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BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS NO BRASIL

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sistemas para que sejam aprimorados. Ao se analisar o Meu INSS e os diplomas normativos que o regem, observam-se enormes problemas que atingem não só o segurado ordinário, mas que trazem dificuldades até mesmo aos advogados previdenciaristas, que, em tese, estão mais bem preparados para lidar com esse sistema.

Exemplo disso é a Portaria DIRBEN/ INSS nº 902, de 23 de junho de 2021, que disciplina e a rotina de tratamento prévio de tarefas de reconhecimento inicial de direitos, que é feita exclusivamente por inteligência artificial. Esse diploma normativo é responsável pelo indeferimento de inúmeros requerimentos administrativos e não está disponível em nenhum canal oficial do governo. A única forma de ter acesso à portaria é pagando a assinatura do sítio eletrônico de um servidor da autarquia previdenciária.

Outra forma de ilustrar esse cenário hostil é observando-se as próprias mudanças institucionais dentro do INSS e, em consequência, do sistema do Meu INSS. A todo o tempo o governo cria e extingue secretarias dentro da autarquia, desloca funcionários de outros setores para tentar lidar com o déficit de servidores sem qualquer treinamento, aumenta ou diminui competências da autarquia e, como ocorreu nas últimas semanas recria o Ministério do Trabalho e da Previdência através de medida provisória. A desorganização institucional é extremamente confusa e frágil, o que provoca reflexos dentro das ferramentas do INSS, tal como o Meu INSS. Não é incomum, por exemplo, lidar com a instabilidade do sistema ou com mudanças na interface e nomenclatura de opções de serviço. Como exemplo, temos o ícone de acesso ao CNIS, que antes possuía o título de “Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS)”, depois passou a ser chamado de “Extrato de Contribuições” e, atualmente, é nomeado de “Extrato de Contribuições (CNIS)”.

Essa realidade se agrava principalmente ao pensarmos na população que mais depende do INSS, pois, se advogados tem dificuldade para entender essas contínuas mudanças organizacionais, quem dirá pessoas de baixa renda e idosos, com pouco acesso a tecnologias, com baixa escolaridade e, em sua grande parte, analfabetos funcionais e/ou digitais.

A tecnologia atende a uma análise exclusivamente matemática de eficiência, o que nem sempre converge com as necessidades do público que mais depende do INSS: “muito comumente os segurados e dependentes são hipossuficientes, não apenas do ponto de vista financeiro, mas igualmente nos aspectos informacionais e culturais, com idade elevada, baixo grau de instrução e por vezes dificuldades de compreensão dos itens da vida moderna”30 .

Ainda que a autarquia previdenciária

30 SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. Operação pente-fino e minirreforma previdência: Lei 13.846/2019. Porto Alegre: Paixão, 2019. f. 132-133. tenha firmado acordos de colaboração para ampliar o acesso dos segurados mais vulneráveis aos benefícios, tais como o INSS Digital (parceria OAB-INSS), esses acordos não são de amplo conhecimento da população e, mesmo que fossem, não seriam capazes de atender a todos que precisam. Há, nesse sentido, uma progressiva privatização do serviço informacional do INSS, que fica a cargo dos advogados, quando e se consultados.

Além disso, o INSS Digital acentua ainda mais as desigualdades regionais de acesso digital, pois depende de convênios individuais com cada uma das seções estaduais da OAB, o que, na prática, significa que estados como São Paulo e Minas Gerais tem acesso uma gama de serviços maior do que estados com menor índice de desenvolvimento.

Por fim, destaca-se que a plataforma do Meu INSS foi implantada e tem sido ampliada sem qualquer campanha governamental que informe a população de suas funcionalidades. O que se percebe são apenas eventuais propagandas que apenas indicam, de forma tímida, a existência da plataforma.

Diante desse cenário, é possível perceber que o INSS caminha por um ambiente cada vez mais inacessível para grande parcela da população, sobretudo considerando o enorme abismo que o iletramento digital impõe ao público da autarquia previdenciária.

Não se propõe, por óbvio, que o INSS deixe de usar a tecnologia na análise de benefícios. Há que se reconhecer que o sistema Meu INSS se provou bastante eficaz para vários casos, sobretudo com em virtude do número de requerimentos administrativos, a imposição de isolamento social na pandemia do COVID-19 e o consequente aumento na demanda por auxílio-doença. Todavia, é necessário um olhar crítico sobre como essa plataforma tem sido utilizada e seus reflexos na vida de milhares de brasileiros que, além de muitas vezes terem acesso precário à internet, não possuem conhecimento técnico suficiente para avaliar se o sistema está analisando seu caso sob a melhor ótica legal.

A implementação dos deveres e direitos políticos, civis e sociais dependem do livre acesso à informação sobre esses deveres e direitos. Em outras palavras, dependem da ampla disseminação e circulação da informação, que possibilite um processo comunicativo de discussão crítica sobre a forma como os problemas em torno da implementação desses deveres e direitos devem ser solucionados para a construção de uma sociedade mais justa e, portanto, com maiores oportunidades para todos os cidadãos31 .

Trata-se de direito fundamental do cidadão, definido no inciso XXXIII do art. 5º da Constituição: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular,

31 SILVA, Helena et al. Inclusão digital e educação para a competência informacional: uma questão de ética e cidadania e cidadania. In: Ci. Inf, vol. 34, n. 1, 2005, p. 28-36. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ ci/v34n1/a04v34n1.pdf>. Acesso em: 18 de agosto de 2021.

ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”32 .

Em um país com índices de desigualdade social e digital tão acentuadas, como demonstrado anteriormente, é imprescindível que o Meu INSS seja pensado não como a ferramenta principal de concessão de benefícios, mas sim como uma alternativa, pelo menos até que se promovam inciativas no sentido de fornecer aos segurados meios materiais e intelectuais para que efetivamente utilizem o sistema para o seu melhor interesse.

5. CONCLUSÃO

A partir desse artigo, pretendeu-se analisar como a exclusão digital no Brasil tem interferido no acesso a benefícios previdenciários pelo sistema informatizado do INSS (MeuINSS). Em uma primeira análise, foi feito um estudo acerca dos programas para o fomento do letramento digital, bem como o fornecimento de ferramentas tecnológicas à população e os deveres legais do Estado para combater a exclusão digital. Demonstrou-se que as iniciativas atuais do governo estão aquém das necessidades dos brasileiros. Em seguida, examinou-se o histórico do acesso a benefícios previdenciários no Brasil, demonstrando como as ferramentas tecnológicas auxiliaram a combater as enormes filas das agências do INSS. Por fim, foi explorado o funcionamento do Meu INSS e as dificuldades que os excluídos digitais enfrentam na concessão de benefícios previdenciários, levando em conta que, a partir da publicação do Decreto nº 10.410/2020, os atendimentos presenciais se tornaram uma exceção. Não se discute aqui os evidentes benefícios que a tecnologia pode trazer à Administração Pública na prestação de serviços à população, principalmente tendo-se em vista o isolamento que a pandemia do COVID-19 impôs a todos. Todavia, o uso de ferramentas tecnológicas deve ser pensado em uma perspectiva que permita o efetivo acesso do cidadão a seus direitos.

No caso dos benefícios previdenciários, que por sua natureza são concedidos a pessoas comumente hipossuficientes – inválidos e idosos –, a digitalização dos serviços do INSS deve ser ainda mais cautelosa no que diz respeito à exclusão digital, a fim de que esta não produza maiores impactos na exclusão social, por impedir o acesso a direitos básicos do cidadão.

32 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao>. Acesso em: 26 de agosto de 2021.

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ENSAIO SOBRE O MITO DA UNIVERSALIDADE DE ACESSO E COBERTURA E DA SOLIDARIEDADE DA PREVIDENCIA SOCIAL BRASILEIRA.

Heloísa Helena Silva Pancotti33 Luiz Geraldo do Carmo Gomes34

RESUMO O ensaio se propõe a discutir questões dogmáticas relacionadas ao direito previdenciário, sobretudo em sua principiologia. No âmbito do texto, propõe-se analisar como as estruturas de biopoder atuam recolhendo contribuições das classes sociais economicamente mais vulneráveis para sustentar os benefícios das classes mais abastadas. Para tanto será utilizada uma pesquisa realizada na cidade de São Paulo pela Rede Nossa São Paulo, que é realizada desde 2012 e traz dados sobre os 96 distritos da cidade de São Paulo, abordando indicadores de várias áreas da administração pública com base em dados oficiais publicados anualmente. Ao final, os indicadores serão contrapostos aos dados de renda, expectativa de vida, tomando por base o de melhores e piores índices para que se observe em quais distritos os indivíduos contribuem mais, por mais tempo e quais conseguem acesso e por quanto tempo aos benefícios, dividindo os indivíduos em razão da identidade de gênero.

