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e tecnica
- 11. $\ formaG&o de novo tip0 de sabev, - que requev a uni&o de ciSncia e tkcnica
fi revoIuC&o cientifica cria o cientista
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0 resultado do processo cultural que passou a ser denominado "revoluqio cien- tifica" foi uma nova imagem do mundo que, entre outras coisas, prop& problemas reli- giosos e antropologicos nio indiferentes. Ao mesmo tempo, representou a proposta de nova imagem da ciincia: aut6noma, publi- ca, controlavel e progressiva.
Mas a revoluqio cientifica foi, preci- samente, um processo: um processo que, para ser compreendido, deve ser dissecado em todos os seus comDonentes. inclusive a tradiqiio hermCtica, a alquimia, a astrologia ou a magia, posteriormente abandonadas pela ciincia moderna, mas que, bem ou mal, influiram sobre sua ginese ou, pel0 menos, sobre seu desenvolvimento inicial. E preci- so, contudo, ir mais alCm, ji que outra ca- racteristica fundamental da revolucio cien- tifica t a formaciio de um saber - a ciincia. precisamente - que, ao contririo do saber medieval, reune teoria e pratica, ciincia e te'cnica, dando assim origem a um novo tip0 de "douto", bem diferente do filosofo me- dieval, do humanista, do mago, do astrolo- go, ou tambtm do artesio ou do artista da Renascenca. Esse =nova tip0 de douto gerado pela revoluqio cientifica, precisamente, nio 6 mais o mago ou o astrologo possuidor de um saber privado ou de iniciados, nem o professor universitario comentador e inter- prete dos textos do passado, e sim o cientis- ta fautor de nova forma de saber, publico, controliivel e progressivo, isto C, de uma forma de saber que, para ser validado, ne- cessita do continuo controle da praxis, da experiincia. A revolu@o cientifica cria o cientista experimental moderno, cuja expe- riincia e' o experimento, tornado sempre mais rigoroso por novos instrumentos de medida, cada vez mais precisos. E o novo
douto freqiientemente opera fora (se nio at6 mesmo contra) das velhas instituiq6es do saber, como as universidades.
Antes do period0 de que estamos tra- tando, as artes liberais (o trabalho intelec- tual) eram distintas das artes mechicas. Estas eram "baixas" e "vis"; implicando o trabalho manual e o contato com a mate- ria, identificavam-se com o trabalho servil. As artes meciinicas eram consideradas in- dignas de um homem livre. Mas, no proces- so da revoluqio cientifica, essa separaqio foi superada: a experiincia do novo cientis- ta 6 o experimento - e o experimento exi- ge uma strie de operaq6es e medidas.
Assim, fundem-se numa so coisa o no- vo saber e a uniio entre teoria e pratica, que freqiientemente resulta na cooperaqio en- tre cientistas, por um lado, e tCcnicos e ar- tesios superiores (engenheiros, artistas, hi- draulicos, arquitetos etc.), por outro. Foi a pr6pria idtia do saber experimental, publi- camente controlavel, que mudou o status das artes mechicas.
ArevoluG&o cientifica: fus~o da t&cv\ica COM? o saber
Sustentou-se que a ciincia moderna, isto 6, o saber de carater publico, coopera- tivo e progressivo teria nascido primeiro com os artesios superiores (navegantes, en- genheiros de fortificaq6es, tCcnicos das ofi- cinas de artilharia, agrimensores, arquitetos, artistas etc.) para depois influir na transfor- maqio das artes liberais.
Contra esta tese se disse que a ciincia nio foi feita pelos artesiios e pelos engenhei- ros, mas justamente pelos cientistas, por Calileu, Kepler, Descartes etc. Esti t a tese do historiador da ciincia A. Koyrt, o qua1 sustentou que a nova balistica nio foi in- ventada por operarios e artilheiros, mas con- tra eles, e que Calileu nio aprendeu sua pro- fissio das pessoas que trabalhavam nos
arsenais e nos canteiros de obras de Veneza, mas que, ao contrario, ele a ensinou a eles. E. de fato. niio foram os tCcnicos do arsenal que criaram o principio de inircia.
