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DA LEGALIDADE
from Revista Científica da Escola Superior de Advocacia: Direito Previdenciário na Atualidade - Ed. 38
by ESA OAB SP
letras apenas, gerando todos os sentimentos do mundo. As mulheres falam de amor. Os homens falam de amor. Amor que vai, amor que vem, que foge, que se esconde, que se procura, que se encontra, que se preza, que se despreza, que causa ódios e acende guerras sem fim.67
2. BREVE HISTÓRICO
2.1. TEMA 529
Começo pelo Tema 529. O leading case foi o Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, com repercussão geral reconhecida. A questão constitucional submetida a julgamento versou sobre a possibilidade, ou não, de reconhecimento jurídico de união estável e de relação homoafetiva concomitantes, com o consequente rateio da pensão por morte. O caso concreto envolveu uma disputa iniciada em Sergipe. O de cujos manteve relacionamentos simultâneos com uma mulher, com quem teve um filho, e outro homem, com quem conviveu por doze anos. Após o falecimento do segurado, a mulher obteve, em juízo, o reconhecimento da união estável, sendo-lhe concedida a pensão por morte.
67 Amante, segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001, nota 1), é “que(m) ama; apaixonado”. No Brasil, o sentido mais usual do vocábulo, contudo, é: “pessoa que mantém relações sexuais extraconjugais com outra” (ibid., nota 3). Posteriormente, o outro parceiro também se socorreu do Judiciário para pleitear o direito ao benefício previdenciário, o qual lhe foi reconhecido em primeiro grau de jurisdição e negado em segundo. O Tribunal de Justiça de Sergipe, embora reconhecendo a relação homoafetiva, negou o direito à metade da pensão. Considerou juridicamente impossível a dupla união estável com fulcro no princípio da monogamia, que não admitiria a existência simultânea de mais de uma entidade familiar, independentemente da orientação sexual das partes. A discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal por força de agravo em recurso extraordinário do companheiro do falecido. O julgamento iniciou-se em 25 de setembro de 2019, tendo sido suspenso por pedido de vista formulado pelo Ministro Dias Toffoli. Em dezembro de 2020, a Corte Suprema concluiu o julgamento por meio de sessão virtual. O relator, Ministro Alexandre de Moraes, assim se manifestou:
A existência de uma declaração judicial de existência de união estável é, por si só, óbice ao reconhecimento de uma outra união paralelamente estabelecida por um dos companheiros durante o mesmo período, uma vez que o artigo 226, § 3º, da Constituição se esteia no princípio de exclusividade ou de monogamia, como requisito para o reconhecimento jurídico desse tipo de relação afetiva inserta no mosaico familiar atual, independentemente de se tratar de relacionamentos hétero ou homoafetivos.
Equiparando a união estável ao casamento, Moraes concluiu pela impossibilidade de se reconhecer direitos à relação paralela. O ministro destacou que o artigo 1.723 do Código Civil impedia a concretização de união estável com pessoa já casada, sob pena de ficar configurada a bigamia, tipificada como crime pelo artigo 235 do Código Penal. Chamou a atenção, como supramencionado, para o parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição da República, o qual, segundo Moraes, exigiria a exclusividade ou a monogamia como pré-requisito para o reconhecimento jurídico da união estável. O relator foi acompanhado pelos Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Nunes Marques e Luiz Fux. O Ministro Edson Fachin abriu a divergência, pronunciando-se de modo favorável ao rateio da pensão. Sustentou que o caso não versava sobre direito civil ou de família, mas sobre direito previdenciário. Para Fachin, o cônjuge, o companheiro e a companheira são definidos como beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado, nos termos do artigo 16, inciso I, da Lei nº. 8.213/1991. Daí a admissibilidade da divisão do benefício, desde que presente o requisito da boa-fé objetiva. Pode haver o rateio, em outras palavras, conquanto que a pessoa não soubesse que o parceiro mantinha outra união simultânea. Segundo o ministro, não tendo sido comprovado que os companheiros concomitantes estavam de má-fé,68 deve lhes ser concedida a proteção jurídica para os efeitos previdenciários decorrentes. Seguiram tal entendimento os Ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio.
Foi por uma maioria apertada de votos, portanto, que o Supremo Tribunal Federal considerou ilegítima a existência paralela de duas uniões estáveis para efeitos previdenciários. Prevaleceu o entendimento de que os deveres de fidelidade e monogamia vedam o reconhecimento jurídico de entidades familiares concomitantes. A Corte Suprema acabou por negar provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do relator, vencidos os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio. Na sequência, firmou-se a seguinte tese:
A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período,
68 CHIZANE, P. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.69
Apreciado o Tema 529, e ocorrido o trânsito em julgado da decisão paradigma, cumpre, aos juízes e tribunais, observar o decidido nas demandas que lhe forem submetidas,70 ainda que questionem, pessoalmente, o posicionamento majoritário do STF. Fora dos autos, não obstante, é perfeitamente lícito, ao magistrado, manifestar-se sobre temas jurídicos e até sobre decisões judiciais em obras técnicas e/ou no exercício do magistério, dentro do regime de liberdades e garantias previsto pela atual ordem constitucional.71
2.2. TEMA 526
Continuo, agora com o Tema 526. O leading case foi o Recurso Extraordinário 883.168/SC. Discutiu-se a possibilidade, ou não, de reconhecimento de direitos previdenciários na hipótese de união simultânea ao casamento. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região havia admitido o recebimento da pensão por morte de ex-combatente pela