PALAVRAS-CHAVE Solidariedade, Universalidade, Direito Previdenciário, Vulnerabilidades.

33 Mestre- UNIVEM. Doutorado em andamento UENP- Universidade Estadual do Norte do Paraná. Diretora Científica do IEPREV- Instituto de Estudos Previdenciários. Parecerista da Revista Científica da DPU. Conselheira Editorial da Revista de Prática Previdenciária da Editora Paixão. Autora de Livros, Capítulos de Livros e Artigos Científicos.

34 Doutor em Função Social do Direito, Mestre em Ciências Jurídicas. Post-doctorarte training no programa de LLM in Laws da School of Law na University of Limerick. Visiting Lecturer da School of Law da University of Limerick (Irlanda). Foi pesquisador visitante do Dipartimento di Scienze Giuridiche da Università di Bologna (Itália) e do Dipartimento Giurisprudenza da Università degli Studi di Siena (Itália). Segundo vice presidente da comissão de assuntos acadêmicos do IBDFAM- Instituto Brasileiro de Direito de Família e membro do IDB- Instituto de Direito e Bioética. Autor de diversos artigos e capítulos de livros. 1. INTRODUÇÃO

O Direito Previdenciário é um direito social fundamental, tem status constitucional e consta de vários tratados internacionais de direitos humanos em que o Brasil figura como signatário, incorporando-se ao sistema legislativo nacional com status de norma constitucional à partir de 1.988 por força do exposto no artigo 5º § 2º da CRFB que dispõe que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais.

É de suma importância na proteção de seus segurados e beneficiários em momentos de vicissitudes que possam impedir a manutenção do sustento e vincula de maneira obrigatória todos que percebem renda em razão de atividade laborativa. É cediço afirmar que incide sobre toda forma de renda obtida em razão da própria força do trabalho e tem natureza parafiscal. A maioria destes sistemas mescla inspirações no modelo alemão bismarquiano, que é mais primitivo, não universal e com menor rol protetivo e no modelo inglês, que visa a universalidade de atendimento, financiado por meio de impostos arrecadados de toda a sociedade.35

Quando as discussões acerca da reforma da previdência começaram a ganhar corpo na agenda política brasileira, trazia premissas discutíveis como a instabilidade financeira do sistema que

35 IBRAHIM, Fábio Zambite. 2020, p. 50. se dizia deficitário, muito embora não faltassem dados empíricos que revelassem o contrário36. Da mesma forma, o principal foco era o abandono total do modelo beveridgeano solidário, para a adoção do modelo capitalizado bismarquiano e com coberturas limitadas.

Esta foi a principal pedra de toque do plano reformista e o ponto em que não houve possibilidade de aprovação. Contudo, muito embora a solidariedade e a universalidade de cobertura e atendimento sejam princípios basilares que sustentam nosso sistema de previdência social, ao menos na teoria, se analisado pela perspectiva foucaultiana, é possível perceber que se trata de um modelo que perpetua as desigualdades sociais e de gênero, é mais eficiente quanto mais alta a classe dos segurados e é incapaz de oferecer proteção à toda sociedade, desconectando-se dos princípios aos quais deveria se ancorar. No primeiro capítulo, analisaremos os princípios da universalidade de cobertura e atendimento e da solidariedade ante os marcadores sociais revelados pelo Mapa da Desigualdade produzido na cidade de São Paulo, maior cidade do país, que oferece um microcosmos de amostragem suficiente para reproduzir formas de atuação em todo território nacional, em razão da diversidade de gênero, etnia e sócio econômica presentes. No segundo capítulo, serão contrapostas as regras de acesso aos benefícios pós reforma, que vinculam

36 MÜLLER, Piatã. 2016.

idade, tempo contributivo, capacidade de recolhimento em valores e em prazo suficientes, fidelidade contributiva, aos marcadores de renda, gênero, raça e distrito da cidade, o que oferecerá um panorama acerca da possibilidade de acesso aos benefícios e tempo de fruição. No terceiro capítulo, passaremos a abordar os resultados obtidos no primeiro e segundo capítulo aos dados de expectativa de vida, empregabilidade e adequação legal das pessoas trans- assim consideradas as pessoas transexuais e travestis- bem como à população intersexo. Ao final, pretende-se comprovar que a estruturação do modelo de seguridade social não é capaz de atender à sua finalidade de proteção ante a vulnerabilidade social ocasionada pela perda da renda e capacidade de prover o próprio sustento, assim como tem sido transformada, por meio das reformas legislativas, de maneira a servir como eficiente arrecadador das fontes de custeio nas camadas mais vulneráveis que, contudo, tem menores chances de acessar os benefícios e quando o fazem, se dá por tempo menor.

2. O MITO DA SOLIDARIEDADE E DA UNIVERSALIDADE DE COBERTURA E ATENDIMENTO

O primeiro princípio que se tem contato ao dedicar-se ao estudo do direito previdenciário é o da solidariedade. Previsto no artigo 3º, I da CFRB, deveria refletir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil que prevê a construção de uma sociedade livre justa e solidária, comprometida com a erradicação da pobreza, marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, assim como a promoção do bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Para tanto, delineou-se que o sistema de seguridade social do qual a previdência social faz parte, seria financiado por meio de uma ampla e diversificada fonte de custeio, que dentre outras rubricas, arrecadaria contribuições sociais, escalonadas de forma diferentes de acordo com a espécie de segurados e as faixas distintas de contribuição.

Com isso, acreditava-se buscar uma equidade na forma de participação e custeio. Contudo as faixas progressivas somente são aplicáveis aos trabalhadores formais, domésticos e avulsos (aqueles que geralmente trabalham mediante a intermediação de entidades sindicais ou órgãos gestores de mão de obra). 37

Num cenário de amplo desemprego, os informais (que podem ser enquadrados como contribuintes individuais e os facultativos (que não exercem atividade remunerada) se sujeitam ainda às regras antigas de tributação que preveem alíquotas fixas de 20% para o plano completo, 11% ´para o plano simplificado e 5% para o facultativo de baixa renda.38

37 Lei 8.212/91, artigo 20.

38 Lei 8.212/91, artigo 21. Sobre o plano relativo aos facultativos de baixa renda, é importante salientar que a necessidade de validação das contribuições periodicamente, burocratiza e inviabiliza o acesso aos benefícios, criando um limbo protetivo e consequente judicialização de demandas, já que as regras para pagamento de contribuições em atraso trazidas na EC 103/2019, ai incluídas as relativas ao desenquadramento do contribuinte na condição de baixa renda.

Uma outra observação é de suma importância para que se compreenda como a solidariedade atua de forma perversa quanto mais vulnerável o segurado, é que os benefícios previdenciários somente são acessíveis ao rol de segurados e seus dependentes.

Quanto menor a renda e maior a informalidade do trabalho desempenhado, menores as chances de manter-se segurado dado que no desenho legislativo atual, com o advento do Decreto nº 10.410/20 que alterou substancialmente o Decreto n º 3.048/99 (Regulamento da Previdência Social), somente são consideradas as contribuições realizadas pontualmente e em valor suficiente para fins de manutenção da qualidade de segurado. Da mesma forma, o beneficiário do auxílio acidente não mais mantém a qualidade de segurado em razão da percepção deste benefício, que é devido em caso de perda parcial da capacidade laborativa, sendo pago até o momento da aposentadoria. Ocorre que o benefício tem valor reduzido, caráter indenizatório, não sendo suficiente para subsistência.

Convém aqui fazer um aparte, dada a interdisciplinaridade proposta neste ensaio, salientar que verbas que possuem natureza indenizatória não são tributáveis, contudo, o legislador previdenciário notabilizou-se por colocar o segurado diante de uma escolha diabólica: ou contribui em razão da renda oriunda deste benefício, ou aceita a perda da qualidade de segurado, que o tornará inapto à percepção dos demais benefícios previdenciários.

É possível perceber, pensando numa sociedade estratificada por renda, que quanto maior a estabilidade, renda e longevidade, mais apto está o segurado a fruir dos benefícios previdenciários e com maior tempo de gozo.

Contrário senso, quanto menor a estabilidade empregatícia, a informalidade e a renda, menores são as chances de acesso ao rol de benefícios.

