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Prefácio

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SOCIAL

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ou não quis – 33,14%; (ii) não sabia utilizar a internet – 31,45%; e (iii) não tinha acesso a microcomputador – 29,79%. Dentre esses motivos, os dois últimos, que dizem respeito diretamente à exclusão digital, são mais frequentes em capitais com piores índices de desenvolvimento econômico e social do país: São Luiz (MA), Boa Vista (RR), Teresina (PI), Natal (RN) e Rio Branco (AC).

Nesse ponto, é interessante notar como a exclusão social fomenta a exclusão digital na medida em que os cidadãos marginalizados são aqueles que não tem acesso ao conhecimento e às ferramentas tecnológicas. Do mesmo modo, a exclusão digital aumenta a exclusão social, uma vez que, sem o acesso à internet, os excluídos tendem a ser ainda mais excluídos por não conseguirem acesso a serviços públicos, a notícias, a conhecimento e, o que se tornou relevante com a pandemia da COVID-19, ao mercado de trabalho, ao mercado de consumo e a serviços de saúde. No que diz respeito ao mercado de trabalho especificamente, ponto sensível quando se analisa a desigualdade social, conforme Zheng e Walsham:

Em outras palavras, os vários níveis de divisão entre e dentro do trabalho digitalizado e não digitalizado sob covid-19 estão associados a rupturas mais profundas de desigualdade econômica e de classe, bem como à distribuição desigual de recursos através das fronteiras geográficas ao redor do globo e dentro das nações. Embora o trabalho remoto possa ser uma opção prontamente disponível para trabalhadores digitais durante uma crise de saúde pública, a muito celebrada “flexibilidade” e “autonomia” na economia de gig baseada em plataforma pode ser terrivelmente frágil sob graves perturbações no mercado e na economia.12

O mesmo pode ser dito do acesso à educação, uma vez que a capacidade dos alunos de se beneficiarem do ensino à distância pode ser desigual devido às desigualdades relativas ao acesso à Internet e aos equipamentos eletrônicos, bem como à capacidade dos pais para apoiar os filhos e à forma distinta que escolas públicas e escolas privadas foram capazes de lidar com a migração do ensino para o computador durante a pandemia13 . A alfabetização digital e o acesso às ferramentas tecnológicas são, nesse contexto, imprescindíveis para a inclusão do indivíduo na sociedade, seja para ter acesso ao mercado de trabalho, seja para conseguir a devida prestação de seus

12 No original em inglês: “In other words, the multiple levels of division between and within digitalised and nondigitalised work under covid-19 are associated with deeper ruptures of class and economic inequality as well as the uneven distribution of resources across geographical boundaries around the globe and within nations. While remote working may be a readily available option for digital workers during a public health crisis, the much celebrated ‘flexibility’ and ‘autonomy’ in the platform-based gig economy could be terribly fragile under severe disruptions in the market and economy” In: ZHENG, Yingqin; WALSHAM, Geoff. Inequality of what? An intersectional approach to digital inequality under Covid-19. Information and Organization, v. 31, n. 1, 100341, 2021. f. 3.

13 UNCTAD. The COVID-19 Crisis: accentuating the need to bridge digital divides. Abril, 2020. direitos pelo Poder Público.

Atualmente vigora no país a Estratégia E-Digital, instituída pelo Decreto nº 9.319, em 21 de março de 2018, que, segundo Polido, diferentemente do Programa de Inclusão Digital de 2004, “ficam para trás em uma série de objetivos de inclusão digital relacionados, que seriam essenciais para uma transformação digital generalizada”14 .

Devido ao progressivo aumento da dependência da economia à tecnologia, isso se torna preocupante, sobretudo com a pandemia do COVID-19. Apesar da exclusão digital não ser o único motivo, certamente é fator que em muito influencia no atual índice de desemprego no país, que no primeiro trimestre de 2021 ficou em 14,7%, segundo o IBGE15, maior percentagem desde o início das medições do instituto em 2012.

Ademais, a falta de iniciativas para promoção do letramento digital e acesso a ferramentas tecnológicas, sobretudo durante a pandemia, indubitavelmente terá reflexos na desigualdade do ensino público e particular no país. No acesso aos serviços públicos a situação não é diferente. Em 11 de

14 POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. A rota oposta de uma agenda global digital inclusiva a partir do Direito e regulação: cismas de um projeto negligenciado no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 122, jan./jun. 2021, pp. 269-322.