69 Ou seja, ignoravam a concomitância dos relacionamentos.
70 STF, Plenário, Sessão Virtual de 11/12/2020 a 18/12/2020.
71 V. Artigo 927 do Código de Processo Civil. companheira do falecido, em concorrência com a viúva. A discussão chegou ao STF por força de recurso da União. O relator, Ministro Dias Toffoli, pronunciou-se pela impossibilidade de reconhecer direitos previdenciários nas relações que se amoldem ao instituto do concubinato. Sustentou que a recorrida não faria jus ao benefício, mesmo tendo convivido com o de cujus de 1998 a 2001, ano de sua morte, porque o falecido era casado naquela época. Invocando os princípios da monogamia, da exclusividade e da boafé, assim como os deveres de lealdade e fidelidade, Toffoli deu provimento ao recurso da União para reformar o acórdão de segundo grau. Em seu voto, o ministro relembrou o julgamento com tese de repercussão geral fixada no RE 1.045.273. Os demais ministros seguiram o entendimento do relator, com exceção do Ministro Edson Fachin. Único a divergir, Fachin circunscreveu seu voto em torno do campo previdenciário, sustentando que a questão central residia na boa-fé. Entendeu ser possível o reconhecimento de efeitos post mortem previdenciários a casamento e união estável concomitantes, desde que presente o requisito da boa-fé objetiva. Para Fachin, não ficou demonstrado, no caso concreto, que a esposa e companheira simultâneas estivessem de má-fé. Logo, deveria ser reconhecida a proteção jurídica para os efeitos previdenciários decorrentes. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento virtual finalizado em 03/08/2021, apreciou o Tema 526 da repercussão geral e fixou, por maioria, a tese a seguir: É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável.
3. PRINCIPAIS ARGUMENTOS
3.1. RELAÇÃO HOMOAFETIVA
O fato de uma das relações ser homoafetiva não foi óbice ao rateio da pensão por morte no julgamento do Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, até porque tal questão já havia sido decidida pelo STF. O próprio Ministro Alexandre de Moraes comentou que a matéria do reconhecimento de entidades familiares formadas por pessoas de mesmo gênero já estava pacificada pela Suprema Corte. Salientou que o STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277/DF e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ, “não chancelou a possibilidade de bigamia, mas sim conferiu a plena igualdade, independentemente da orientação sexual”. O Ministro Gilmar Mendes também aduziu que todos os aspectos relacionados à homossexualidade eram irrelevantes para o deslinde do caso, citando os precedentes supra. A discussão, por conseguinte, não era se uma união heterossexual se sobrepõe a uma união homossexual, mas se seria possível reconhecer uniões estáveis concomitantes para fins de rateio de pensão por morte.
Andou bem nossa Corte Suprema. Foi-se o tempo, afinal, do amor que não ousava dizer seu nome. A referência, por óbvio, é a outro julgamento célebre: do escritor, poeta e dramaturgo irlandês Oscar Wilde. Quando Wilde surgiu no cenário londrino, o relacionamento íntimo entre pessoas do mesmo sexo era mais conhecido por termos geralmente utilizados num sentido depreciativo, como uranismo, pederastia ou sodomia, muito embora a palavra homossexual já tivesse sido cunhada, em 1869, pelo médico húngaro Karoly Benkert. O fato, porém, é que o último vocábulo levou algum tempo para ser empregado no dia-a-dia, tendo sido absorvido, mais rapidamente, pela psiquiatria.
No século em que a expressão foi inventada, a homossexualidade era considerada um crime. Com o evolucionismo, reforçou-se o entendimento de que a natureza podia dar respostas às questões morais. A natureza não errava. Por isso, o que fugisse à sua tendência era desvio, arcaísmo ou regressão. Daí para as teorias das anomalias foi um passo. “O imoral era um anormal, e o
anormal, um degenerado ou um anômalo. Anômalo que, logo em seguida, tornou-se perverso [...]”,72 pervertido. Entre médicos e psiquiatras, ficou o estigma. O que era crime virou um misto de vício e doença: “doença dos espíritos viciosos ou espírito vicioso de doentes mentais degenerados ou portadores de aberrações instintivas”.73 O homossexual passou a ser uma espécie à parte da humanidade dita “normal”. Sua condenação migrou da esfera religiosa para a da ciência e do direito, de modo que os padres foram substituídos por médicos e juízes: uns tentando curar, outros julgando. Acusado de sodomita pelo Marquês de Queensberry, Oscar Wilde negou inicialmente, em juízo, qualquer prática homossexual. Diante, contudo, de provas irrefutáveis, entre as quais uma carta por ele enviada ao Lorde Alfred Douglas (mais conhecido pelo seu apelido: Bosie), partiu para a defesa de seu amor. Ao ser inquirido pela promotoria, Wilde retrucou com um dos discursos mais corajosos e contundentes sobre o tema, reconhecendo se tratar, numa tradução livre, da “grande afeição de um homem mais velho por um homem mais jovem, como aquela que houve entre Davi e Jônatas, o amor que Platão tornou a base de sua filosofia, o
72 Reporto-me, especialmente, ao artigo 5º, caput e incisos IV e IX da atual Constituição da República, assim como à ressalva do artigo 36, inciso III, in fine, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979).
73 COSTA, J. F. Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo. In: VVAA. Organização de Adauto Novaes. Ética. São Paulo, Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 277. amor que se pode achar nos sonetos de Michelangelo e Shakespeare”, mas admitindo que tal afeto era tão mal compreendido, no final do século XIX, que poderia ser descrito como o “amor que não ousa dizer seu nome”.