Como tudo que envolve o Brasil, dadas as peculiaridades advindas da imensa desigualdade social e heterogeneidade da distribuição de renda, há um complicador de suma importância, nesta correlação contributiva.

Desde que se instalou a instabilidade democrática nos idos de 2015/2016, a normatização das relações de trabalho sofreu imensa flexibilização e com a instabilidade econômica e muitos trabalhadores migraram do trabalho celetista ou regulado, para o trabalho precário ou uberizado.

Além dos trabalhos para aplicativos, os trabalhadores intermitentes, herança maldita da Reforma Trabalhista, passaram a pertencer à classe dos que, apesar de pertencer a uma categoria de trabalhador formal, percebe intervalos que podem durar até meses em sua jornada de trabalho. Deveria ser utilizada somente por empresas que exercem atividades sazonais, contudo, disseminou-se pelo país.

Quatro anos após a Reforma Trabalhista, o emprego informal aumentou, assim como o desemprego e os índices de trabalho formal continuam a despencar.

Houve a desmobilização dos sindicatos pelo sufocamento de seus recursos e a economia nacional se debela, em razão do desparecimento da circulação do dinheiro. O Mapa da Desigualdade reflete esse cenário e é possível alcançar essa dinâmica pela verificação dos dados colhidos ano a ano.

A população mais vulnerável vive em bairros mais densamente populados, de maioria feminina, preta ou parda, com menos oferta de emprego formal à população economicamente ativa (290 vezes menor que a média paulista), recebendo remunerações 3,8 vezes menor que a média paulista (R$ 7.620,00 em São Domingos e R$ 1.990,00 em Cidade Líder). O acesso ao transporte em massa é 194 vezes menor, o acesso à internet móvel e 2.513 vezes, as ocorrências de violência contra a mulher são 15 vezes maiores, contra a população LGBTQIAP+ é 56 vezes maior, A violência racial é 57 vezes maior, a taxa de homicídio de jovens é 24 vezes maior, a idade média ao morrer é absurdamente desigual (80,9 anos no Alto de Pinheiros e 58,3 anos em Cidade Tiradentes).39

Os casos de gravidez na adolescência são 60 vezes maiores em Marsilac com relação a Moema, bairro onde há a menor incidência de casos.40

No próximo capítulo, observaremos de que forma, essas diferenças abissais vão impactar a cobertura previdenciária dos segurados.

3. IMPACTOS DA DESIGUALDADE NA COBERTURA PREVIDENCIÁRIA.

Em primeiro lugar, para fins didáticos e metodológicos, cumpre esclarecer que no âmbito deste ensaio, apenas trataremos das regras transitórias relacionadas à Reforma da Previdência, posto que a menção a regras de transição, que são várias, levaria à superação dos limites de espaço do trabalho.

Adolescentes grávidas não possuem proteção previdenciária, por decorrência não perceberão auxílio maternidade, a menos que contribuam na condição de facultativo, o que é impensável para a população de baixa renda. Da mesma forma, as chances de que esteja exercendo atividade remunerada ou possua emprego são remotas.

39 Rede Nossa São Paulo (2021).

40 Ibidem. Isso não vem a ser um grande problema para as adolescentes residentes em Moema, bairro de classe alta, já que a renda familiar é capaz de suprir a proteção estatal.

Para a população vulnerável, uma nova adição ao grupo familiar pode significar fome. Não há previsão de qualquer auxílio assistencial (modalidade universal e acessível aos não contribuintes) de benefício de proteção à gestante ou ao nascituro com rendimentos condizentes com os do salário maternidade, que ofereça proteção equiparada.

Um outro ponto importante, é que a EC 103/20019 adotou uma nova sistemática para os benefícios programáveis. Passou a exigir idade mínima para os benefícios de tempo de contribuição, o que obriga o segurado a permanecer um tempo maior vertendo contribuições. Além de instituir a idade mínima, passou também a determinar percentuais mínimos incidentes no Salário de Benefício de 60% cumprida a carência da aposentadoria por idade, com possibilidade de acréscimo de 2% para cada ano de contribuição excedentes à carência.

As idades mínimas foram fixadas em 62 anos para a mulher e 65 para o homem.

Cabe aqui tecer algumas correlações entre os indicadores do mapa da desigualdade e a nova redação constitucional dos benefícios programáveis da previdência social. Na região periférica (Anhanguera, Iguatemi) a oferta de emprego formal é 290 vezes menor, o que significa dizer que os residentes na periferia possuem maior chance de desemprego o de exercer atividades informais, que são complicadores à manutenção da fidelidade contributiva ao sistema previdenciário. Com a intermitência contributiva, as chances de atingir a carência necessária para a aposentadoria programável (15 anos para a mulher e 20 anos para o homem) é menor. Exceder esse tempo contributivo, o que garantiria melhor renda mensal inicial de benefício, é uma tarefa ainda mais árdua.

Retomando o raciocínio, se a menor renda se concentra na região periférica, assim como o emprego informal, a população periférica contribui mais, pois não tem acesso às escalas contributivas progressivas. Contribuem em percentuais que são aplicados de forma indistinta tanto ao piso quanto ao teto contributivo.

Seria redundante apontar que o impacto financeiro desta contribuição em uma família de baixa renda é superior ao impacto em uma família de alta renda, sobretudo no RGPS com o teto contributivo. É cediço dizer que a incidência da contribuição previdenciária nas menores rendas dos trabalhadores informais incide sobre a totalidade, enquanto para os trabalhadores com remunerações acima do teto, apenas parcialmente.

Assim, evidencia-se ainda mais a forma como o desenho do sistema contributivo previdenciário é mais cruel quanto maior a vulnerabilidade.

Se tomarmos como exemplo a incidência de casos de violência contra a mulher, ante os índices 42 vezes maior em Guaianazes, com relação ao Alto de Pinheiros, antevemos que a mulher que tiver maior dificuldade em se manter segurada ao regime de previdência social, terá menores chances de percepção de beneficio por incapacidade temporária decorrente das lesões resultantes de violência.

Novamente, todas as mulheres trabalhadoras formais ou informais devem obrigatoriamente contribuir ao sistema previdenciário, contudo, as condições sócio econômicas exercem importante força excludente para as classes mais baixas e vulneráveis da população economicamente ativa. O mesmo raciocínio é aplicável à população LGBTQIAP+ e à população preta e parda.

A contraposição dos indicadores demográficos, econômicos e sociais das populações pertencentes às classes altas e baixas, escancara que nem mesmo a Previdência Social escapa à lógica do biopoder, que assegura que as classes vulneráveis permaneçam à margem da sociedade, sem acesso à mesma proteção que os demais membros da sociedade, reforçando os processos excludentes, numa lógica absolutamente paradoxal à finalidade constitucional de assegurar a proteção face às vicissitudes, diminuir a pobreza e fomentar o desenvolvimento social.

Na análise dos benefícios programáveis, encontramos a maior lacuna protetiva na aposentadoria por idade. A diferença da idade ao morrer de um morador do distrito de Alto de Pinheiros é 80,9 e de cidade Tiradentes é e 58,3.

Levando-se em consideração a confluência de todos os índices já analisados, o segurado do Alto de Pinheiros homem, terá vertido um número maior de contribuição e em valores maiores, dada a estabilidade financeira decorrente da menor dificuldade em obter renda formal. Permanecerá por mais tendo recebendo as parcelas previdenciárias, enquanto que o segurado de Cidade Tiradentes, se conseguir atingir a carência necessária para acesso ao beneficio de aposentadoria por idade, não atingirá a idade.

As contribuições arrecadadas daqueles que não conseguiram reunir as condições necessárias para fruir dos benefícios previdenciários não são passíveis de devolução, integram o fundo que sustenta todo o sistema.

E isso não é tudo. A pandemia do COVID-19 revelou uma lógica terrível a que muitos não tinham se dado conta. Muitas pessoas em seu passado gozaram de maior facilidade em verter contribuições ao sistema, mas foram solapadas pela crise democrática e econômica vivenciada pelo país, enquanto a flexibilização das relações de trabalho era vendida como solução mágica a uma nação desigual. Muitos contribuintes que não são mais segurados da previdência social possuem um passado contribuído com bastante regularidade, com contribuições superiores às exigidas para acender aos benefícios programáveis, contudo não tiveram a chance de readquirir a qualidade de segurado, morreram jovens e seus dependentes foram abandonados à própria sorte.

O fundo de previdência social foi abastecido com as contribuições que não geraram qualquer contraprestação.