Claro, Galileu ia ao arsenal e, como ele proprio diz, o coloquio com os ticnicos do arsenal "muitas vezes ajudou-me na in- vestigaqiio da raziio de efeitos niio apenas maravilhosos. mas tambCm rechditos e quase imprevistos". As ttcnicas, os acha- dos e os processos presentes no arsenal aju- daram a reflexiio tedrica de Galileu. E pro- puseram novos problemas para ela: "E verdade que, por vezes, at6 deixou-me con- fuso e desesperado de saber como penetrar e seguir aquilo que, longe de toda opiniiio minha, o sentido demonstra-me ser verda- deiro."
Foram os oculistas que descobriram o fato de que duas lentes, dispostas de mod0 adequado, aproximam as coisas distantes, mas niio foram os oculistas que descobri- ram por que as lentes funcionam assim. E niio foi nem mesmo Galileu. Para isso. foi precis0 Kepler: foi ele quem compreendeu as leis de funcionamento das lentes. Como tambCm niio foram os tCcnicos que escava- vam po~os que compreenderam por que a agua das bombas niio subia alCm dos dez metros e trinta e seis centimetros. Foi ~reci- so Torricelli para demonstrar que a altura maxima de trinta e quatro pis (= 10,36 metros) para a coluna d'agua no interior do cilindro revela simplesmente a press50 total da atmosfera sobre a superficie do pr6prio POSO. E quantos eximios navegantes nio ti- veram de lutar contra as altas e baixas ma- rks? E, no entanto, so com Newton chegou- se a uma boa teoria das marks (embora Kepler ja a houvesse roqado; note-se, po- rCm, que Galileu dera-lhe explicaqio equi- vocada). Eis, portanto, duas teses sobre o fato da reaproxima@o entre tLcnica e sa- ber. entre artes5o e intelectual. fen6meno tipico da revoluqiio cientifica. Pois bem, nos pensamos que essa aproximagiio, at6 mes- mo a fusiio da tCcnica com o saber, consti- tuem a propria ciihcia moderna. Uma cih- cia que se baseia no experimento, por si mesma, exige as te'cnicas de comprova@o, as operaq6es manuais e instrumentais que servem para controlar uma teoria, sendo as- sim saber unido B tecnologia.
Mas, entiio, quem criou a citncia? A res- posta mais plausivel parece-nos a de KoyrC: foram os cientistas que criaram a cihcia. Mas ela surgiu e se desenvolveu tambe'm porque encontrou toda uma base tecnolo- gica, toda uma sCrie de maquinas e instru- mentos que constituiam quase que uma ba- se natural de testes, oferecendo tCcnicas de comprovaqiio e talvez at6 propondo novos, profundos e fecundos problemas. Galileu niio aprendeu a dinimica com os ticnicos do arsenal, assim corno, mais tarde, Darwin niio aprendera a teoria da evoluqiio com os criadores de animais. Mas, da mesma for- ma como Darwin falava com os criadores, tambim Galileu visitava o arsenal. E esse fato niio C de somenos importincia. 0 tCc- nico C aquele que sabe que e7 amiude, sabe tambCm como. Mas C o cientista que sabe por que. Em nossos dias, um eletricista sabe muitas coisas sobre as aplicaq6es da corrente elCtrica e sabe como implantar um sistema, mas que eletricista conhece por que a cor- rente funciona do mod0 como funciona ou sabe alguma coisa sobre a natureza da luz?
fi cizncia ~oderna r&ne teoria e pktica
Em seus Discursos acerca de duas no- vas cizncias, Galileu escreve: "Parece-me que a pratica freqiiente do vosso famoso arsenal, senhores venezianos, p6e um amplo campo de filosofar aos intelectos especulativos, particularmente aquela parte que envolve a mecinica, B medida que, aqui, toda sorte de instrumentos e maquinas C posta em movi- mento por grande numero de artifices, entre os quais, pelas observaqdes feitas por seus an- tecessores e por aquelas que, por sua propria percepqiio, sem cessar eles proprios conti- nuam fazendo, forqosamente encontramos alguns muito peritos e de finissirno discur- SO." E entre estes "homens muito peritos e de finisismo discurso" devemos lembrar tam- bCm Brunelleschi, Ghiberti, Piero della Fran- cesca, Leonardo, Cellini; como tambCm Leon Battista Alberti, Valturio de Rimini (autor de urn livro sobre maquinas militares), Bi- ringuccio (autor de uma Pirotecnia) etc.