Oscar Wilde acabou sendo condenado a dois anos de prisão com trabalhos forçados. Cumprida integralmente a pena, partiu diretamente para o exílio na França. Sem dinheiro, solitário e com a saúde irremediavelmente comprometida, passou a viver em hotéis baratos, ajudado pelos poucos amigos que lhe restaram, embriagando-se diuturnamente com absinto (que lhe rendeu, aliás, frases célebres). Morreu por causa de uma meningite, agravada pelo alcoolismo e pela sífilis, aos 46 anos de idade. Num primeiro momento, foi enterrado como indigente. Atualmente, jaz no cemitério Père Lachaise, o mais célebre de Paris, onde estão os túmulos de outros grandes expoentes do mundo das artes, como Balzac, Chopin e Molière.
O julgamento e a condenação de Oscar Wilde tiveram repercussão internacional, seu eco se fazendo ouvir por muitas décadas adiante. Mesmo diante de defesas veementes, como a de Bernard Shaw, por exemplo, o episódio ajudou a firmar o estereótipo do homossexual como uma pessoa viciosa e decadente. Mas tudo isso é datado. Hoje em dia, é melhor pensar a homossexualidade simplesmente como uma possibilidade de realização afetiva e sexual. Desistindo de ver o homossexual como uma anomalia biológica ou psíquica, podemos continuar respeitando e cultivando com maior facilidade crenças igualmente importantes para nós, como a de que o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade são direitos inalienáveis do ser humano. Como diz o psicanalista e psiquiatra Jurandir Freire Costa, “se a vida e a liberdade são um problema de todos e por todos deve ser discutido e resolvido, a busca da felicidade é um problema de cada um [...]”, não precisando se justificar, “exceto quando esbarra na dor e na humilhação do outro”.74
3.2. BIGAMIA
Também se argumentou que, na prática, o provimento da demanda significaria a aceitação da bigamia no Brasil, violando a Constituição da República, o Código Civil e o Código Penal. Desdobremos o argumento. O Código Penal, em seu artigo 235, tipifica a bigamia como crime. O raciocínio poderia ser enunciado, então, da seguinte maneira: “Se a bigamia é crime, não pode haver o reconhecimento de duas uniões estáveis”. É possível utilizar a bigamia por analogia em se tratando de uniões estáveis? Faz tempo que não atuo na esfera penal, mas, pelo que me lembro, é proibida a analogia em prejuízo do réu. Admite-se seu uso somente para beneficiar o acusado. No caso em tela,
74 Ibid. o emprego da analogia com a bigamia prejudicou uma das partes. Há outra dificuldade: embora não haja acordo entre juristas nem lógicos sobre uma definição uniforme de analogia, é consensual que se trata de modo de integração do direito. Ela existe para suprir lacunas. Será que havia lacuna no direito positivo a exigir a atuação do intérprete em prejuízo de uma das partes? Uma questão que, por ora, deixo em aberto.
3.3. CONCUBINATO.
Poder-se-ia questionar, em tese, a natureza do processo paradigma do Tema 526,75 mas não há dúvida de que o leading case do Tema 529 era de cunho eminentemente previdenciário. Por ocasião do julgamento do RE 1.045.273/ SE, aduziu-se que, apesar de a matéria ser previdenciária, tal ramo do direito se vale de institutos do direito de família para atribuir determinados direitos previdenciários. O próximo passo argumentativo foi mais delicado: o vínculo homoafetivo, pelo mero fato de ser posterior à união estável76 com a mulher, foi equiparado ao concubinato. É o que se deflui, v.g., da passagem em que o Ministro Alexandre de Moraes, invocando o artigo
75 COSTA, J.F. Op. cit., p. 287.
76 Em se tratando de demandas versando sobre pensão de ex-combatente, a jurisprudência oscila entre a natureza administrativa e a previdenciária do benefício. No sentido de que o cunho é eminentemente administrativo, v. TRF4, Corte Especial, Conflito de Competência 1999.70.00.032811-8, Relator Desembargador Vladimir Passos de Freitas, DJ de 08/05/2002, p.785; TRF3, Conflito de Competência 11964/ MS, Relatora Desembargadora Therezinha Cazerta, e-DJF3 Judicial de 15/07/2010, p. 84.
1.566, inciso I, do Código Civil,77 menciona a exigência de fidelidade recíproca durante o pacto nupcial como substrato do regime monogâmico. O concubinato não é admitido pelo direito de família. Logo, seguindo essa linha de raciocínio, o segundo relacionamento não poderia ser reconhecido para efeitos previdenciários. É o que se extrai da própria tese para fins de repercussão geral:
A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro (g.n.). Há menção ao artigo 1.723, § 1º, do Código Civil. Dispõe o referido preceito: Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
77 Reconhecida judicialmente, é importante destacar. Não há norma sem interpretação. Como lembra Tercio Sampaio Ferraz Junior,78 “toda norma, pelo simples fato de ser posta, é passível de interpretação”. Existem, decerto, vários tipos de interpretação. A interpretação especificadora, por exemplo, parte do “pressuposto de que o sentido da norma cabe na letra de seu enunciado”.79 Postula, basicamente, que não é necessário ir muito longe para elucidar o conteúdo de uma norma jurídica. Era esse, provavelmente, o intuito do brocardo segundo o qual in claris, cessat interpretatio. O sentido literal da regra do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, é claro? Se fosse assim tão óbvio, seria impossível reconhecer, para fins previdenciários, o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, porquanto o caput do aludido preceito refere-se, textualmente, à “união estável entre o homem e a mulher”. Parece-me inegável que, tomada essa norma à risca, conforme sua letra, chega-se a um resultado injusto, não desejado pelo ordenamento jurídico. Tal conclusão não destoa, na essência, do posicionamento do próprio STF.80 A união estável se define por exclusão do casamento civil. Daí a dificuldade de transpor o instituto do concubinato, intrinsecamente ligado ao casamento, à hipótese de uniões estáveis concomitantes, mormente na seara