4. MARGENS DA EXCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA: A VIDA PRECÁRIA DA TRANSGENERIDADE.

Um grupo social merece um capítulo à parte porque não pode ser sequer objeto de estudos confiáveis, posto que o Estado brasileiro não reconhece a sua existência. São os transgêneros. Buscando aqui delimitar o objeto de estudo para a população composta pelas mulheres transexuais e as travestis, que possuem no Brasil a expectativa de vida de 35 anos41 .

Isso ocorre devido aos processos de exclusão que se iniciam ainda no seio da família42, que teme e resiste em aceitar essa identidade de gênero que escapa dos padrões hegemônicos hetero e cisnormativo.

O tensionamento nas relações familiares, via de regra expulsa a pessoa trans da proteção do seio familiar e coloca na indigência.

Nesta posição, é comum que não

41 BORTONI, Larissa. (2017).

42 GOMES, Luiz Geraldo do Carmo. (2019, p. 32). tenham condições de dar continuidade aos estudos ou de disputar vagas de empregos formais. Um grande número sobrevive em decorrência da prostituição e nesta toada, expostos a maior violência física, mental, risco biológico e de encarceramento, o que acaba por diminuir severamente sua expectativa de vida.

Existe um imenso debate acerca dos dados relativos a expectativa de vida, sobretudo por parte do atual governo federal de natureza conservadora, contudo, não há qualquer intenção da inclusão nos formulários do próximo recenseamento público de campos capazes de identificar e quantificar a população trans brasileira. Os dados concernentes à expectativa de vida da população trans tem sido obtidos por meio de levantamentos de organizações independentes, como a ANTRA- Associação Nacional dos Transgêneros, ou a TransRespect que procuram traçar o mapa da violência que assola o grupo social em questão.43 Este fato dificulta o desenho de políticas públicas que visem combater os processos excludentes e identificar possíveis benefícios assistenciais direcionados ao grupo social em específico. Do ponto de vista prático, tomandose por base que os dados etários refletem a realidade, até porque inexistem outros que possam ser objetos de estudo, os benefícios programáveis somente são acessíveis aos poucos indivíduos capazes de vencer a barreira da dificuldade para a

43 TURATTI JUNIOR. (2018, p.101).

empregabilidade formal e superação da expectativa de vida ao morrer.

É uma tarefa hercúlea para este grupo social manter-se ativo contributivamente ao regime de previdência social dadas as particularidades que envolvem a forma com que obtém renda. No Brasil não há regulamentação da atividade de prostituição. Outra dificuldade intransponível é, superada a dificuldade contributiva, atingir os 62 anos se mulher e 65 se homem. Novamente o sistema previdenciário evidencia como a população mais vulnerável está fora do tecido protetivo. É inegável perceber que, inobstante sua finalidade de amparar face às contingências sociais, o sistema de previdência social seja ausente naquilo que diz respeito à população mais vulnerável.

5. CONCLUSÃO

A interpretação crítica do direito permite perceber as falhas na construção das políticas públicas. Nosso sistema previdenciário que parecia escapar à lógica perversa que mantem os índices de desigualdade e subalterniza e invisibiliza os sujeitos, na verdade alimenta essas forças. Isso não é de se estranhar, posto que o modelo neoliberal, que vem regendo as reformas que pretendem minimizar a atuação do Estado na proteção social para que a parte correspondente a tais políticas no orçamento da União possa ser explorado pelo mercado, atua também na previdência social. Muito embora tenha sobrevivido à conversão total do sistema à lógica da capitalização, o endurecimento das regras de acesso, recrudescimento das fórmulas de cálculo servem à máquina que produz desigualdade social. Ocorre que o impacto da flexibilização e da austeridade incide com muito mais força, quanto maior o grau de vulnerabilidade social. É preciso repensar o modelo à partir de uma nova ótica. A da vulnerabilidade social. Quanto maior o nível de vulnerabilidade, mais facilitada a regra de acesso, seja por intermédio da diminuição dos patamares e tempo contribuído, seja pelo estabelecimento de regras de cálculo mais favoráveis.

A apuração de regras baseadas em médias costuma favorecer mais quem está no topo, ao custo de excluir os da base. Essa máxima é a antítese da prática da promoção da justiça social, da construção de uma nação solidária, comprometida com a erradicação da pobreza e da eliminação de toda forma de pobreza e de preconceito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORTONI, Larissa. Expectativa de vida de transexuais é de 35 anos , metade da média nacional. 20 jun. 2017. Disponível em https://www12.senado.leg. br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuaise-de-35-anos-metade-da-media-nacional. Acesso em 26 nov. 2021.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1.988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm . Acesso em 25 nov. 2021.

BRASIL. Decreto 10.410 de 30 de junho de 2020. Altera o Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto 3.048/99. Disponível em http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10410. htm . Acesso em 26 nov. 2021.

BRASIL. Emenda Constitucional 103 de 12 de novembro e 2019. Altera o Sistema de Previdência Social e estabelece regras de transição e disposições transitórias.

BRASIL, Lei nº 8.212/1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, dá outras providências. Disponível em http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212compilado.htm . Acesso e 26 nov 2021.

GOMES, Luiz Geraldo do Carmo. Famílias no Armário. Parentalidades e sexualidades divergentes. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2019.

IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 25ªed. Revista e Atualizada. Niterói: Editora Ímpetus, 2020.

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PANCOTTI, Heloísa Helena Silva. Previdência Social e Transgêneros. Proteção previdenciária, benefícios assistenciais e atendimento à saúde para os transexuais e travestis. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2020.

REDE NOSSA SÃO PAULO. Mapa da Desigualdade 2021. Disponível em https://www.nossasaopaulo.org.br/2021/10/21/mapa-da-desigualdade2021-e-lancado/ . Acesso em 26 nov. 2021.

TURATTI JUNIOR, Marco Antônio. O reconhecimento jurídico-social da identidade LGBTI+. Curitiba: Appis Editora, 2018.

NOVA PREVIDÊNCIA E O ESVAZIAMENTO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Marco Aurélio Serau Junior44

RESUMO O estabelecimento da “Nova” Previdência pela Emenda Constitucional 103/2019 redundou na pretensão de refundação do Sistema de Seguridade Social, em particular do ramo previdenciário. Inclusive, é bastante palpável a percepção de que foi suprimida a adjetivação de “social” que há décadas acompanha os contornos da instituição de Previdência. Por isso, neste artigo procuramos abordar um aspecto específico da construção do novo modelo de Previdência advindo da Emenda Constitucional 103/2019, no qual fica evidente o esvaziamento da garantia de legalidade e, por consequência, a própria minoração da ideia dos direitos previdenciários enquanto direitos fundamentais.

PALAVRAS-CHAVE Direito. Previdência. Reforma. Legalidade.

44 Professor da UFPR – Universidade Federal do Paraná, nas áreas de Direito do Trabalho e Previdenciário, na graduação e no Mestrado. Doutor e Metre em D. Humanos (USP). Diretor Científico do IEPREV – Instituto de Estudos Previdenciários. Consultor. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. Advogado. Consultor. 1.INTRODUÇÃO

Em 13/11/2019 foi promulgada a Emenda Constitucional 103, que trouxe a assim chamada Nova Previdência.

A Filosofia, a Linguística e a Ciência Política (muito mais do que o Direito) conferem importância e valor às expressões e palavras utilizadas na Política ou no cenário político.

Assim, ao se buscar criar e estabelecer uma “Nova” Previdência, percebe-se que a perspectiva da Reforma Previdenciária redundou na pretensão de refundação do Sistema de Seguridade Social, em particular do ramo previdenciário. Inclusive, é bastante palpável a percepção de que foi suprimida a adjetivação de “social” que há décadas acompanha os contornos da instituição de Previdência.

De toda sorte, a simples existência de uma “Nova Previdência” impõe que esta seja objeto de reflexão e estudos por parte de todos aqueles e aquelas que se dedicam ao estudo do Direito Previdenciário.

Neste artigo procuramos abordar um aspecto específico da construção do novo modelo de Previdência advindo da Emenda Constitucional 103/2019, no qual fica evidente o esvaziamento da garantia de legalidade e, por consequência, a própria minoração da ideia dos direitos previdenciários enquanto direitos fundamentais45 .

45 Consoante matriz teórica que desenvolvo de longa data: SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos fundamentais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2020.