A cihcia C obra dos cientistas. A ciEn- cia experimental convalida-se atravCs dos experimentos. Estes se realizam mediante tCcnicas de teste resultantes de operaq6es manuais e instrumentais com e sobre os objetos. A revoluqiio cientifica 6 precisamen- te aquele processo historic0 do qua1 decor-
re a ciincia experimental, vale dizer, urna nova forma de saber, nova e diferente do "saber" religioso, do "metafisico", do "as- trologico e magico" e tambtm do "ticnico e artesanal".
A ciincia moderna, assim como se con- figurou ao fim da revolugio cientifica, nio C mais o saber das universidades, mas tam- bCm niio pode ser reduzida tampouco 2 pratica dos artesiios. Trata-se precisamen- te de um novo saber que, reunindo teoria e pritica, por um lado leva as teorias ao con- tat0 com a realidade e as torna publicas, controlaveis, progressivas e fruto de cola- boragio, e, por outro lado, leva para den- tro do saber e do conhecimento (conce- bendo-os como banco de prova das teorias e como sua aplicagio) muitos achados das "artes mechicas" e artesanais, conferin- do a estas um novo status epistemologico antes at6 do que social. E C obvio que a gi- nese, o desenvolvimento e o sucesso dessa nova forma de saber anda de bragos dados com nova figura de douto ou sabio e tam- bCm com novas instituigoes, dedicadas pel0 menos ao controle das varias partes desse saber em formagiio. 0 "cientista" nio C mais o douto que sabe latim, que leu os li- vros, antigos ou ensina em urna universida- de. E muito mais aquele que pertence a urna sociedade cientifica ou a urna academia, as quais, junto com observatorios, laborato- rios e museus, constituem as novas insti- tuig6es do saber, fora e por vezes contra as Universidades.
E, no entanto, apesar dessas rupturas, nio devemos nos esquecer dos elementos de continuidade que ligam a evolugio cientifi- ca ao passado. Trata-se do retorno a auto- res e textos que podiam contribuir para a nova perspectiva cultural: Euclides, Arqui- medes, Vitruvio, Heron e outros.
0s instr~mentos cientificos CO~O parte integrante do saber cientifico
0 reencontro do elo entre teoria e pra- tica, isto 6, entre saber e tCcnica, esta vincu- lado a (e, em parte, se identifica com) outro fen6meno evidente criado pela revolugio cientifica: estamos falando do fen6meno pe- lo qua1 o nascimento e a fundagio da ciin- cia moderna acom~anham-se de subito cres- cimento da instrumentagiio.
No principio do Quinhentos a instru- mentagio reduzia-se a nio muitas coisas li- gadas i observagio astron6mica e ao le- vantamento topografico; em meciinica, usavam-se alavancas e polias. No entanto, logo depois, no curso de poucas dCcadas, surgem o telescopio de Galileu (1610), o mi- croscopio de Malpighi (16601, de Hooke (1665) e de van Leeuwenhoek; o pindulo cicloidal de Huygens C de 1673; a descrig2o que Castelli fez do term6metro a ar de Ga- lileu t de 1638; o term6metro a agua de Jean Rey C de 1632 e Magalotti inventou o ter- m6metro a ilcool em 1666; o bar6metro de Torricelli C de 1643; Robert Boyle descre- veu a bomba pneumatica em 1660.
