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X Continuação dos anteriores: Casamento
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Ainda agora, a Europa deve à Igreja o pequeno número de boas leis que tem. Talvez não haja, em matéria cível, circunstância imprevista do direito canônico, que não seja fruto da experiência de quinze séculos, e da sapiência dos Inocêncios e dos Gregórios. Os imperadores e os mais sábios reis, tais como Carlos Magno e Alfredo- -o-Grande, julgaram de sumo conselho incorporar no código civil uma parte desse código eclesiástico, onde se consubstanciaram a lei levítica, o Evangelho, e o direito romano. Que baixel, pois, não é a Igreja! Quão vasto e miraculoso!
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Exaltando o casamento à dignidade sacramental, Jesus Cristo nos mostrou, primeiramente, o grande emblema do seu consórcio com a Igreja. Se bem se adverte que o matrimônio é a escora a que se ampara toda a economia social, toda a santidade que se lhe outorga é diminuta, e frouxa a admiração por aquele que o asselou com o sinete da religião.
A Igreja, multiplicando seus desvelos em tão magnífico ato da vida, marcou o grau de parentesco em que a união dos esposos é facultada. O direito canônico, reconhecendo as gerações símplices, derivando da origem, denegou até ao quarto grau o casamento, 43 que o direito civil, contando os dois ramos, marcava no segundo grau: assim o mandava a lei de Árcades, inserta nas Instituições de Justiniano. 44
A Igreja, porém, com a sua costumada sapiência, seguiu, nesta regra, a alteração progressiva dos costumes. 45 Nos primeiros séculos do cristianismo, a proibição do casamento compreendia até ao sétimo grau; alguns concílios, à maneira do de Toledo 46 no sexto século, defendiam até, ilimitadamente, o consórcio de membros de uma mesma família.
O espírito que ditou estas leis é digno da pureza da nossa religião. Os pagãos ficaram muito inferiores à castidade cristã. Em Roma era permitido o casamento entre primos co-irmãos; e Cláudio, para esposar Agripina, fez promulgar uma lei que
43 Conc. Lat., an. 1205. 44 Just., Inst. do Nupt., tit. X. 45 Concil. Duziac., an. 814. À maneira que os godos, vândalos, ingleses, francos, borgonheses se insinuaram no grêmio da Igreja, a lei canônica devia variar, segundo os costumes daqueles povos. 46 Conc. Tol.., Can. V.
permitia o conjúgio do tio com a sobrinha. 47 Sólon facultara ao irmão a liberdade de esposar sua irmã uterina. 48
Não se delimitam aqui as precauções da Igreja. Acostando-se até certo tempo ao Levítico, no concernente a afins, veio a declarar impedimentos dirimentes de casamento todos os graus de afinidade correspondentes aos graus de parentesco, em que o casamento é vedado. 49 Previu, enfim, um caso, alheio a todos os jurisconsultos, e vem a ser a convivência de homem e mulher em trato ilícito. Declara a Igreja que ele não pode tomar esposa na família dessa mulher, acima do segundo grau. 50 Esta lei, mui remotamente conhecida na Igreja, 51 mas prescrita no concílio Tridentino, pareceu tão de aproveitar, que o código francês, rejeitando o total do concílio, aceitou aquele cânon.
Demais, os impedimentos aumentados pela Igreja ao consórcio entre parentes, além de outras razões morais e espirituais, tendem politicamente a dividir a propriedade, e a tolher que os bens todos do estado, por fim, se acumulem em alguns indivíduos.
Conservou a Igreja os desposórios de antiqüíssima memória. Diz Aulo Gélio que eles foram conhecidos ao povo do Lácio 52 os romanos os adotaram; 53 seguiram- -nos os gregos, honrou-os a antiga aliança, e, na nova, José foi desposado com Maria. A intenção deste uso é deixar aos esposos tempo de se conhecerem antes de se unirem. 54 Em nossas aldeias, os desposórios ainda rescendem as graças antigas. Por formosa manhã do mês de agosto, um jovem camponês vai buscar a noiva ao casal de seu futuro sogro. Dois rabequistas, que davam longes de semelhança com os antigos menestréis, rompiam a marcha, tocando romances das eras cavalheirosas, ou
47 Suet., in Claud. Em verdade, esta lei não se generalizou, como se colige dos fragmentos de Ulpiano, tit. V e VI, e foi ab-rogada pelo código de Teodósio, bem como a concernente aos primos co-irmãos. Ponderemos que no cristianismo o papa tem o direito de dispensar da lei canônica, segundo as circunstâncias. Não podendo uma lei abranger todos os casos, o recurso das dispensas ou exceções foi aventado com suma prudência. Por último, os casamentos entre irmãos e irmãs, no Velho Testamento, prendiam à lei geral de população, abolida, como dissemos, com a vinda de Jesus Cristo, ao tempo em que as raças se achavam completas, 48 Plut., in Solon. 49 Conc. Lat. 50 Conc. Lat., cap. IV, sess. 24. 51 Conc. Anc., cap. ult. an. 304. 52 Noct. Att., lib. IV, cap. IV. 53 L. 2, ff., de Spons. 54 Santo Agostinho dá-nos a este respeito uma razão graciosa: Constitutum est, ut jam pactæ sponsæ non statim traduntur, ne vilem habeat maritus datam, quam non suspiraverit sponsus dilatam.
cantares de peregrinos. Os séculos, ressurgidos dos seus góticos sepulcros, pareciam acompanhar aquela gente moça, com seus velhos costumes e anciãs recordações. A desposada recebia do cura a bênção nupcial, e depunha sobre o altar uma roca enfeitada de laços. Voltavam ao casal. A senhora e o senhor do lugar, o cura e o juiz da aldeia, lavradores e matronas, se banqueteavam com os futuros esposos, em farta mesa, onde abundava o cevado de Eumêa e o gordo novilho dos patriarcas. Acabava a festança com um certo bailado no casal vizinho; a castelã dançava, ao som da gaita de folie, com o noivo, e os espectadores gozavam sentados sobre as gabelas de trigo novo, fazendo lembrar as filhas de Jetro, os ceifeiros de Booz, e os desposórios de Jacó e Raquel.