Este ponto é observado tanto em relação ao RGPS como quanto ao RPPS: em ambos estes segmentos previdenciários é palpável o nítido esvaziamento do princípio da legalidade. A metodologia utilizada para a elaboração deste artigo é eminentemente analítico-bibliográfica, consistindo em exame da normatividade previdenciária, bem como da literatura que lhe é correspondente.

2. O CENÁRIO NORMATIVO OBSERVADO APÓS A CRIAÇÃO DA NOVA PREVIDÊNCIA

Para que possamos compreender como a Nova Previdência se constrói a partir de uma ideia de esvaziamento do princípio da legalidade é necessário, metodologicamente, examinar em um passo anterior qual o cenário normativo que adveio da promulgação da Emenda Constitucional 103/2019. As mudanças paradigmáticas impostas pela Emenda Constitucional 103/2019 faziam vislumbrar, para um horizonte próximo à sua promulgação, uma intensa produção legislativa, de sorte a adequar, dentre outras, as leis 8.212/1 e 8.213/91 às novas perspectivas trazidas pela Reforma Previdenciária. Porém, isso não se concretizou, devido a alguns fatores bem marcantes.

Um fator importante reside no advento da crise sanitária internacional, logo no princípio de 2020, justo poucos meses após a promulgação da Emenda Constitucional 103/2019.

Esse aspecto, de relevância inegável, drenou muito das forças sociais, econômicas e políticas, e direcionou a quase totalidade dos esforços da coletividade, inclusive a produção normativa, para atender as demandas sociais urgentes advindas da pandemia de COVID-19. Nesse sentido, daí por diante a ênfase e a prioridade normativa foi a criação, através de Leis ou Medidas Provisórias, de intensa e profícua legislação emergencial, de que a criação do benefício do auxílio emergencial46 pela Lei 13.982/2020 (continuado pelas Medidas Provisórias 1.000/2020 e 1.039/2021) parece ser o maior exemplo.

Outro fator relevante de não se ter observado uma significativa produção legislativa que tenha levado a cabo a concretização da Nova Previdência reside no fato de que a própria Emenda Constitucional 103/2019 trouxe diversas regras transitórias, uma espécie de tecnologia jurídica utilizada para dar conta de inúmeras adaptações do modelo previdenciário anterior para o modelo previdenciário atual47 .

46 Embora o auxílio emergencial não se trate de tema previdenciário, compõe a macroestrutura da Seguridade Social, por se tratar-se de benefício de natureza jurídica assistencial: SERAU JR., Marco Aurélio. Auxílio Emergencial. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021.

47 Tenho defendido que a Emenda Constitucional 103/2019 estrutura-se a partir de um complexo eixo estrutural, dotado de novas regras permanentes, às quais se somam regras de transição (esperadas e necessárias diante de tamanha mudança paradigmática imposta ao sistema previdenciário) e regras transitórias, responsáveis pelo enlace e trânsito do modelo previdenciário anterior ao modelo futuro: SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos fundamentais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2020.

Um exemplo bastante claro da estratégia de utilização das regras transitórias, dentre tantos outros que poderiam ser elencados, reside no artigo 27, da própria Emenda Constitucional 103/2019:

Art. 27. Até que lei discipline o acesso ao salário-família e ao auxílioreclusão de que trata o inciso IV do art. 201 da Constituição Federal, esses benefícios serão concedidos apenas àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 1.364,43 (mil, trezentos e sessenta e quatro reais e quarenta e três centavos), que serão corrigidos pelos mesmos índices aplicados aos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

§ 1º Até que lei discipline o valor do auxílio-reclusão, de que trata o inciso IV do art. 201 da Constituição

Federal, seu cálculo será realizado na forma daquele aplicável à pensão por morte, não podendo exceder o valor de 1 (um) salário-mínimo. § 2º Até que lei discipline o valor do salário-família, de que trata o inciso IV do art. 201 da Constituição

Federal, seu valor será de R$ 46,54 (quarenta e seis reais e cinquenta e quatro centavos).

A explicação disso provavelmente se encontra na Ciência Política, sendo fácil perceber que o receio de variáveis político-eleitorais modificarem os rumos da Nova Previdência fez com que se optasse, politicamente, por já inserir, no próprio corpo da Emenda Constitucional 103/2019, inúmeras questiúnculas que não possuem estofo constitucional e cabem, com muito maior propriedade, na hierarquia normativa infraconstitucional.

Esse fenômeno é o que denominamos de neoconstitucionalismo às avessas ou constitucionalização invertida das normas de Previdência Social48 .

Outro fenômeno normativo que pode ser observado em relação à escassez normativa pós-Nova Previdência consiste no que batizei de portarização do Direito Previdenciário49, um eufemismo leve e evidentemente irônico para indicar que tem sido utilizada excessivamente a faculdade regulamentar para o tratamento jurídico dos temas previdenciários, possivelmente extrapolando em alguns casos o conteúdo do art. 84, IV, da Constituição Federal, que limita o poder regulamentar ao mero papel de viabilizar o cumprimento e a execução das leis – nunca permitindo que se transformem o Regulamento, as Portarias, as Instruções Normativas e quejandos em leis autônomas que inovam o ordenamento jurídico.

O ápice desse fenômeno de portarização do Direito Previdenciário consiste na edição do Ofício Circular

48 SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos fundamentais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2020.

49 SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. A Portarização do Direito Previdenciário. Gen Jurídico: Acessível em: http://genjuridico.com.br/2020/05/15/portarizacao-dodireito-previdenciario/ . 450/2019 e do Decreto 10.410/202050 , que auto declaradamente buscaram “regulamentar a Emenda Constitucional 103/2019”, pulando o espaço natural que seria reservado à lei em sentido estrito.

Mas, tal qual indicado que seria o objeto de estudo deste artigo, o fenômeno do esvaziamento do princípio da legalidade parece ser a tônica característica da construção infraconstitucional da chamada Nova Previdência.

Os exemplos são inúmeros e reiterados, os quais passaremos a indicar e pontuar nos tópicos seguintes.

3. A PRETENSÃO NORMATIVA DAS INTERPRETAÇÕES ADMINISTRATIVAS DA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA: COMUNICADO DIVBEN 2/2021 E PORTARIA 1.382/2021 – RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS EM ATRASO

Algumas situações que fazem parte da construção da Nova Previdência evidenciam uma pretensão de dar às hipóteses de interpretação administrativa da legislação previdenciária verdadeiro caráter normativo, em franca (e inconstitucional) substituição à lei.

Obviamente a interpretação dada pela Administração Pública possui um papel relevante e, em certa medida, vinculante a seus servidores. Mas a exegese praticada pela repartição pública

50 SERAU JUNIOR, Marco Aurélio (coord.). Comentários ao Novo Regulamento da Previdência Social. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021a.

nunca poderá sobrepujar o limite do poder regulamentar, nunca poderá ocupar o espaço destinado primacialmente à lei em sentido estrito.

Quanto a isso podemos avaliar a Portaria INSS nº 1.382, de 19/11/2021, que tem como escopo regulamentar os efeitos do recolhimento das contribuições previdenciárias em atraso, especialmente para as categorias de contribuinte individual e segurado especial que recolhem facultativamente.

Compreendemos que a publicação dessa Portaria foi uma tentativa de dar maior grau de “legalidade” ao conteúdo que já existia no famigerado Comunicado DIVBEN 2/2021, sobretudo porque há notícia de diversas decisões judiciais apontando a ilegalidade e inconstitucionalidade daquele ato normativo infralegal. Ainda que a utilização da forma de jurídica de “Portaria” possa dar maior grau de juridicidade ao conteúdo pretendido pela autarquia previdenciária – limitar os efeitos jurídicos do recolhimento de contribuições previdenciárias em atraso – certo é que esse objetivo não é alcançado, pois a Portaria em tela extrapola o poder regulamentar que é atribuído ao Poder Executivo, conforme o art. 84, inciso IV, da Constituição da República. Especificamente em relação à questão tributária envolvida neste tema, temos que o art. 97, inciso V, do Código Tributário Nacional, dispõe que somente a lei poderá estabelecer cominação de penalidades para ações ou omissões do contribuinte:

Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:

V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas; A Portaria 1382/2021 obviamente exacerba também este aspecto do Direito Tributário nacional.

De outra parte, há que se fazer a distinção necessária entre obrigação tributária e crédito tributário.