Pois bem, o que interessa em urna his- toria das idCias n5o C tanto o elenco dos ins- trumentos (que poderia continuar), mas muito mais a compreensgo de que, no curso da revolugio cientifica, os instrumentos cientificos tornam-se parte integrante do saber cientifico: nio existe o saber cientifi- co separado e, ao seu lado, os instrumen- tos: os instrumentos estio dentro da teoria. tornando-se teorias eles proprios. Em urna nota manuscrita do acadimico experimen- tal Vicente Viviani, encontramos o seguin- te: "Perguntar a Gonfia (um habil soprador de vidro): qua1 dos licores esta mais pronto a fervilhar com o calor, isto 6, a receber o calor do ambiente." E. mais adiante. vere- mos a corajosa operagio de Galileu, conse- guindo, atravCs de um mar de obstaculos, levar um instrumento de "vis meciinicos" como a luneta para dentro do saber e usa-lo com objetivos cognoscitivos, embora ini- cialmente o divulgasse para finalidades pra- ticas, como as militares. E, por seu turno, na introdugio 2 primeira edigio dos Princi- pios, Newton se opes 2 distingio entre "me- ciinica racional" e "meciinica prhtica", de- fendida pelos "antigos".
Mas vamos nos aprofundar um pou- co mais na teoria ou nas teorias dos instru- mentos que podem ser detectadas no inte- rior da revolugio cientifica. A primeira idCia sobre os instrumentos aue aflora nos escritos de alguns grandes expoentes da revolucio cientifica C a visiio dos instru- mentos como ajuda e potencializagiio dos sentidos. Galileu afirma que, no uso das ma- quinas antigas, como a alavanca e o plano inclinado, "a maior contribuigio que nos trazem os instrumentos meciinicos C a que
diz respeito ao movente (...), como quan- do nos servimos do curso de um rio para mover moinhos, ou da forla de um cavalo para criar aquele efeito para o qua1 nZo bastaria a forla de quatro ou seis hornens". Portanto, o instrumento aparece aqui como ajuda aos sentidos. No que se refere a lu- neta, Galileu tambim escreve que "6 coi- sa belissima, que, alim de se ver, C atra- ente por se poder admirar o corpo lunar, distante de nos quase sessenta semidiime- tros terrestres, assim tiio de perto, como se distasse de nos somente duas dessas me- didas". E Hooke dep6e no mesmo sentido, quando afirma que "a primeira coisa a fazer no que se refere aos sentidos i uma tentativa de suprir sua deficihcia com ins- trumentos, isto 6, acrescentar orgiios arti- ficiais aos naturais".
Falando de instrumentaqiio cientifica, niio se pode deixar de lado o fato de que o uso de instrumentos oticos como o prisma ou as Iiiminas finas acompanha-se de refle- x6es - por exemplo, em Newton - que tendem a considerar o instrumento niio tan- to como potencializaqiio dos sentidos, mas muito mais como um meio em condiq6es de libertar dos enganos dos olhos. Nesse senti- do, portanto, o instrumento aparece como meio que, levando-nos ao interior dos obje- tos (e nZo somente a mais objetos), garante maior objetividade contra os sentidos e os seus testemunhos.
Mas as coisas niio ficam por ai, ja que, na importante polemica entre Newton e Hooke sobre a teoria das cores e sobre o funcionamento do prisma, aparece outro te- ma da teoria dos instrumentos (um tema destinado a desempenhar um papel de pri- meira ordem na fisica contemporinea), isto 6, a quest50 do instrumento perturbador do objeto de pesquisa, e, conseqiientemen-
PHILOSOPWIAE
NATURALIS
YRINCIPIA
MATHEMATICA.
AUCTORE
ISAAC0 NEWTONO, E~UITB AWRAT~
Frontispicio du segunda cdi@o dos Principia mathematics, de Isaac Newton (1 71 1).
te, a temhtica de como poder controlar - e o quanto t possivel faze-lo - o instru- mento perturbador. Hooke apreciava os ex- periment~~ de Newton com o prisma por sua agudeza e elegiincia, mas o que ele con- testava era a hipotese de que a luz branca pudesse ter uma natureza composta e, de todo modo, que essa pudesse ser a iinica hipotese justa. Hooke nio pensava que a cor fosse uma propriedade original dos rai- 0s. Para ele, a luz branca era produto do movimento das particulas que compoem o prisma. E isso significa que a dispersiio das cores seria o resultado de uma perturba- qio operada pel0 prisma. Hoje, diriamos que o prisma "analisa" 2 medida que "mo- dula".