78 Inserido no Capítulo IX — Da Eficácia do Casamento —, o artigo 1.566 do Código Civil prevê os deveres dos cônjuges.
79 FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 264
80 Ibid., p. 294. previdenciária. A Constituição de 1988 fala explicitamente, acerca do direito à pensão por morte por parte do dependente do segurado da previdência social,81 em cônjuge ou companheiro. Não faz referência alguma ao concubinato. Como salientou o Ministro Carlos Ayres Brito no julgamento do Recurso Extraordinário n. 397.762/BA,82 não há concubinos para a Lei Mais
Alta do nosso País, porém casais em situação de companheirismo.
Até porque o concubinato implicaria discriminar os eventuais filhos do casal, que passariam a ser rotulados de ‘filhos concubinários’. Designação pejorativa, essa, incontornavelmente agressora do enunciado constitucional de que ‘Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação’ (§ 6.º do art. 227, negritos à parte). 13. Com efeito, à luz do Direito Constitucional brasileiro o que importa é a formação em si de um novo e duradouro núcleo doméstico.
A concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo
81 Apesar de a CF/88 e do CC/2002 falarem em união de homem e mulher, o STF, ao julgar a ADI 4.277-DF em conjunto com a ADPF 132-RJ, entendeu que é possível a existência de uniões estáveis homoafetivas, ou seja, entre pessoas do mesmo sexo (ADI 4277, Relator Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011).
82 V. Artigo 201, inciso V, da Constituição da República. objetivamente confirma. Isto é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma concomitante relação sentimental a-dois. No que andou bem a nossa Lei Maior, a juízo, pois ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente traída, sabido que esse órgão chamado coração ‘é terra que ninguém nunca pisou’. Ele, coração humano, a se integrar num contexto empírico da mais entranhada privacidade, perante a qual o Ordenamento
Jurídico somente pode atuar como instância protetiva. Não censora ou por qualquer modo embaraçante.
É interessante a advertência de Renato Horta Rezende Advogado e Anderson Luiz de Souza Jaques:83 Ao se reconhecer que o dever de fidelidade e a monogamia constituem elementos obrigatórios a todos os modelos de família, ainda que o STF não tenha examinado com a devida profundidade e coerência tais temas, mas integrando estes a ratio decidendi, inclusive compondo o texto da tese nº 529 operou-se profunda repercussão no Direito das Famílias capaz de reduzir a proteção a que os autores familiarista atribuem ao §4º do art. 226 da Constituição da República de 1988, mantendo o casamento como referencial para todas as famílias mesmo para aqueles que
83 STF, RE 397.762-/BA, Primeira Turma, julgado em 03.06.2008.
não compartilham desta cosmovisão e convivam substancialmente como família dentro de uma concepção eudemonista, o que indubitavelmente reduz a abrangência da proteção estatal às famílias. especificamente da pensão por morte no âmbito da Previdência Social: tratase do artigo 201, inciso V. Cuidarei desse assunto mais adiante. Antes, gostaria de adentrar brevemente na questão da autonomia do direito previdenciário.
4.4. ARTIGO 226 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
Alegou-se que a restrição ao reconhecimento da segunda união estaria amparada pelo artigo 226, § 3º, da Constituição da República. Reza tal dispositivo:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
A Constituição determinou à lei que facilitasse a conversão da união estável entre homem e mulher em casamento, decerto, mas não determinou, expressamente, que apenas a entidade familiar estruturada nos moldes do que o direito civil denomina de concubinato puro seja passível de proteção estatal. De se ponderar, ainda, que o artigo 226 diz respeito à família, tutelada por vários ramos do direito, ao passo que existe outro artigo, na Constituição, que cuida 4.5. AUTONOMIA DO DIREITO PREVIDENCIÁRIO
Em determinado momento do julgamento do RE 1.045.273/SE, a Ministra Carmen Lúcia lembrou que se tratava de processo previdenciário, e não de sucessão ou possível sucessão. Esse aspecto me parece de vital importância. O olhar do direito previdenciário, afinal, é diferente. É um olhar de repartição, de compartilhamento: de divisão de algo por todos. Como assinala a Desembargadora Federal Marisa Ferreira dos Santos,84 os resultados da exegese previdenciária “nunca podem acentuar desigualdades nem contrariar o princípio da pessoa humana”. O Ministro Luís Roberto Barroso indagou, no mesmo julgamento, se importava, para a previdência social, saber qual teria sido a primeira relação. Seria relevante, para o direito previdenciário, apurar quem contribuiu mais para a vida de outrem? Não me refiro, aqui, apenas aos aspectos materiais. Comentei, em
84 REZENDE, R. H.; JAQUES, A. L. S. As uniões paralelas e os reflexos da Tese nº 529 do STF. In: Rezende, Renato Horta; Coelho, Thais Câmara. (Org.). Temas atuais em famílias e sucessões. 1. ed. Belo Horizonte: Renato Horta Rezende, 2021, v. 1, p. 226-255. outro lugar,85 que a solidariedade confere sentido à previdência social. Ora, a divisão dos bens materiais, por si só, não faz a solidariedade.