A obrigação tributária nasce com a ocorrência do fato gerador (a prestação da atividade laborativa pelo segurado contribuinte individual), conforme os artigos 113, § 1º, e 116, inciso I, ambos do CTN. O crédito tributário, que corresponde ao montante que deve ser pago pelo contribuinte, é elemento diverso da obrigação tributária (embora dela decorrente), e pode ser adimplido em momento diverso, conforme compreensão dos artigos 139 e 140 do CNT. Além disso, a Portaria 1.382/2021 acaba propiciando uma espécie de interpretação retroativa sobre a legislação tributária que é retroativa, o que é vedado pelos artigos 144 e 146, do Código Tributário Nacional (além do art. 23 da LINDB, c.c. art. 2º, inciso XIII, da Lei 9.784/1999):

Art. 144. O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada. Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução. A retroatividade da interpretação administrativa posterior (e prejudicial ao segurado/contribuinte) ocorre aqui de modo sutil, a partir da modificação do entendimento sobre os efeitos jurídicos do recolhimento das contribuições previdenciárias recolhidas posteriormente ao fato gerador. A Portaria 1382/2021, ao limitar os efeitos jurídicos da contribuição previdenciária recolhida em atraso, contraria, portanto, uma série de dispositivos legais e constitucionais.

Por outro lado, também é importante registrar que qualquer conduta dos segurados no sentido de regularizar sua situação previdenciária (contributiva) tem total consonância com o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial, previsto no art. 201, caput, do Texto Constitucional. Por fim, pode-se apontar que a Portaria INSS 1382/2021 também viola o princípio de vedação de tributo com efeito de confisco, tratado no art. 150, inciso IV, da Constituição da República. Esse ato normativo infralegal cria uma situação em que ocorre o recolhimento de contribuições previdenciárias por parte do segurado, ajustando sua situação contributiva, e disso não decorre praticamente nenhum efeito jurídicoprevidenciário relevante, pois a Portaria visa coibir o aproveitamento dessas contribuições para efeito de carência, obstando também o acesso às regras de transição estabelecidas na Emenda Constitucional 103/2019 assim como a eventual configuração do direito adquirido.

4. A TESE DA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA ÚNICA E SUA “ANULAÇÃO” ATRAVÉS DE NOTA TÉCNICA DA AUTARQUIA

Outro ponto onde resta nítido o esvaziamento do princípio da legalidade reside no tratamento dado pelo INSS à tese da contribuição previdenciária única, a qual possibilita um ganho efetivo no cálculo da RMI dos aposentados, e acabou por ser objeto de evidentemente ilegal Nota Técnica por parte da autarquia previdenciária. Com efeito, repercutiu muito negativamente entre a Advocacia Previdenciária o teor da Nota Técnica

7/2021-Pres-INSS, referente às medidas que deveriam ser adotadas no âmbito da autarquia previdenciária contra a, assim conhecida, tese da contribuição única. Apesar de ainda não haver notícia sobre a adoção formal da referida Nota Técnica pela Presidência do INSS, seu conteúdo pode e deve ser discutido dentro de uma perspectiva técnico-científica.

Sem entrar no mérito da controvérsia acerca da tese da contribuição única, alguns apontamentos de cunho estritamente técnico-jurídico devem ser apresentados para elucidar esse debate, colocando-o em bases mais adequadas.

O primeiro ponto a ser indicado reside no fato de que a tese da contribuição única não configura abuso de direito, aventura jurídica, ilegalidade ou oportunismo, como quer transmitir a mencionada Nota Técnica. Trata-se de uma interpretação plenamente possível, deduzida a partir do art. 26, § 6º, da Reforma Previdenciária (Emenda Constitucional 103/2019).

Caso essa interpretação seja considerada contrária à perspectiva do equilíbrio financeiro e atuarial (art. 201, caput, da Constituição Federal), bem como à regra da contrapartida (art. 195, § 5º, também da Constituição Federal), é possível, e até mesmo adequado, que seja suprimida do ordenamento jurídico.

Todavia, para que isso se dê, é necessário que seja respeitado o processo legislativo e o Estado Democrático de Direito, o qual exige a publicação de lei ou, ao menos, edição de Medida Provisória, que venha a alterar a atual sistemática de cálculo dos benefícios previdenciários.

Uma simples sugestão de interpretação administrativa da legislação previdenciária não possui o condão de alterar e muito menos diminuir os direitos previdenciários dos segurados, por expressa violação aos estreitos limites do poder regulamentar (art. 84, IV, da Constituição Federal). Há aqui, manifesta inconstitucionalidade, também por afronta ao princípio da legalidade (art. 37, caput, da Constituição Federal), que norteia a atuação da Administração Pública.

Outro ponto polêmico constante da mencionada Nota Técnica 7/2021 reside na sugestão para suspensão dos processos administrativos de concessão de aposentadorias em que possa constar a tese da contribuição única, medida que não encontra respaldo legal e constitucional, diante do princípio da eficiência da Administração Pública (art. 37, caput, da Constituição Federal) bem como do princípio da impulsão oficial dos processos administrativos (art. 2º, inciso XII, da Lei 9.784/1999).

Ademais, não se encontra na Lei 9.784/1999 – Processo Administrativo Federal – qualquer dispositivo que justifique a suspensão cautelar desse tipo de processo administrativo. Os requerimentos administrativos de benefícios previdenciários possuem prazos específicos previstos em lei, os quais devem ser cumpridos nos termos do art. 41-A, § 5º, da Lei 8.213/1991, com as peculiaridades que foram adicionadas a partir do acordo firmado entre Ministério Público Federal e INSS, homologado pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do Tema 1066 da repercussão geral. Vale sublinhar a necessidade de cumprimento dos prazos legais para análise dos requerimentos administrativos, pois somente com a negativa da concessão (ou, em determinadas condições, a demora indevida na conclusão do processo administrativo) é possível o ingresso na via judiciária, nos termos da jurisprudência consolidada do STF (RE 631.240).

5. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE EM RELAÇÃO AOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA

Também em relação aos regimes próprios de previdência social, destinados aos servidores públicos, observa-se a perspectiva de esvaziamento da ideia de reserva de lei na estruturação da Nova Previdência.

Tome-se como exemplo o Decreto 10.620, publicado em 5/2/2021, e que promove alterações estruturais no RPPS dos servidores públicos federais, especialmente a atribuição das competências sobre “concessão e a manutenção das aposentadorias e pensões do regime próprio de previdência social da União no âmbito da administração pública federal”.

O ponto mais polêmico reside no conteúdo do art. 1º, p. único, II, do Decreto 10.620/2021:

I - não dispõe sobre o órgão ou a entidade gestora única do regime próprio de previdência social, no âmbito da União, de que trata o § 20 do art. 40 da Constituição; e

O art. 2º do Decreto 10.620/2021 não afirma expressamente que esteja criando um órgão gestor de RPPS, mas que apenas estabelece uma “centralização gradual de atividades de concessão e de manutenção das aposentadorias e pensões” dos servidores e servidoras, seguida de uma segunda etapa, em que haverá a “facilitação da transferência” destas atribuições para o órgão que será criado nos termos do art. 40, § 20, da Constituição Federal:

Art. 2º Até que seja instituído em lei e estruturado o órgão ou a entidade gestora única de que trata o § 20 do art. 40 da Constituição, a ação da administração pública federal será direcionada à:

I - centralização gradual das atividades de concessão e de manutenção das aposentadorias e pensões, nos termos do disposto neste Decreto; e II - facilitação da transferência posterior ao órgão ou à entidade gestora única de que trata o § 20 do art. 40 da Constituição.

Portanto, embora o Decreto 10.620/2021 mencione que “não dispõe sobre o órgão tratado no art. 40, § 20, da Constituição Federal”, compreendemos que a violação a esse dispositivo constitucional ocorre frontalmente. Vejase a redação da aludida norma:

Art. 40. (...) § 20. É vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social e de mais de um órgão ou entidade gestora desse regime em cada ente federativo, abrangidos todos os poderes, órgãos e entidades autárquicas e fundacionais, que serão responsáveis pelo seu financiamento, observados os critérios, os parâmetros e a natureza jurídica definidos na lei complementar de que trata o § 22. Essa inconstitucionalidade se dá tanto pelo fato, mais evidente, de estabelecer dois órgãos gestores para o RPPS dos servidores públicos federais (SIPEC e INSS), tanto como pelo fato de estipular essa alteração estrutural mediante Decreto, em flagrante desrespeito à exigência de Lei Complementar fixada pelo art. 40, § 22, do Texto Constitucional: § 22. Vedada a instituição de novos regimes próprios de previdência social, lei complementar federal estabelecerá, para os que já existam, normas gerais de organização, de funcionamento e de responsabilidade em sua gestão, dispondo, entre outros aspectos, sobre: I - requisitos para sua extinção e consequente migração para o Regime Geral de Previdência Social; II - modelo de arrecadação, de aplicação e de utilização dos recursos; III - fiscalização pela União e controle externo e social; IV - definição de equilíbrio financeiro e atuarial; V - condições para instituição do fundo com finalidade previdenciária de que trata o art. 249 e para vinculação a ele dos recursos provenientes de contribuições e dos bens, direitos e ativos de qualquer natureza; VI - mecanismos de equacionamento do deficit atuarial; VII - estruturação do órgão ou entidade gestora do regime, observados os princípios relacionados com governança, controle interno e transparência; VIII - condições e hipóteses para responsabilização daqueles que desempenhem atribuições relacionadas, direta ou indiretamente, com a gestão do regime; IX - condições para adesão a consórcio público; X - parâmetros para apuração da base de cálculo e definição de alíquota de contribuições ordinárias e extraordinárias.