Assim, em conclusio, no curso da re- volu~io cientifica, os instrumentos entram na ciBncia com fun@o cognoscitiva: em suma, a revolu@o cientifica sanciona a legalidade dos instrumentos cientificos. E se por outro lado alguns instrumentos sio concebidos como potencializaq50 dos nossos sentidos, por outro lado devemos constatar a emer- gincia de dois outros temas: o do instrumen- to contraposto ao sentido e o do instrumento perturbador do objeto sob investiga~io. Dois temas que retornario com freqiiincia no desenvolvimento posterior da fisica.
A presenqa da tradiqZio neoplatenica e da neopitagorica, do pensamento hermetic0 e da tradiqZio magica no processo da revoluqZio cientifica, e um fato indubitavel. Basta aqui lembrar: o Deus que geometriza do Neoplatonismo; a na- tureza escandida sobre o numero dos Pitagoricos; o culto do sol por parte dos Neoplat8nicos e do hermetismo; a ideia de harmonia das esfe- ras, uma ideia que guiou Kepler em suas pesquisas; a teoria do contagium de Fracastoro; a ideia do corpo humano visto como AS diversas um sistema quimico e a ideia da especificidade da doenqa e dos func6es respectivos remedios, concepqdes retomadas na iatroquimica de da tradi@o Paracelso, e assim por diante. Ora, mesmo que algumas destas mdgico-hermetica ideias resultem funcionais para a criaqiio e os desenvolvimentos ProCeSSO da ciCncia, o processo da revolu@o cientifica progressivamente distingue, critica e elimina o pensamento magico, levando a maturaqao a forma de saber que e a cibcia moderna: saber pu- da revolu@o cientjfica +§ blico e controlavel e fruto de cooperaqao. E exatamente a genialidade descontrolada do pensamento magico, da astro- logia e da alquimia Bacon opora a clareza e a publicidade de um saber criado por uma comunidade que trabalha com regras reconhecidas.
Por sua vez, Pierre Bayle (1 647-1 706) escrevera nos Pensamentos diversos sobre o cometa (1682) que as regras da astrologia sao simplesmente "mise- raveis". A estreita uniao entre astrologia e astronomia passa da antiguidade - Ptolomeu e autor do Almagesto, tratado astron8mic0, mas e tambem autor do Tetrabiblos, grande tratado de astrologia - a ldade Media e a reencontramos no period0 do Humanismo e da Renascenqa. Tracos 0 astrologo era aquele que, compilando "efemerides" - isto caracteristicos e, tabuas onde sZio especificadas as posiqdes dos diversos plane- da astrologia tas dia por dia -, presumia estabelecer o influxo positivo ou ne- e da magia gativo dos astros sobre a pessoa. Mais especificamente a astrolo- +§ 2-5 gia judiciaria pretendia desvelar o julgamento dos astros sobre a pessoa e ao mesmo tempo sobre os eventos. Nas conjunqdes dos astros o astrolo- go via o destino das pessoas e a sorte dos governantes; ele sabia coisas tao impor- tantes que todo principe ou potentado tinha seu astrologo de corte.
Praticas divinatorias ulteriores se aliaram a astrologia, praticas ligadas a fisiognomonia (onde se presume conhecer o carater de um homem por meio do exame de seu corpo, e especialmente mediante o exame dos olhos, da fronte, da face), a quiromancia (previsao do futuro da pessoa pelas linhas da mao) e a
metoposcopia (previsao do futuro pelas rugas da fronte). E se a astrologia se apre-
senta como o saber que prevC o curso dos eventos - favoraveis ou desfavoraveis que sejam - a magia se apresenta como a ciCncia da intervenqao sobre as coisas e
sobre os homens, intervenqao dirigida a dominar e a transformar a realidade em nosso beneficio.