Regida apenas pela dimensão racional, a distribuição equitativa pode abrigar a indiferença, o egoísmo e até o ódio. É o que Delsol (2002, p. 191) denomina de justiça sem amor. A solidariedade requer mais: exige uma “vida na divisão, não para realizar uma justiça que colocaria enfim o mundo no lugar, mas para assumir juntamente a finitude humana” (DELSOL, 2002, p. 191, grifos no original). É o face a face que dá sentido à divisão. Daí, alegoricamente, o motivo de os cinco pães e dois peixes terem sido capazes de saciar cinco mil homens (Mt 14.13-21): porque mediados, no encontro entre desiguais, pelo amor e pela compaixão (HOFFMANN, 2019, p. 147). Compartilhar, verbo bitransitivo: partilhar ou repartir com. A previdência compartilha. A história do julgamento do Rei Salomão é conhecida. Retomo alguns pontos principais apenas para ilustrar minha analogia com o direito previdenciário. Duas mulheres compareceram diante do rei. Ambas afirmavam ser mãe da mesma criança. Salomão sugeriu dividir o bebê em duas partes, dando metade a uma e a outra metade à outra. Uma das mulheres
85 SANTOS, M.F. Direito previdenciário esquematizado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 46. aprovou tal solução facilmente,86 enquanto a outra implorou para que o filho fosse dado à rival.87 Com essa estratégia, Salomão pôde constatar qual delas era a impostora, entregando a criança à sua verdadeira mãe: aquela que queria o filho vivo, ainda que sob os cuidados de outra mulher. Israel ouviu a sentença e todos demonstraram muito respeito para com seu rei, “pois viram que possuía uma sabedoria divina para fazer justiça” (1Rs 3.28).
O que faria o Salomão previdenciário? Penso que o Juiz Salomão talvez designasse uma audiência de conciliação para promover um acordo sobre a guarda compartilhada. Claro que estou falando em linguagem figurada. Mas gostaria de insistir neste aspecto: a previdência distribui, reparte. E esta é uma premissa importante do meu raciocínio: estamos no campo do direito previdenciário, e não na esfera do direito de família ou de sucessões. É por isso que importa verificar, na Constituição da República, qual o preceito que cuida da pensão por morte no âmbito previdenciário.
4.6. ARTIGO 201, V, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
Parece-me, com todas as vênias, que é a norma veiculada pelo artigo 201, inciso V da Constituição da República a mais adequada para figurar como vetor
86 HOFFMANN, M. Um toque de solidariedade. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. v. 1. 184p .
87 “Ele não seja nem meu nem teu, cortai-o!” (1Rs 3.26).
para soluções interpretativas dentro do contexto securitário. É no artigo 201, inciso V, que se encontra o fundamento da pensão por morte. Dispõe o aludido preceito:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019) [...]
V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
Trago, para o universo jurídico, indagação que é habitual na esfera literária: há limites ao significado que se pode dar a uma norma? Parafraseando Umberto Eco,88 diria que, entre a intenção do legislador originário e a intenção do operador jurídico, existe, por assim dizer, a “intenção da norma”. Qual a “intenção da norma” do artigo 201, inciso V? Lendo o inciso V do artigo 201, vê-se que a Constituição assegura a pensão por morte do segurado, homem ou mulher, também ao companheiro ou companheira, sem entrar em pormenores.
88 “Ó meu senhor! Que lhe seja dado então o menino vivo, não o matem de modo nenhum!” (1Rs 3.26). Em outras palavras, a Constituição de 1988 não determina que a relação entre o segurado e seu companheiro ou companheira só será objeto de proteção securitária se não houver impedimentos jurídicos para o casamento nem delega a outrem a tarefa de preencher eventual lacuna na conformação do fato regulado. A ausência de detalhamento dessa relação impõe, portanto, certos limites exegéticos. Impede uma leitura tão descomprometida com as palavras do texto que faça com que o alcance da norma constitucional fique aquém de sua intenção, que é o que ocorre quando o legislador ordinário ou o intérprete resolve proteger um conjunto de pessoas menor do que aquele tutelado pela Constituição.
Parafraseando novamente Umberto Eco,89 diria que, entre a intenção inacessível da Assembléia Nacional Constituinte e a intenção do intérprete, está a intenção transparente do preceito constitucional, que invalida uma interpretação que limite a proteção securitária. Com todas as vênias possíveis, dados os limites do significado que se pode dar ao artigo 201, inciso V, parece-me demasiadamente restritiva uma interpretação que inclua uma condição não contemplada pela norma constitucional para o reconhecimento da união estável.
Que condição seria essa? A ausência de casamento ou de outra união estável. Poder-se-ia objetar que o caput do artigo
89 Eco, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 201 valeu-se da expressão “nos termos da lei”, o que daria, em tese, uma margem de liberdade ao legislador ou ao intérprete para estender ou restringir os marcos significativos dos conceitos inseridos no inciso V. Em contraposição a essa réplica, volto a me socorrer da crítica literária para lembrar que as palavras de um texto constituem um conjunto de evidências materiais que o leitor não pode ignorar. Cito, para ilustrar, o argumento levantado por Umberto Eco,90 que, embora paradoxal, prova que existem casos em que uma interpretação é decididamente ruim: se Jack, o Estripador, nos dissesse que fez o que fez baseado em sua interpretação do Evangelho segundo São Lucas, suspeito que muitos críticos voltados para o leitor se inclinariam a pensar que ele havia lido São Lucas de uma forma despropositada. Os críticos não voltados para o leitor diriam que Jack, o Estripador, estava completamente louco – e confesso que, mesmo sentindo muita simpatia pelo paradigma voltado para o leitor, [...] muito a contragosto eu concordaria com que Jack, o
Estripador, precisava de cuidados médicos.