O Decreto 10.620/2021 revogou o Decreto 9.498/2018, que centralizava no Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão a competência sobre a concessão e a manutenção de aposentadorias e de pensões do RPPS dos órgãos da Administração Pública Federal direta integrantes do SIPEC - Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal. Atualmente se noticia a tramitação de Projeto de Lei Complementar tratando do tema que até então é objeto do Decreto 10.620/2021, medida que seria suficiente a corrigir a flagrante inconstitucionalidade desse diploma regulamentar.

6.CONCLUSÃO

Após dois anos da vigência da assim proclamada Nova Previdência, reflexões do ponto de vista estrutural e um primeiro balanço dessa nova “experiência” de proteção social já se tornam possíveis e necessários.

Do ponto de vista legislativo, a esperada legiferação que seria necessária à adequação das leis 8.212/91 e 8.213/91 aos novos paradigmas previdenciários acabou não ocorrendo.

A uma por conta do advento da crise sanitária internacional, que mobilizou todos os esforços normativos para o atendimento das graves demandas sociais que daí vieram; a duas porque a própria Emenda Constitucional, através da estratégia do uso proliferado de regras transitórias, já imprimou, de imediato, as mudanças e adaptações na legislação previdenciária; a três porque se verificou, muito intensamente, a utilização intensiva da produção de normas infralegais para cuidar destes novos temas previdenciários, cujo ápice parece ser o Decreto 10.410/2020, cujo escopo autoproclamado foi de “regulamentar a Reforma Previdenciária”.

Mas, tal qual indicado na Introdução deste estudo deste artigo, o fenômeno do esvaziamento do princípio da legalidade parece ser a tônica característica da construção infraconstitucional da chamada Nova Previdência e há inúmeros e reiterados exemplos, os quais foram retratados nas linhas acima.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos fundamentais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2020.

Auxílio Emergencial. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021.

Comentários ao Novo Regulamento da Previdência Social. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021a.

MUDANÇA DE PERSPECTIVA NA TUTELA DO DIREITO SÓCIO FUNDAMENTAL À PREVIDENCIÁRIA SOCIAL: ENTERRANDO O DISCURSO ECONÔMICO

Rodrigo Monteiro Pessoa51 Jair Aparecido Cardoso52

RESUMO Ao longo do tempo, as reformas previdenciárias na América Latina sustentaram razões econômicas que sempre estiveram conectadas aos modelos de crescimento econômico e austeridade, além de estarem restritas às políticas que almejavam o cumprimento dos objetivos macroeconômicos, sendo vista comumente como gasto público que, para todos os fins, preocupava a sustentabilidade do orçamento público a longo prazo. As próprias razões ampliativas da seguridade social na doutrina moderna determinam que as preocupações das transformações sociais

51 Pós-doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (Faculdade de Direito de Ribeirão Preto). Doutor em Direito pela Universidad de Chile. Mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Direito Previdenciário pela UNIDERP. Graduado em Direito pelo UNIESP e em Administração pela UFPB. Membro Pesquisador do Grupo de Pesquisa (CNPQ) “A transformação do Direito do Trabalho na sociedade pós-moderna e seus reflexos no mundo do trabalho” da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP). Membro-pesquisador da “Rede Ibero-americana de Pesquisa em Seguridade Social (CNPQ). Professor de Direito do Trabalho, Direito Previdenciário e Economia. Endereço eletrônico: rpjurista@gmail.com. Artigo financiado pelos projetos de pesquisa FONDECYT INI N.º 11200968 e DIUFRO EP N.º DI20-0071.

52 Professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – USP (FDRP/USP). Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP. Graduado e mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP. Pós-graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC -Campinas. Líder do grupo de pesquisa GEDTRAB, da FDRP/USP, cadastrado no CNPq sob o nome de “ A transformação do Direito do Trabalho na sociedade pós-moderna e seus reflexos no mundo do trabalho”. Membro do grupo de pesquisa RETRABALHO, Rede de grupos de pesquisas em Direito e Processo do Trabalho (CNPQ). Presidente da Comissão de Cultura e Extensão da FDRP/ USP (2019/2021), Presidente do Programa de Pós-Graduação da FDRP/USP (2021/2023). Autor de artigos e livros na área. colocam em xeque os modelos solidários, propondo alternativas que já provaram não resultar na melhor opção para a tutela previdenciária compatível com a dignidade humana, como é o caso da capitalização individual. Neste trabalho, argumenta-se sobre a necessidade do resgate da perspectiva previdenciária a partir da sua classificação como direito humano e fundamental, buscando a diversidade das formas ampliativas na sua efetivação, como forma de abandonar o discurso econômico apocalíptico na preservação deste importante direito sócio fundamental. Para isto utiliza-se da revisão bibliográfica, delimitando as variáveis qualitativas (previdência social, direitos humanos e fundamentais, formas de custeio, tutela estatal) para, por meio do método hipotético dedutivo, formular a hipótese de que a alternativa para o discurso fatalista é abraçar novas formas de financiamento dos sistemas securitários que sejam compatíveis com as mudanças sociais comumente apontadas como problemas. Assim, testando esta hipótese por meio da análise do discurso, pôde-se chegar à conclusão de que há mecanismos alternativos que permitem seguir tutelando a previdência social de forma a garantir subsistência digna, se é vista desde esta perspectiva, como direito humano e fundamental, por meio da ampliação do custeio em vias que incluam aqueles que estão apartados da proteção destes sistemas, gerando maior equilíbrio financeiro e aumentando o espectro de pessoas protegidas, ou seja, unindo o discurso dos direitos à sustentabilidade financeira. Isto não significa que esta seja hipótese verdadeira, apenas se trata de hipótese deduzida que ainda não foi falseada.

PALAVRAS-CHAVE Previdência social; custeio; direito sócio fundamental; lógica ampliativa.

1.INTRODUÇÃO

Durante as sucessivas reformas que os sistemas de seguridade social vêm sofrendo na América Latina, nos últimos anos, a presença do discurso fatalista, principalmente no tocante à previdência social, é parte do arsenal de motivos que forçam as mudanças para buscar “melhor equilíbrio financeiro”, desafogando os cofres públicos na materialização deste direito prestacional.

As reformas previdenciárias, especificamente, no bloco latino americano, sempre estiveram conectadas aos modelos de crescimento econômico e austeridade, além de estarem restritas às políticas que almejavam o cumprimento dos objetivos macroeconômicos, sendo vista comumente como gasto público que, para todos os fins, preocupa a sustentabilidade do orçamento público a longo prazo.

Obviamente, isto se relaciona diretamente com as sucessivas crises econômicas, constantes e muito mais agressivas no continente latino americano, pelo fato de que os países deste bloco são de desenvolvimento tardio, impossibilitando que haja reservas financeiras capazes de mitigar os efeitos das crises econômicas com a adoção de políticas anticíclicas que exijam resposta do Estado com investimento.

Além disso, as próprias razões ampliativas da seguridade social na doutrina moderna determinam que as preocupações das transformações sociais colocam em xeque os modelos solidários, propondo alternativas que já provaram não resultar na melhor opção para a tutela previdenciária compatível com a dignidade humana, como é o caso da capitalização individual.

Sendo assim, neste trabalho argumenta-se sobre a necessidade do resgate da perspectiva previdenciária a partir da sua classificação como direito humano e fundamental, buscando a diversidade das formas ampliativas na sua efetivação, como forma de abandonar o discurso econômico apocalíptico na preservação deste importante direito sócio fundamental.