Com base no que dissemos ate agora sobre a magia, nio se deve pensar que, du- rante o periodo que estamos tratando, a magia tenha estado de um lado e a ciincia de outro. A cicncia moderna - com a ima- gem que dela nos apresentou Galileu e que Newton consolidar5 - constitui. como ob- servamos anteriormente. o resultado do bro- cesso da revoluqiio cientifica. Por essa ra- zio, no curso desse processo, a medida que assume consistincia a nova forma de saber que i a ciincia moderna, a outra forma de saber - isto e, a magia - passa a ser com- batida como forma de ~seudociincia e de saber es~urio.
No entanto, os vinculos entre filosofia neoplathica, hermetismo, tradiqio cabalis- tica, magia, astrologia e alquimia, por um lado, e as teorias empiricas e a nova ideia de saber que avanqa nesse sentido cultural, por outro lado, siio vinculos cujos elos so se dissolvem com lentidiio e esforco. Com efei- to, deixando de lado o compoiente neopla- t6nico que constitui o fundamento de toda a revoluqio astronbmica, ningukm pode hoje negar o peso relevante que o pensamen- to magico-hermitico exerceu tambkm sobre os expoentes mais representativos da revo- lucio cientifica.
Alim de astr6nomo. Co~Crnico tam-
J L
bim foi midico, tendo praticado sua medi- cina por meio da teoria da influincia dos astros. E nio 6 o caso de um Copirnico midico que se comporta como astrologo e um Copirnico astr6nomo que se comporta como cientista puro (assim como nos con- cebemos o cientista), pois, quando Copir- nico trata de iustificar a centralidade do sol no universo, ele se remete tambkm a autori- dade de Hermes Trismegisto, que chama o sol de "Deus visivel".
Por seu turno. Keder conhecia muito bem o Corpus Hermeticum; muito do seu trabalho consistiu em compilar efemiri- des; quando casou-se pela segunda vez, aconselhou-se com os amigos, mas consul- tou tambkm as estrelas. E. sobretudo. a sua visio da harmonia das esferas esta ~renhe de misticismo neopitagorico. No Myste- rium Cosmographicum, a proposito de sua investigaqiio a respeito "do numero, da extensio e do periodo dos orbes", escreve: "A admiravel harmonia das coisas im6- veis - o sol, as estrelas e o espaqo -, que correspondem Trindade de Deus Pai, Deus Filho e o Espirito Santo, me en- corajou nessa tentativa". Tambtm o mes- tre de Kepler, isto C, Tycho Brahe, estava persuadido da influincia dos astros sobre o andamento das coisas e sobre os aconte- cimentos humanos, chegando a ver paz e riqueza no aparecimento da stella nova de 1572. E assim como os horoscopos de Ke- pler eram muito requisitados, tambim Ga- lileu fazia os seus horoscopos na corte dos MCdici.
William Harvey - o descobridor da circulaqio do sangue -, no prefacio a sua grande obra De motu cordis, combate com muito rigor a idiia dos espiritos que rege- riam as operaqoes do organism0 ("Normal- mente, acontece que, quando tolos e igno- rantes niio sabem como explicar algum fato, entio logo recorrem aos espiritos, que sio causa e artifices de tudo, levados ao palco na conclusio de estranhas historias. como o Deus ex machina dos poetastros."); mas, nas pegadas da concep~iio solar da tradiqiio neoplat6nica e hermetica, escreve que "o coraqio pode (...) muito bem ser designa- do como o principio da vida e o sol do microcosmo, corno, analogamente, o sol pode muito bem ser designado o coraqiio do mundo". Hermetismo e alauimia tam- bim estario presentes no pensamento de Newton.