Corroborando tal entendimento, lembro que a Constituição reverencia a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
90 Ibid. consagrando valores mais sintonizados com a realidade contemporânea do que aqueles agasalhados pela ordem jurídica anterior a 1988. Aquela, no entanto, já admitia o amparo social da companheira do segurado casado, como se verifica pela Súmula nº 159 do extinto Tribunal Federal de Recursos, que dizia ser “legítima a divisão da pensão previdenciária entre a esposa e a companheira, atendidos os requisitos exigidos”. Cotejando o artigo 201, inciso V, com outros dispositivos da Constituição, tais como o artigo 1º, inciso III — que erige a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito —, e com o artigo 3º, inciso IV — que elenca, no rol dos objetivos fundamentais de nossa República, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação —, talvez seja possível concluir que a união estável de duas pessoas possa ensejar a proteção securitária, em tese, ainda que uma delas seja casada ou tenha outra união estável. Tal interpretação garante melhor, inclusive, a universalidade da cobertura, veiculada no artigo 194, parágrafo único, inciso I.
Anoto que a pensão previdenciária é um substituto da remuneração do segurado falecido aos seus dependentes, os quais devem ser acudidos indistintamente, na ausência do provedor, a fim de que possam, em suma, continuar vivendo. Ora, por mais
louvável que seja resguardar a sociedade conjugal das agruras do adultério, parece-me indubitável que, na escala de valores consagrada pela Constituição em vigor, a subsistência humana configura preocupação mais elevada. Lembro que, mesmo no STF, houve divergência. O Ministro Barroso recordou que não havia lei proibindo uma pessoa que vivesse em relação estável ter outra união. A divergência no julgamento do RE 1.045.273/SE foi significativa, revelando como o tema é intrincado. Não tenho bola de cristal, mas sinto que o debate ainda não terminou. Foi a sociedade brasileira, dinâmica, plural e complexa, quem impôs a necessidade da discussão. Não foi o Judiciário. Acrescento, ainda, que, do ponto de vista do erário, tanto faz: não há impacto financeiro. Para o INSS, é indiferente pagar um salário mínimo para uma pessoa, digamos, ou meio salário mínimo para duas. Do ponto de vista dos dependentes desamparados, no entanto, o impacto (negativo) é tremendo. Há valores, de resto, mais importantes do que a moral e os ditos bons costumes. O amor, por exemplo. E a vida.
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A BUSCA DA EFETIVIDADE DA PROTEÇÃO SOCIAL: da necessidade da inserção da licença parental como direito humano fundamental à igualdade de gênero
Miguel Horvath Júnior 91 Juliana de Oliveira Xavier Ribeiro92
RESUMO A alteração da composição familiar e a crescente participação da mulher no mercado de trabalho impuseram modificações significativas no ambiente familiar e laboral. Os instrumentos sociais utilizados até o presente momento para a efetivação da proteção social diante da maternidade causam desigualdade de gênero provocando por vezes a preterição da mulher no mercado de trabalho e reforçando os papeis tradicionais entre pai e mão/ homem e mulher. O presente artigo fará busca histórica da origem da desigualdade de gênero, bem como como analisará os meios protetivos atuais que mantém a desigualdade de gênero apontando para a necessidade e urgente da inserção da licença parental com o direito humano fundamental e mecanismo da não discriminação de gênero.
PALAVRAS-CHAVE Direito humano fundamental, efetividade da proteção social, igualdade de gênero, licença parental, licença paternidade e salário maternidade.
91 ECO, U. Op. cit.
92 Doutor em Direitos Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) . Mestre em Direito Previdenciário pela PUC-Sp. Professor do Programa Stricto Sensu de Direito e da Graduação da PUC- SP . Membro da Academia Brasileira de Seguridade Social (ABDSS). Membro da advocacia Geral da União (Procurador Federal). Autor de obras jurídicas. 1. INTRODUÇÃO
Historicamente e legislativamente na sociedade ocidental e, especificamente, na sociedade brasileira, homens e mulheres ocupam nichos diferentes na divisão do trabalho, causando discriminação de gênero das mulheres em relação aos homens. Esta característica social impõe a busca pela redução de desigualdades, para que se possa conseguir a almejada justiça social. Na busca pela efetivação da justiça social através da redução de desigualdades a concessão da licença parental ganha múltiplas dimensões que serão analisadas neste artigo.
O disparate existente entre a licençamaternidade e a licença-paternidade configura um tipo de exemplo sobre essa diferenciação da divisão sexual do trabalho entre homens e mulheres na sociedade atual. Isso porque, a discrepância entre os tipos de licença tendo como critério apenas o gênero, reforça os papéis que a mulher deve cuidar da esfera reprodutiva sexual (filhos e casa), e que os homens devem estar nas esferas produtivas da sociedade, possuindo o seu trabalho maior status social agregado. Esta distorção social jurídica deve ser combatida. O presente artigo visa discutir a licença parental como mecanismo legal de promoção da igualdade de gênero nas relações trabalhistas-previdenciáriasfamiliares.