O pregão dos banhos segue aos esponsais. Este excelente uso, ignorado na antigüidade, à Igreja inteiramente se deve. Data de além do século XIV, porque dele faz menção uma decretal do papa Inocêncio III. O mesmo papa estatuiu-o em regra geral no concílio Lateranense. Renovou-o o concílio Tridentino, e a ordenação de Blois no-lo fez receber. O espírito desta lei é prevenir uniões clandestinas, e conhecer dos impedimentos matrimoniais que possam dar-se entre os contraentes.
Mas, enfim, o casamento cristão se aproxima do seu complemento; já é diverso dos esponsais o aparato com que vai grave e solene, silencioso e augusto em suas pompas. O homem sabe que trilha uma carreira nova. As palavras da bênção nupcial (palavras com que o próprio Deus uniu os primeiros esposos), infundindo grande acatamento no marido, dizem-lhe que assim preenche o ato mais cabal da vida; que vai, como Adão, ser chefe de uma família, e sobre si tomar o ônus inteiro da condição humana. A mulher é por igual instruída. A imagem dos prazeres cede à dos deveres. Parece que uma voz do altar lhe brada: “Eva! Sabes tu bem o que fazes? Sabes que já agora a tua única liberdade é a da sepultura? Sabes o que é trazeres nas tuas entranhas mortais o homem imortal, feito à semelhança de um Deus?” Nos antigos, o himeneu era uma cerimônia de escândalos e folias, que não ensinava algum dos graves pensamentos que suscita o casamento. Só o cristianismo lhe restabeleceu a dignidade.
Foi ele mais quem computando, anterior à filosofia, em que proporção nascem os dois sexos, reconheceu que o homem não podia ter mais que uma esposa, e devia guardá-la até à morte. Não se conhece o divórcio na Igreja católica, exceto entre alguns povos da Ilíria, outrora sujeitos ao Estado veneziano, e sequazes do rito grego. 55 Se as paixões humanas contra estas leis se revoltaram, se não atingem as desordens que o divórcio influi no seio das famílias, perturbando as sucessões, desnaturando os
55 Vide Fra-Paolo, respeito ao concílio de Trento.
afetos paternais, corrompendo o coração, e convertendo o casamento em prostituição civil, algumas palavras que vamos dizer não serão, de certo, escusadas.
Sem entrar no amago do assumpto, observaremos que se pelo divórcio cuidam felicitar esposos mal avindos (que é assim que nos argumentam) em grande erro laboram. Quem não fez a felicidade da primeira mulher, que nem pelo cinto virginal, nem pela primeira maternidade se lhe afeiçoou; quem não pode subjugar as paixões aos deveres da família, quem não pode conter o coração no tálamo nupcial, esse tal jamais dará venturas a uma segunda esposa: em vão o esperareis. A troca não será mais vantajosa para ele: o que se lhe afigura diferença de gênio entre ele e sua mulher, é a propensão de sua versatilidade, e a inquietação de seus apetites. O costume e o tempo são mais necessários do que se cuida à felicidade, e até ao amor. Só depois de convivência longa de tristes e alegres dias, sobretudo de tristes dias, se saboreia o deleite das uniões. É mister conhecerem-se do íntimo da alma; é mister que o misterioso véu com que os dois esposos na primitiva Igreja se velavam, eles o levantem em todas as suas dobras, de modo, porém, que aos olhos do mundo se retenha impenetrável. Pois que! É forçoso que, ao menor capricho, eu tema ver-me privado de esposa e filhos, e renuncie ao prazer de passar com eles a minha velhice? Não me digam que este receio me obrigará a ser melhor esposo: não; ninguém se prende a bens que não têm seguros; não se ama a propriedade arriscada, contínuo, a perder-se.
Não demos ao himeneu asas de Amor: não façamos de uma santa realidade um volátil fantasma. A felicidade, que julgais encontrar em momentâneas alianças, virá o remorso destruir-vo-la; confrontareis, sem cessar, as duas esposas, uma que perdestes, e outra que encontrastes; e, tende-o como certo, a balança penderá a favor da que foi: Deus formou assim o coração humano. Esta distração de um pensamento por outro empeçonhará todos os vossos prazeres. Acariciareis vosso novo filho, cismando naquele que deixastes. Apertareis vossa mulher ao coração, e este vos dirá que não é ela a primeira. Tudo, no homem, propende à unidade; com a divisão cessa a felicidade; e, como Deus, que a fez à sua imagem, a alma forceja sempre em concentrar, em um ponto, passado, presente e futuro. 56
É o que se nos oferecia dizer acerca dos sacramentos da ordem e do matrimônio. Descrever os quadros que se lhes ligam seria superfluidade. Que imaginação carece de auxílio para se figurar quer o padre abjurando os prazeres da vida para dar-se aos desgraçados, quer a donzela devotando-se ao silêncio das soledades para fruir o silêncio do coração, quer os esposos comprometendo-se de se amarem, ao pé do altar? A
56 Pode consultar-se o livro de Bonald sobre o Divórcio; é uma das melhores obras que, de há muito, se deram à estampa.