Assim, a presenqa da tradiqio plathi- ca e da neopitagorica, do pensamento her-
metico e da tradiqiio magica no processo da revoluqiio cientifica, 6 um fato indubita- vel. Todavia, podemos ver que, enquanto al- gumas dessas ideias tornam-se funcionais para a criaqiio da ciincia (basta pensar no seguinte: o Deus que geometriza o neoplato- nismo; a natureza simbolizada pelo nume- ro dos pitagoricos; o culto neoplat6nico e hermetic0 ao sol; a idkia kepleriana de har- monia das esferas; a idkia do contagium de Fracastoro; a concepqso do corpo humano como um sistema quimico ou a idkia da es- pecificidade das doenqas e dos respectivos remkdios, concepqiio e idCia propostas e defendidas na iatroquimica de Paracelso, en- tre outras coisas), por outro lado, o proces- so da revoluqiio cientifica, levando 21 ma- turaqiio, na praxis e na teoria, aquela forma unica de saber que 6 a ciincia moderna, pro- gressivamente distingue, critica e rejeita o pensamento magico. Assim, por exemplo, Kepler expressa urna Iucida consciincia a proposito do fato de que, enquanto o pen- samento magico revolve-se no redemoinho dos "tenebrosos enigmas das coisas", es- creve ele, "eu, ao contrario, esforqo-me por levar a clareza do intelecto as coisas envol- tas em obscuridades". A tenebrosidade, alias, para Kepler, 6 a caracteristica do pen- samento dos alquimistas, dos hermkticos e dos seguidores de Paracelso, ao passo que o pensamento dos "matematicos" se carac- teriza por sua clareza. Boyle tambCm se lanqari contra Paracelso. E, embora por dever tivesse de fazer horoscopos, Calileu mostra-se totalmente estranho ao pensamen- to magico em seus escritos. E o mesmo vale para Descartes. Em seus Pensamentos diversos sobre o cometa (1 682), Pierre Bayle (1647-1 706) ataca vigorosamente a astrologia, escreven- do: "Afirmo que os pressagios especificos dos cometas, niio se apoiando em outra coisa alCm dos principios da astrologia, niio po- dem ser sen20 extremamente ridicules ( . . .). Sem precisar repetir tudo o que ja disse so- bre a liberdade do homem (e que seria sufi- ciente para decidir essa questiio), como e possivel alguem imaginar que um cometa seja a causa de guerras que explodem no mundo um ou dois anos depois que ele de- sapareceu? E como podem os cometas ser a causa da prodigiosa variedade de aconteci- mentos que se registram no curso de urna longa guerra? Niio se sabe, talvez, que a interceptaqiio de urna carta pode fazer falir todo o plano de urna campanha de opera- qoes? Ou que urna ordem cumprida urna hora apos o estabelecido faz falir certos pro- jetos trabalhosamente elaborados? Ou que a morte de um so homem pode mudar a face de urna situaqiio e que, as vezes, C por urna besteira, a mais fortuita do mundo, que niio se vencem batalhas cuja perda i seguida por urna infinidade de males? Co- mo se ode re tender que os atomos de um cometa, revoluteando pelo ar, produzam todos esses efeitos?" Na opiniiio de Bayle, as regras da astrologia siio simplesmente "miseraveis".
Durissima foi a critica de Bacon con- tra o pensamento magico. Na opiniiio de Bacon, a cihcia 6 feita de contribuiqoes in- dividuais que, inserindo-se no patrim6nio cognoscitivo da humanidade, servem ao seu sucesso e bem-estar. Por isso, Bacon niio condena os "nobres" fins da magia, da as- trologia e da alquimia, mas rejeita decidi- damente seu ideal do saber, pertencente a um individuo iluminado e, portanto, estra- nho ao controle publico da experiincia e, conseqiientemente, arbitririo e obscuro. A genialidade sem controle, Bacon contrapoe o carater publico do saber; ao individuo ilu- minado, urna comunidade cientifica que opera com normas reconhecidas; a obscuri- dade, a clareza; a sintese apressada, a cau- tela e o paciente controle.