Busca o presente artigo analisar se é possível classificar a licença-parental como direito humano fundamental, a fim de efetivar um outro direito humano fundamental, que é a igualdade de gênero entre homens e mulheres. Além de investigar quais são os mecanismos jurídicos existentes no ordenamento jurídico pátrio em relação à licença parental. O tipo de pesquisa aplicada foi a bibliográfica e adotado o método dedutivo, que parte da premissa maior, para chegar até um ponto mais específico, que é a premissa menor. Ou seja, parte se da reflexão mais geral, que é a reprodução sexual do trabalho na sociedade, até chegar em um ponto mais específico, que é a necessidade da efetivação da licença parental como direito humano fundamental.
2. A HISTÓRICA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO ENTRE HOMENS E MULHERES
Historicamente, na sociedade ocidental em geral os homens – especialmente os brancos – ocupavam os espaços públicos e de poder, exercendo cargos como advogados, governantes, professores, médicos, dentistas, fazendeiros, dentre outros. Já as mulheres, especialmente as mulheres brancas ocupavam os nichos domésticos, sendo responsáveis pelas obrigações e os afazeres familiares e da casa, como cuidar dos filhos e limpar da casa.
Frisa-se, ainda, que tal divisão do trabalho através dos papeis de gênero
ressaltam ainda os critérios de raça. Isto porque no período da escravatura não só os homens negros eram escravizados, mas também as mulheres negras. Nesse sentido, a mulher negra já trabalhava fora de sua casa desde o período escravocrata, além de sofrer todas as outras violências e explorações advindas da escravidão. Desse modo, historicamente, a mulher negra não ocupa o mesmo lugar na divisão do trabalho na perspectiva de gênero do que a mulher branca.
Percebe-se então que a formação e a consolidação da proteção jurídica brasileira da mulher, pautou-se em uma perspectiva de que ela é a responsável pelo cuidado da casa e dos filhos, enquanto os homens seriam responsáveis por ocupar os espaços públicos e de poder no mundo do trabalho e político.
Tal quadro retrata a desigual divisão sexual do trabalho. A categoria divisão sexual do trabalho nasceu na França na década 1970, com a insurgência dos novos movimentos sociais, destacando-se o movimento feminista, que denunciava o quadro de opressão em que as mulheres viviam em relação aos nichos de trabalho, dentre outras reivindicações. Este conceito foi espalhado em outros países e movimentos de mulheres ao redor do mundo. Hirata e Kergoat (2007, p. 597599) explicam melhor o contexto do surgimento do termo divisão sexual do trabalho na França, afirmando que foi com a tomada de consciência de uma “opressão” especifica que teve início o movimento de mulheres, haja vista que se tornou evidente que uma enorme carga de trabalho é efetuada gratuitamente pelas mulheres. Trabalho realizado não somente para elas mesmas, mas para os outros, sempre em nome da natureza e do dever materno. A divisão sexual do trabalho como forma de distinção do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos é modulada histórica e socialmente, tendo como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado. A divisão sexual do trabalho se funda no princípio da separação que aponta existir trabalhos que são considerados de homens e trabalhos que são considerados de mulher e no princípio hierárquico, em que o trabalho do homem vale mais que o trabalho da mulher.
No Brasil, a divisão sexual do trabalho e a discrepância de papeis de gênero entre homens e mulheres projetamse no direito de família e no direito de proteção à infância e adolescência. Alguns desses direitos são tutelados pelo direito trabalhista-previdenciário, como por exemplo, a licença-paternidade e o salário maternidade. Tais benefícios legitimam os estereótipos de papeis de gênero, reforçando a função da mulher como cuidadora do lar e da família, e do homem como provedor financeiro da entidade familiar. Dessa maneira, faz-se importante compreender melhor como são estabelecidos tais prestações.
3. A LICENÇA-MATERNIDADE E A LICENÇA-PATERNIDADE: MECANISMO JURÍDICOS PARA A DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO
A licença-gestante enquanto expressão da proteção de natureza trabalhista está prevista no art. 7º, início XVIII da Constituição Federal assegurando direito ao afastamento de suas atividades laborais sem prejuízo do emprego e do salário pelo prazo de cento e vinte dias. Destacamos ainda que o direito à licença gestante por força da Lei n. 11.770/2008 facultou a possibilidade da extensão de tal licença por mais 60 dias desde que a empregada esteja vinculada a uma empresa que aderiu ao Programa Empresa Cidadã. Sem olvidar que o direito ao salário maternidade enquanto expressão da proteção de natureza previdenciária tem fundamento no artigo 201, inciso II da Constituição Federal e Lei n. 10.421/2002.
O ordenamento pátrio efetivou um grande avanço ao prever a proteção à maternidade adotiva com a edição da Lei nº 10.421, de 15 de abril de 2002. Os homens, por sua vez, tem acesso à licença paternidade quando do nascimento de seus filhos pelo período de 05 (cinco) dias, com base na previsão do art. 7°, inciso XIX, da Constituição Federal ao afirmar que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais a licença-paternidade, além de estar prevista no artigo 10, §1° no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, ao afirmar que até a promulgação de Lei Complementar que discipline o referido artigo 7°, inciso XIX da CF, o prazo da licença-paternidade é de 5(cinco) dias.
Posteriormente, com a edição da Lei n.º 11.770/2008, ficou determinado que a licença-paternidade poderia ser prorrogada por mais 15 (quinze) dias, nos casos em que a empresa seja inscrita no Programa Empresa Cidadã, mediante concessão de incentivo fiscal (podendo a empresa deduzir o valor pago do que deve a título de imposto de renda pessoa jurídica).