15 BRASIL. Desemprego. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: <https:// www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php>. Acesso em: 18 de agosto de 2021. abril de 2019, foi publicado o Decreto nº 9.756, instituindo o portal “gov.br”, que unificava, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo federal, a prestação dos serviços públicos sob um cadastro único do cidadão. Hoje, sobretudo com a pandemia do COVID-19, que forçou o fechamento físico dos estabelecimentos do Poder Público, para se ter acesso a determinado direito, o “gov.br” é, muitas vezes, a única alternativa, como se verá adiante no caso do INSS, o que é de extrema preocupação à luz da exclusão digital brasileira.

3. HISTÓRICO DO ACESSO A BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS NO BRASIL

O Brasil só passou a ter verdadeiras regras de caráter geral em matéria de previdência apenas no século XX. Em períodos anteriores, apesar de previsão constitucional, apenas alguns diplomas normativos ofereciam algum tipo de proteção ao trabalhador de forma isolada. A doutrina majoritária considera como marco inicial da Previdência Social no país a edição da Lei Eloy Chaves em 1923 (Decreto Legislativo nº 4.682), que criou as Caixas de Aposentadoria e Pensões nas empresas de estrada de ferro16 .

16 LAZZARI, João Batista e CASTRO, Carlos Alberto de. Manual de Direito Previdenciário. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

A partir de então, surgiram várias outras caixas de pensão e aposentadoria, cada qual vinculada a um determinado ramo de atividade. A padronização da concessão de benefícios só foi acontecer em 1949, com a publicação do Regulamento Geral das Caixas de Aposentadorias e Pensão (Decreto nº 26.778/49), já a padronização normativa para o amparo dos segurados só foi ocorrer em 1960, com a aprovação da Lei nº 3.807, denominada Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS)17 . Naquele momento, os organismos previdenciários ainda estavam descentralizados, o que só foi mudar com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS – Decreto-lei nº 72/66). Todavia, o INPS ainda não oferecia proteção social ao trabalhador rural e ao trabalhador doméstico, que só passaram a ter algum tipo de salvaguarda com a Lei Complementar nº 11/1971 (criação do FUNRURAL) e Lei nº 5.859/1976, respectivamente18 . A Constituição de 1988 foi a responsável por unificar todo o sistema, criando o atual Regime Geral de Previdência Social, excluindo apenas os trabalhadores que fossem regidos por sistema próprio de previdência, tais como servidores públicos e militares, e os brasileiros que não contribuem para nenhum regime por

17 IBRAIM, Fábio Zambite. Curso de Direito Previdenciário. 25 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2020.

18 LAZZARI, João Batista e CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Manual de Direito Previdenciário. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. não exercerem atividade laborativa, como por exemplo as crianças19 . Em 1990 foi criado o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), autarquia federal que passou a coordenar as funções de concessão de benefícios e arrecadação previdenciários, tendo esta última função sido transferida para a Secretaria da Receita Federal em 2007 (Lei nº 11.457). No ano seguinte, foram aprovadas as Leis nº 8.212 e nº 8.213, que tratam do custeio e dos benefícios da previdência social20 . Ainda que a Previdência Social tenha sofrido algumas reformas constitucionais consideráveis (EC nº 20/98, EC nº 41/03, EC nº 47/05 e EC nº 103/19), a estrutura de concessão de benefícios permaneceu a mesma, feita por meio do INSS. No final da década de 1990 e primeiros anos da de 2000, a previdência social brasileira passou a enfrentar passou a enfrentar um grande problema no que diz respeito ao atendimento do cidadão nas agências do INSS. Conforme relatório produzido pelo Dataprev21, de cada 10 pessoas que procuravam uma Agência da Previdência Social no país, sete voltavam para casa sem sequer obter as informações

19 LAZZARI, João Batista e CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Direito Previdenciário. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021.