Para isto utiliza-se da revisão bibliográfica, delimitando as variáveis qualitativas (previdência social, direitos humanos e fundamentais, formas de custeio, tutela estatal) para, por meio do método hipotético dedutivo, formular a hipótese de que a alternativa para o discurso fatalista é abraçar novas formas de financiamento dos sistemas securitários que sejam compatíveis com as mudanças sociais comumente apontadas como problemas. Assim, testando esta hipótese por meio da análise do discurso, pôdese chegar à conclusão de que há mecanismos alternativos que permitem seguir tutelando a previdência social de forma a garantir subsistência digna, se é vista desde esta perspectiva, como direito humano e fundamental, por meio da ampliação do custeio em vias que incluam aqueles que estão apartados da proteção destes sistemas, gerando maior equilíbrio financeiro e aumentando o espectro de pessoas protegidas, ou seja, unindo o discurso dos direitos à sustentabilidade financeira. Isto não significa que esta seja hipótese verdadeira, apenas se trata de hipótese deduzida que ainda não foi falseada.

Na construção do argumento dividiuse a pesquisa em três partes: a primeira trata das reformas previdenciárias na América Latina e sua conexão com os modelos de crescimento econômico. A segunda, determina a necessidade de tratamento do discurso reformista em matéria previdenciária com a perspectiva dos direitos humanos e sócio fundamentais, para a preservação deste importante direito de segunda dimensão dos direitos fundamentais a partir do dever do Estado na sua garantia ótima. A terceira e última tecerá as conclusões sobre o argumento hipotético dedutivo.

Findas as considerações iniciais, passa-se à primeira parte.

2. REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS NA AMÉRICA LATINA: O DISCURSO ECONÔMICO

Se se busca entender o que ocorreu com a maioria dos países da América Latina e do Caribe desde o surgimento dos sistemas de seguridade social até os dias de hoje, entender-se-á que eles iniciaram esforços importantes para a reforma institucional das suas economias (CRUZ SACO; MESA-LAGO, 1998, n.p.). Exatamente, das suas economias. Este enfoque é fundamental para entender que o discurso reformista no plano econômico incluiu as reformas securitária dentro desta reestruturação. O objetivo principal não era o tratamento securitário e sim como mitigar os efeitos das crises com miras à retomada do crescimento.

Portanto, as reformas econômicas apontadas são resultado de políticas de ajuste estrutural que tentam redirecionar o crescimento econômico ao longo de um caminho sustentado e estável, em forte oposição aos fracassos da década de 1980 (CRUZ SACO; MESA-LAGO, 1998, n.p.).

Os eixos da reestruturação apontam para o estabelecimento do livre mercado, eliminando todos os tipos de subsídios e controles de preços, enxugando o governo, com desregulamentação substancial das atividades econômicas, e privatização de serviços do Estado, incluindo os sistemas de seguridade social(CRUZ SACO; MESALAGO, 1998, n.p.).

Sem possibilidade de reação frente às crises econômicas, os países do bloco latino americano enfrentam verdadeira encruzilhada para manter o nível de gastos públicos e garantir a concretização do conteúdo prestacional das políticas públicas.

Os impactos na previdência são de fácil visualização. Com a crise econômica dos anos 70, conhecida como crise do petróleo, houve aumento da inflação, recessão e alta nos preços do petróleo e seus derivados, ocasionando desestabilização das economias, aumento do desemprego e desequilíbrio

dos sistemas de seguridade social pela crise de financiamento (já que tratamos de sistemas custeados com a lógica do emprego formal, como o caso do sistema de repartição solidário no Brasil)(KRUGMAN; OBSTFELD, 2006, p. 570). A crise da dívida derivou-se desta crise do petróleo, e se estendeu até os anos 90, pelo fato dos países avançados emprestarem somas consideráveis aos países em vias de desenvolvimento, descobrindo posteriormente a sua incapacidade de devolução dos montantes devidos (KRUGMAN; OBSTFELD, 2006, p. 8). Nos anos 80, conhecida como a década perdida, outra crise econômica estabeleceu cenário de aumento da dívida externa, ocasionando reflexos econômicos internos com altas taxas de inflação e quedas ainda maiores nos empregos e de remuneração do trabalho(KRUGMAN; OBSTFELD, 2006, p. 671). Tudo o que os sistemas previdenciários que são custeados por contribuições dos trabalhadores formais não desejam. Para mitigar estes efeitos, os países que emprestaram recursos para a superação da crise exigiram reformas estruturais na economia para garantir a devolução dos valores concedidos. Para tanto, estabeleceu-se regras para o alcance dos objetivos macroeconômicos por meio da estabilização dos preços, tornando os países mais competitivos na era globalizada; crescimento econômico orientado para o mercado externo, acabando com as políticas de substituição de importações; e o aumentoda renda e o padrão de vida dos cidadãos(CRUZ SACO; MESA-LAGO, 1998, n.p.). Toda esta filosofia orientada para o mercado fez com que os sistemas de seguridade social, em especial a esfera previdenciária, passa-se a ser reformulado por meio de uma mudança interinstitucional da responsabilidade financeira do serviço(CRUZ SACO; MESALAGO, 1998, n.p.). A modificação introduz novos tipos de serviços no mercado e mudanças procedimentais que afetam as finanças, organização e entrega dos serviços em matéria de seguridade social.

Como consequência, vemos que a economia vê as alterações reformistas orientadas para o mercado de forma positiva, pelo fato de que os mercados domésticos se desenvolvem, inclusive com aumento significativo do tamanho relativo do setor privado na participação da seguridade social, pois se aumenta tanto o capital físico (por exemplo, instalações médicas privadas) quanto o financeiro (devido à ação dos administradores de fundos de pensão privados). Ademais, se modifica a estrutura financeira da cobertura de saúde e velhice, abandonando a função redistributiva tradicional e adotando o princípio de pagamento por serviço orientado para o mercado (CRUZ SACO; MESA-LAGO, 1998, n.p.). Bom para a economia, ruim para os(as) segurados(as). Nesta toada, se redefine a participação do governo, que é o devedor do direito sócio fundamental à seguridade social, porque se assiste ao seu distanciamento da provisão direta de serviços, deixando-os nas mãos do mercado e, consequentemente, reduzindo a capacidade discricionária dos governos em redistribuir renda para garantir um nível mínimo de proteção aos cidadãos, o que, por sua vez, afeta a percepção dos cidadãos quanto à perda de propriedade e de seus direitos(CRUZ SACO; MESALAGO, 1998, n.p.).

Todas as diretrizes econômicas exigidas estão alinhadas com o Consenso de Washington de 1989, que prega redução dos gastos públicos, disciplina fiscal, livre comércio, liberalização, privatização e desregulamentação (em especial laboral)(ASTUDILLO MOYA, 2012, p. 52). O problema, é que por outro lado, coloca os direitos sociais em verdadeira encruzilhada, porque são vistos como entraves à economia.

Logo, as reformas securitárias orientadas pelas mudanças econômicas (na lógica orientada para o mercado), apenas foca nas consequências econômicas para os Estados quando o tema é o gasto público, e assim, assistimos às reformas 100% orientadas pelos modelos de desenvolvimento adotados. Seja no nascimento da seguridade social na América Latina, seja nas suas transformações.

Para poder demonstrar o que aqui se argumenta, acompanha-se a pesquisa realizada por Mejía Ortega e Franco Giraldo, que confeccionaram tabelas a partir da revisão da literatura reformista na América Latina, demonstrando que para cada modelo de desenvolvimento, houve enfoque político que impactou na seguridade social. Ou seja, a política social esta diretamente atrelada aos objetivos econômicos de desenvolvimento, sejam os sistemas pioneiros, intermediários, tardios e os cenários reformistas (MEJÍAORTEGA; FRANCO GIRALDO, 2007). A pesar desta particularidade na América Latina, que gera barreiras na autonomia do gasto público e na disponibilidade de recursos para a materialização da própria previdência social, temos ainda outros fatores que são comuns a todos os países, e que igualmente vêm causando a reflexão para as mudanças na arquitetura dos sistemas previdenciários.

Seguindo o apontado por Cortés González(2009, p. 26 a 31) sobre as razões que justificam repensar a arquitetura da seguridade social, todos estão conectados a problemas de custeio. Quanto ao crescimento da informalidade, inclusive já comentado, os sistemas pensados na lógica do emprego formal carecerão de financiamento. Com respeito à flexibilização e o surgimento de zonas grises em matéria laboral, a dúvida quanto ao enquadramento para fins de custeio também pode levar a problemas no mesmo sentido de financiamento. A internacionalização das economias e as migrações podem influenciar no

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