A licença paternidade tem natureza jurídica de direito trabalhista, enquanto o salário maternidade tem natureza de benefício previdenciário. A contingência social maternidade está prevista no rol do art. 201 da Constituição Federal de 1988 e Lei n. 10.421/2002.
Cabe aqui ressaltar que esse formato de proteção se encontra em descompasso com as transformações recentes na composição da família brasileira. Isso porque segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) o formato familiar heterossexual, de um pai e uma mãe e filhos, vem diminuindo cada vez mais números na estatística:
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) revelam
que, desde 2005, o perfil composto unicamente por pai, mãe e filhos deixou de ser maioria nos domicílios brasileiros. Na pesquisa de 2015, o tradicional arranjo ocupava 42,3% dos lares pesquisados. Uma queda de 7,8 pontos percentuais em relação a 2005, quando abrangia 50,1% das moradias. Por outro lado, novas tendências ganharam força. Em 2015, por exemplo, quase um em cada cinco lares era composto apenas por casais sem filhos (19,9%), enquanto que em 14,4% das casas só havia um morador. (IBGE, 2017, p. 18). Tais dados podem ser melhor compreendidos em face do avanço exponencial da mulher no mercado de trabalho, gerando a diminuição das taxas de natalidade. Ademais, com o reconhecimento legal do divórcio, outros tipos de arranjos também vêm ganhando contorno na realidade brasileira, como a família mosaica ou reconstituída.
A família reconstituída, mosaica ou pluriparental está diretamente ligada ao recomeço de uma nova entidade familiar com integrantes e descendentes de uma entidade familiar anterior, tendo em vista que será originada após a dissolução de um vínculo conjugal anterior. Segundo MADALENO ( 2019, p.11): “A partir do casamento podem surgir e é comum que surjam diferentes ciclos familiares experimentados depois da separação, ficando a prole com a mulher em uma nova conformação familiar, dessa feita uma entidade monoparental. Seguindo sua trajetória de vida e, sobrevindo ou não o divórcio, ela se casa novamente ou estabelece uma união estável e passa a constituir uma nova família, que não tem identificação na codificação civil, e passou a ser chamada de família reconstituída, mosaica ou pluriparental”.”
As diferenças quanto à proteção entre homens e mulheres reforçam os papéis e comportamentos de gênero que são historicamente considerados como de homens e mulheres. Sobre o tema destacamos reflexão de Luana Pinheiro, Marcelo Galiza e Natália Fontoura acerca desse desatino: [...] É nítido, portanto, que os benefícios previstos focalizam, prioritariamente, os direitos reprodutivos das mulheres, oferecendo poucas possibilidades aos homens de se comprometerem com o exercício da paternidade responsável, bem como ignorando a existência de famílias homoafetivas e monoparentais masculinas. Nesse contexto, nota-se que o aparato legal contribui no mínimo para a manutenção e a reprodução de uma realidade bastante desigual no que diz respeito à divisão sexual do trabalho reprodutivo. (FONTOURA; GALIZA; PINHEIRO; 2009, p. 854). O Conselho Nacional de Justiça (2015, p.8) destaca que o censo escolar de 2011 registrou que há 5,5 milhões de crianças e adolescentes no Brasil que não possuem o registro paterno na certidão de nascimento. Neste contexto é fundamental se criar mecanismo que não faça discriminação entre homens e mulheres, e que nem reforce estereótipos de papeis de gênero na divisão do trabalho.
Nesta medida surge de maneira exponencial a licença-parental, que na sua nomenclatura não traz subjugações sobre os papeis que homens e mulheres exercem no mundo do trabalho, bem como nos afazeres domésticos, além de ser instrumento de combate à não discriminação da mulher no mercado de trabalho. Isto porque, como a genitora possui maior tempo de afastamento do que o homem na licença, isso acaba por gerar distinção entre os sexos, fazendo que muitos empregadores, ainda que de maneira velada, prefiram contratar empregados homens.
4. A LICENÇA PARENTAL COMO MECANISMO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO BRASIL
A Constituição Federal de 1988 assegurou modificações importantíssimas no seio da família como a possibilidade do reconhecimento de filhos sem quaisquer restrições, a igualdade entre filhos, a proteção dos integrante da família individualmente, bem como a família plural. Além do direito de igualdade entre homem e mulher, nos termos do art. 5º, inciso I . “Nenhum princípio da Constituição provocou tão profunda transformação do direito de família quanto o da igualdade entre homem e mulher e entre os filhos. Todos os fundamentos jurídicos da família tradicional restaram destroçados, principalmente os da legitimidade, verdadeira summa divisio entre sujeitos e sub-sujeitos de direito, segundo os interesses patrimoniais subjacentes que protegiam, ainda que razões éticas e religiosas fossem as justificativas ostensivas. O princípio da igualdade de gênero foi igualmente elevado ao status de direito fundamental oponível aos poderes políticos e privados (art. 5º, I, da Constituição)” (LOBO NETO, p. 154).
O instrumento de proteção social para a efetivação do direito à proteção à família é a seguridade social. A seguridade social como direito social caracterizase pela humanização do direito e por sua desmaterialização, pois não se pode submeter o cumprimento e efetivação da proteção social às exigências econômicas pura e simplesmente. Enquanto técnica de proteção social e política social têm como finalidade precípua assegurar a paz social e o bem estar social através do asseguramento do bem estar individual de todos os integrantes da sociedade. A seguridade social visa garantir a mais justa distribuição dos bens entre os integrantes de uma sociedade, qualquer que seja sua estrutura organizacional econômica