20 LAZZARI, João Batista e CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Manual de Direito Previdenciário. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

21 EMPRESA DE TECNOLOGIA E INFORMAÇÕES DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. A virada da previdência social: como acabaram as filas nas portas das agências. 1. ed. Brasília: DATAPREV, 2013. básicas de que precisavam. Era urgente que se pensasse em estratégias para a humanização dos serviços prestados à população brasileira, o que veio a ser implementado, dentre outras medidas, com a criação da Central de Atendimento 135, parte do Projeto de Gestão do Atendimento (PGA). A partir da criação do telecentro, aliada a abertura da possibilidade de agendamento eletrônico do atendimento presencial (Sistema de Agendamento Eletrônico – SAE), mais pessoas puderam ser atendidas em um menor intervalo de tempo, dando fim às enormes filas que, no início dos anos 2000 estampavam os noticiários. Segundo o relatório do Dataprev, uma pesquisa realizada pelo INSS em 2008 mostrou que 80% das pessoas, que ligavam para o 135, queriam apenas informações22, demanda legítima da população, mas que, muitas vezes, na rotina das agências, representava um entrave para o atendimento e concessão de benefícios àqueles que precisavam. A partir do fim da primeira década dos anos 2000, percebeu-se a necessidade de investir em tecnologia com o objetivo de agilizar ainda mais os processos de trabalho do INSS. Nesse contexto, foi publicada a Lei Complementar nº 128, de 19 de dezembro de 2008 que, além de outras medidas, modificava o art. 29-A

22 EMPRESA DE TECNOLOGIA E INFORMAÇÕES DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. A virada da previdência social: como acabaram as filas nas portas das agências. 1. ed. Brasília: DATAPREV, 2013. da Lei nº 8.213/91 (Lei de Benefícios)23 , ampliando a base de dados do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS)24 , o que auxiliava na aferição dos dados dos segurados, evitando solicitação de diligências desnecessárias pelo INSS. Esse processo de digitalização, como já tratado, seguiu a tendência mundial na busca do uso da tecnologia em todos os aspectos da vida em sociedade. Com os avanços da tecnologia, novas oportunidades para seu uso foram criadas, com novos desafios a serem enfrentados25 . Em 11 de novembro de 2011 foi instituído o processo eletrônico no âmbito do INSS, por meio da Resolução nº 166/PRES/INSS, o que demonstrava essa preocupação com a necessidade de adaptar as instituições a esse novo contexto digital.

23 Art. 29-A. O INSS utilizará as informações constantes no Cadastro Nacional de Informações Sociais – CNIS sobre os vínculos e as remunerações dos segurados, para fins de cálculo do salário-de-benefício, comprovação de filiação ao Regime Geral de Previdência Social, tempo de contribuição e relação de emprego. In: BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília, 24 de jul. de 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em: 20 de agosto de 2021.

24 O CNIS é um banco de dados do governo federal criada em 1989 pelo Decreto 97.936, que armazena as informações dos trabalhadores brasileiros necessárias para garantir seus direitos trabalhistas e previdenciários. No cadastro constam dados relativos a vínculos, remunerações e contribuições do trabalhador, que servem como prova da filiação à previdência social e permitem a apuração do direito a benefícios e seu valor. In: LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira; KRAVCHYCHYN, Gisele Lemos e KRAVCHYCHYN, Jefferson Luis. Prática processual previdenciária. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.

25 FILGUEIRAS, Fernando; ALMEIDA, Virgílio. Governance

for the digital world: neither more state nor more

market. Palgrave Macmillan, 2021. (Ch. 4: Governance for digital technologies, p. 75-104).

A crescente busca pela automatização dos processos culminou na criação do Meu INSS, a partir da Instrução Normativa nº 96/PRES/INSS, em 14 de maio de 2018. Trata-se de plataforma digital, vinculada ao sistema gov.br, que permite ao segurado e o INSS acessar informações sociais, bem como efetuar requerimentos, agendar perícias, realizar simulações, dentre outras funcionalidades que ao logo do tempo estão sendo inseridas na plataforma. Influenciado pelo domínio do capitalismo de vigilância, o governo brasileiro tornou-se cada vez mais dependente de entidades comerciais: a internet e as companhia de telefone, para promover os direitos básicos de seus cidadãos, em especial os previdenciários. Apesar de antes já possuir domínio dos dados dos cidadãos, a forma como isso se expandiu pelo uso da tecnologia, alterou totalmente a dinâmica do atendimento à população pelo governo26 .

A pandemia do COVID-19 intensificou ainda mais a necessidade de se buscar alternativas tecnológicas para o serviço público. Com o isolamento social, o atendimento presencial nas agências foi suspenso, tendo o Meu INSS se tornado o principal meio para requerimento de benefícios.

