 a terra e o mar e tudo que neles há, e descansou ao sétimo dia. Por isso, Yahweh o abençoou e santificou.

Honra teu pai e tua mãe para teres vida dilatada sobre a terra, e para além da terra que Yahweh, teus deuses, te concedem.

Não matarás.

Não serás adúltero.

Não furtarás.

Não levantarás falso testemunho contra o teu vizinho.

72 Dá-se o decálogo palavra por palavra do hebreu, por causa desta expressão teus deuses, que nenhuma versão transmitiu. 73 Egito. Ver Ex 20,2. [N.E.] 74 Longe está esta versão de dar longes da magnificência do texto. Shamajim é um gênero de grito de admiração, como a voz de um povo que, pondo os olhos no firmamento, exclamasse: Vede aquelas águas milagrosas suspensas sobre nossas cabeças como abóbada! Aqueles zimbórios de cristal e diamantes! Não pode dar-se, na versão de uma lei, a poesia que lá no original exprime uma só palavra.

Não cobiçarás a casa do teu vizinho, nem a mulher do teu vizinho, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa que lhe pertença.

Tais são as leis que o Eterno gravou não só na pedra do Sinai, mas também no coração do homem. O que primeiro aí se admira é o caráter da universalidade que distingue esta divina tábua das tábuas humanas que a precedem. É esta a lei de todos os povos, de todos os climas, de todos os tempos. Pitágoras e Zoroastro falam a gregos e medos; Yahweh fala à humanidade toda: está-se reconhecendo aquele onipotente Pai que vela sobre a criação, e que deixa cair de sua mão, ao mesmo tempo, o grão de trigo que alimenta o inseto, e o sol que o alumia.

Depois, nada há aí tão admirável, por sua simplicidade cheia de justiça, como estas leis morais dos hebreus. Os pagãos recomendavam que se honrassem os autores de nossos dias: Sólon comina a morte ao filho mau. Deus que faz? Promete a vida à piedade filial. Este mandamento deriva da mesma fonte da natureza. Deus fez um preceito do amor filial, e não o fez do amor paternal: bem sabia ele que o filho, sendo o ponto convergente de saudades e esperanças do pai, seria sempre, e até ao excesso, muito amado; ao filho, porém, ordena o amá-lo, porque ele conhecia a inconstância e soberba da mocidade.

À força da sapiência íntima, unem-se, no Decálogo, como em todas as obras do Onipotente, a majestade e graça das formas. O brâmane exprime lentamente as três presenças de Deus; o nome de Yahweh expressa-as numa só palavra; são os três tempos do verbo ser, unidos em sublime combinação; havah, “foi”; hovah “sendo”, ou “é” e je, que, em se achando anteposto às três letras radicais de um verbo, indica em hebraico o futuro: será.

Os legisladores antigos, finalmente, assinaram em seus códigos as épocas festivas das nações; mas o dia do descanso de Israel é o dia em que Deus descansou. O hebreu e o gentio, herdeiro dele, nas horas de seu obscuro trabalho tem sempre fixa na idéia a criação sucessiva do universo. A Grécia, com toda a sua poesia, nunca se deu ao cuidado de referir os acurados lavores do agrícola e do artista àqueles celebrados instantes em que Deus criou a luz, traçou caminho ao sol, e animou o coração humano.

Leis de Deus, quão pouco vos assemelhais às leis dos homens! Eternas como o princípio donde emanastes, a torrente dos séculos não vos desluz; resistis ao tempo, à perseguição, e ainda à corrupção humana.

Grande prodígio é uma legislação religiosa, organizada no grêmio das legislações políticas, e todavia, desligada dos destinos destas. Enquanto que as formas dos

reinos passam ou se modificam, que o poder corre de mão em mão ao sabor do acaso, alguns cristãos, inabaláveis às inconstâncias da fortuna, adoram persistentes o mesmo Deus, submetem-se às mesmas leis, sem se julgarem quites pelos seus deveres pelas revoluções, pela desgraça, nem pelo exemplo. Qual religião da antigüidade não perdeu a influência moral com a perda de seus padres e sacrifícios? Onde são os mistérios do antro de Trofônio e os segredos de Ceres-Eleusina? Não caíram Delfos e Apolo, Bale e Babilônia, Serápis e Tebas, Júpiter e o Capitólio? Só o cristianismo viu ruírem os edifícios onde as suas pompas se celebravam, e não oscilou. Jesus Cristo nem sempre há tido templos; mas tudo é templo para o Deus vivo: a casa dos mortos, as cavernas dos montes, e, mais que tudo, o coração do justo; Jesus nem sempre há tido altares de pórfiro, espaldares de cedro e marfim, e servos faustosos; basta-lhe uma pedra no deserto para celebração de seus mistérios, uma árvore para apostolado da sua lei, e uma cama de espinhos para nela se praticarem suas virtudes.

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