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II Queda do homem; uma serpente; uma palavra hebraica
Animam nec possidebant, rationem nec habebant, Nec sanguinem, nec sermonem, nec faciem venustam; Animam dedit Odinus, rationem dedit Hœnerus; Lœdur sanguinem addidit et faciem venustam. 91
Nestas diversas cosmogonias, enreda-se a gente em contos de crianças ou abstrações de filósofos; a ser forçoso optar, os melhores são os contos.
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Para estremar o original de um quadro da confusão das cópias é necessário escolher aquele que, pela unidade ou aperfeiçoamento das partes, revele engenho de mestre. É o que se nos depara no Gênesis, original das pinturas reproduzidas nas tradições dos povos. Que há aí mais natural, e ao mesmo tempo mais majestoso, de mais fácil entendimento, e mais racional, do que baixar o Criador às antigas trevas para fazer com uma palavra a luz? O sol, de súbito, se livra nos céus, engastado no centro de imensa abóbada azulada; com suas redes invisíveis envolve os planetas, retendo-os, em redor de si, como presas suas; mares e florestas começam a balançar-se sobre o globo, e seus primeiros rumores anunciam ao universo o consórcio, cujo sacerdote será Deus, leito nupcial a terra, e a prole o gênero humano. 92
II Queda do homem; uma serpente; uma palavra hebraica
Outra verdade, estampada na Escritura, que nos maravilha: o homem agonizante por se ter empeçonhado com o fruto da vida; o homem perdido, por se ter saboreado do fruto da ciência, por ter sabido conhecer em demasia o bem e o mal, por ter cessado de ser semelhante ao menino do Evangelho. Suponha-se outra qualquer proibição de Deus, relativa a outra qualquer tendência da alma: como compreender-se a sabedoria e profundeza dos decretos do Altíssimo? Seria isso um capricho indigno da divindade, e nenhuma moralidade resultaria da inobediência de Adão. Toda a história do
91 Barthol., Ant. Dan. 92 As memórias da sociedade de Calcutá confirmam as verdades do Genesis. Mostram-nos a mitologia dividida em três ramos, um dos quais se estende às Índias, o outro à Grécia, e o terceiro aos selvagens da América Setentrional, vindo o todo prender em tradição mais antiga, que é a de Moisés. Os modernos viajantes nas Índias, por toda a parte encontram vestígios dos fatos relatados na Escritura: é forçoso confessar agora a autenticidade, longo tempo impugnada, desses fatos.
mundo, pelo contrário, dimana da lei imposta a nosso primeiro pai. Ao seu alcance pôs Deus a ciência, que não podia recusar-lhe 93 , dando ao homem inteligência e liberdade; prediz-lhe, porém, que se quiser saber demais, o conhecimento das coisas será morto para ele e para a sua descendência. O segredo da existência política e moral dos povos, os profundíssimos mistérios do coração humano, estão encerrados na tradição desta árvore portentosa e funesta.
Veja-se, pois, que maravilhosa seqüência à proibição da sabedoria. Cai o homem, e é o demônio da soberba que o precipita. A soberba pede de empréstimo os embaimentos do amor para o seduzir, e por intermédio de uma mulher procura Adão ombrear com Deus: profundo desenvolvimento das duas principais paixões do coração: vaidade e amor.
Bossuet, nas suas Elevações para Deus, onde a cada passo se reconhece o autor das Orações fúnebres, falando do mistério da serpente, diz que “os anjos conversavam com o homem, como Deus lhe permitia, e sob a figura dos animais: Eva, por isso, não estranhou a linguagem da serpente, nem, pelo mesmo, estranhou a aparição de Deus em forma sensível.” Acrescenta Bossuet: “Porque mandou Deus que, sob esta forma de preferência, aparecesse o anjo da soberba? Conquanto seja desnecessário sabê-lo, a Escritura no-lo insinua, dizendo que a serpente era o mais astuto de todos os animais, quer dizer, que melhor representava as malícias, as ciladas, e depois o suplício do demônio”.