4. ACESSO A BENEFÍCIOS

26 LYON, David. The culture of surveillance: Watching as a way of life. John Wiley & Sons, 2018 (Introduction: Surveillance Culture Takes Shape, p. 9-34). PREVIDENCIÁRIOS E A EXCLUSÃO DIGITAL

As instituições estão em constante transformação e mudança, se adaptando a novos contextos e promovendo mudanças de paradigmas pela introdução de novos procedimentos. Essa transformação, seja ela por acidente, evolução ou intenção, requer a observância de vários fatores e resiliência para decifrar os novos problemas e se adaptar a novas soluções. Nesse sentido, no mundo digital: “O grande desafio para a governança do mundo digital é criar uma nova ordem. Ou seja, o mundo digital precisa ser regido por uma nova gramática, com atributos para se adaptar e produzir para um mundo novo e complexo.”27

A pandemia da COVID-19 impôs ao mundo o desafio do isolamento social, o que representou a necessidade de se buscar alternativas digitais para a transposição das atividades presenciais para o meio virtual. Diante de desafio, o INSS permitiu a expansão das funcionalidades do atendimento da central 135, por meio da Portaria nº 123 (13 de maio de 2020), permitindo que os atendentes abrissem tarefas no Meu INSS dos segurados para solucionar eventuais pendências.

Todavia, esse atendimento

27 Tradução minha. No original: “The big challenge for governance of the digital world is to create a new order. In other words, the digital world needs to be governed in a new grammar, with attributes to adapt and produce in order for a complex and new world.” In: FILGUEIRAS, Fernando; ALMEIDA, Virgílio. Governance for the digital world: neither more state nor more market. Palgrave Macmillan, 2021. (Ch. 4: Governance for digital technologies, p. 75-104). pressupõe que o segurado tenha acesso a computador, rede banda larga e alguma ferramenta que lhe possibilite a digitalização de documentos. Ademais, subentende que o cidadão será capaz de compreender o sistema do Meu INSS e executar as tarefas necessárias para solucionar, sozinho, seu problema.

A tendência pela busca de ferramentas tecnológicas ficou ainda mais forte a partir da publicação do Decreto 10.410, em 30 de junho de 2020, que acrescentou ao Decreto 3.048/99, o art. 176-A, com a seguinte redação:

Art. 176-A. O requerimento de benefícios e de serviços administrados pelo INSS será formulado por meio de canais de atendimento eletrônico, observados os procedimentos previstos em ato do INSS.

§ 1º O requerimento formulado será processado em meio eletrônico em todas as fases do processo administrativo, ressalvados os atos que exijam a presença do requerente. § 2º Excepcionalmente, caso o requerente não disponha de meios adequados para apresentação da solicitação pelos canais de atendimento eletrônico, o requerimento e o agendamento de serviços poderão ser feitos presencialmente nas Agências da Previdência Social.28

28 Grifo meu. BRASIL. Decreto 3.048, de 6 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto. Depreende-se do dispositivo supracitado que, em caráter permanente, os meios eletrônicos serão o canal principal dos segurados para o requerimento de benefícios, sendo aceito o atendimento presencial apenas na hipótese de atos que exijam a presença do requerente ou quando o segurado não possui meios para o atendimento eletrônico.

Todavia, em função dessa presunção de acesso a meios digitais, não há qualquer informação sobre como o segurado poderá agendar um atendimento presencial. Na prática, isso tem se tornado quase impossível.

Há, assim, uma crescente rigidez no âmbito do INSS, que, em prol da celeridade dos processos administrativos, que desconsidera o direito fundamental dos segurados ao acesso aos benefícios previdenciários.

Ademais, é necessário fazer algumas ponderações acerca da transparência do algoritmo que orienta o sistema do Meu INSS. Transparência é o elemento por meio do qual os cidadãos podem tomar conhecimento acerca do modo como os sistemas de decisão fazem escolhas que afetam suas vidas29. É por meio dessa compreensão que é possível responsabilizar os coordenadores dos

gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm. Acesso em: 23 de agosto de 2021.

29 FILGUEIRAS, Fernando; ALMEIDA, Virgílio. Governance

for the digital world: neither more state nor more

market. Palgrave Macmillan, 2021. (Ch. 4: Governance for digital technologies, p. 75-104).

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