O nosso século rejeita supercilioso tudo o que dá ares de maravilha; mas muitas vezes temos observado a serpente; e, se nos concedem dizê-lo, cremos ter sondado nela essa perniciosa índole e sagacidade que lhe atribui a Escritura. Tudo é misterioso, oculto, e muito de espantar neste incompreensível réptil. Difere de todos os outros animais no movimento; não se sabe dizer onde está o ponto em que se apóia para deslocar-se, porque não tem barbatanas, nem pés, nem asas, e contudo foge como sombra, esvai-se como por feitiçaria, reaparece e desaparece, à maneira de azulado vaporzinho, e dos lampejos de uma espada na escuridão. Às vezes, faz-se circular, e dardeja língua afogueada; outra, apruma-se sobre a ponta da cauda, caminha tão perpendicular, que parece magia. Uma hora, abaixa-se em círculo, sobe e desce em espiral, coleia à maneira de onda os anéis, gira por entre as frondes das árvores, roja sobre a verdura dos prados, ou desliza à tona d’água. É tão variada nas cores como nos movimentos; cada projeção variada de luz lhes varia; e esta falsa luz e variedades enganosas das cores seduzem por igual com os variados movimentos.
93 No original “refusar-lh’a”, com o mesmo sentido de “recusar-lhe”. [N. E.]
Mais assombrosa ainda em outros costumes seus, a serpente sabe, à maneira do homem manchado com sinais de homicida, despir a pele maculada de sangue, com medo que a conheçam. Tem a estranha facilidade de emborcar no seio os pequenos monstros que o amor de lá desentranhara. Dorme longos meses, freqüenta sepulcros, habita lugares desconhecidos, compõe peçonhas que gelam, abrasam, ou sarapintam 94 o corpo das vítimas com manchas iguais às dela. Agora, entona duas cabeças ameaçadoras; logo, retine um cascavel; silva como águia da serra, muge como o touro. Anda associada naturalmente às idéias morais e religiosas, como por uma espécie da continuação da influência que teve sobre nossos destinos; os homens odeiam-na, ou sucumbem-lhe adorando-a: há nela coisa que inspira horror ou idolatria; a mentira a imita, reclama-a o prudente, entra ao coração do invejoso, a eloqüência a enlaça no seu caduceu. No inferno, é o flagelo das fúrias; no céu, é o símbolo da eternidade. Ainda mais: sabe a arte de seduzir a inocência; com seus olhares fascina as aves que esvoaçam, e, sob o colmo do redil, suga o leite da ovelhinha. Mas também se deixa encantar dos sons melodiosos: e ao pegureiro basta-lhe a flauta para subjugá-la.
Em julho de 1791, viajávamos no alto Canadá, com algumas famílias selvagens da nação dos Onontagues. Um dia, quando descansávamos numa grande esplanada, à beira do rio Genesi, entrou no nosso campo uma cobra-cascavel. Estava conosco um canadense 95 que tocava flauta: quis recrear-nos, e caminhou contra a serpente com a sua arma de nova espécie. Ao avizinhar-se-lhe o inimigo, a serpente pôs-se em espiral, achatou a cabeça, intumesceu as bochechas, franziu os beiços, mostrou os dentes peçonhosos e a sanguinária garganta; brandiu a língua bipartida como duas flamas; fuzilam-lhe os olhos; o corpo, arfando de sanha, impa e contrai-se como fole de forja; a pele, dilatada, torna-se-lhe baça e escamosa; e com tanta rapidez floreia a cauda, a expedir sinistro ruído, que mais parece um ligeiro vapor.
Soa a flauta do canadense: faz a serpente um moto de espanto, e retrai a cabeça. À proporção que a fascina o efeito mágico, vão-se serenando as fúrias dos olhos, afrouxam as vibrações da cauda, e o ruído do açoute enfraquece e acaba. Menos perpendiculares sobre a sua linha espiral, dilatam-se as roscas da serpente fascinada, e vem umas após outras dar em terra, em círculos concêntricos. As furta-cores de azul, verde, branco, e ouro, retomam seu brilho natural sobre a pele arrepiada. Inclina um pouco a cabeça, e fica imóvel na postura de escutar com prazer.
94 Original “serapintam”. O termo empregado é equivalente. [N. E.] 95 Original “canadez”. Refere-se ao selvagem do Canadá, e não aos canadenses tal como os conhecemos hoje. [N.E.]