2 $\ &mi& estveita entre castvologica, mclgica e cizncicl moderncl
No contexto das ideias do Quinhen- tos, C impossivel delimitar urna disciplina cientifica em relaqiio a outra, como de cer- ta forma se tornou possivel em seguida. Na cultura do Quinhentos, nem sempre 6 possivel traqar muitas linhas de separaqiio entre as idkias cientificas de um lado e as teorias filosoficas, magicas e astrologicas do outro. A Renascenqa p6s entre a Idade Me- dia e a Cpoca moderna, freqiientemente vin- culando-se ao passado, ideias da tradiqiio neoplat6nica, ideias derivadas da cabala e da tradiqiio hermetica e ideias magicas e astrologicas. Trata-se de idkias que a histo- riografia mais atualizada reconhece serem um ingrediente que niio pode ser elimina- do da revoluqiio cientifica: onde vemos que
toda disciplina ou conjunto de teorias (em sentido moderno) tem a sua contrapartida ocultista. Naturalmente, um dos resultados mais maduros da revolugio cientifica seria a progressiva (mas, de todo modo, nunca total e definitiva) expulsio das id6ias ma- gico-hermitico-astrologicas do iimbito da ciincia. Entretanto, ha outro lado da ques- tio: a ciincia moderna teria surgido sem a "ruptura" que essas idtias efetuaram em rela- gio ao mundo medieval? Mais adiante vere- mos de que mod0 a revolugio astron6mica encontrara sua garantia filosofica no plato- nismo e no neoplatonismo. E o programa de Paracelso, que via o corpo humano co- mo sistema quimico, nio foi util e fecundo para a ciincia? Nem sempre os principios niio-cientificos, as fantasias "absurdas" e os sistemas que parecem nascer do ar consti- tuem obstaculos para o desenvolvimento da ciincia. Existem idiias nio-cientificas que se revelam fecundas para a ciincia, in- fluindo positivamente em seu desenvolvi- mento. E, embora uma das caracteristicas da ciincia moderna seja sua linguagem cla- ra, especifica e controlavel, niio se exclui que idiias confusas possam ser uteis na gi- nese de algumas teorias cientificas. Mesmo em nossos dias, ha quem evidencie os me- ritos da confusiio; na realidade, pode ocor- rer, as vezes, que a clareza seja o ultimo refugio de quem niio tem nada a dizer. As- sim escrevia o filosofo norte-americano Charles S. Peirce por volta de fins do Oito- centos: "Diem-me um povo cuja medicina originiria niio esteja misturada com a ma- gia e os encantamentos, e eu lhes mostrarei um povo privado de qualquer capacidade cientifica."
Fisiognomonia, quiromancia e metoposcopia
3, '4 J4" Caracteristicas da astrologia
De origem egipcia e caldiia, a astro- logia era uma ciincia, isto 6, um autintico saber, para os homens do Quatrocentos e do Quinhentos. A astrologia e a astrono- mia aparecem ligadas entre si desde a anti- guidade. Ptolomeu, como sabemos, i au- tor do famoso e muito influente tratado de astronomia Almagesto, mas tambim escre- veu um volumoso tratado de astrologia (o Tetrabiblos). Tinha a convicgiio de que "hi certa influincia do ciu sobre todas as coi- sas que estio sobre a terra". Essa estreita uniiio entre astrologia e astronomia que en- contramos na antiguidade atravessa a Ida- de Media e pode ser encontrada no perio- do do humanism0 e da Renascenga e, por vezes, at6 mais tarde. 0 astrdlogo 6 aquele que, atravis da observagiio dos astros, com- pila as "efemirides", ou seja, os quadros onde siio especificadas as posigoes que os diversos planetas assumem dia apos dia. Com base em tais posigoes e configurag6es dos astros, o astrologo tratava "temas de nascimento", isto 6, fixava quais astros es- tavam mais proximos de uma pessoa na data do seu nascimento, para depois esta- belecer sua influincia positiva ou negativa sobre a pessoa, da qua1 fazia-se assim o ho- roscopo (o hodierno termo "influEncian encontra ai a sua origem). No Quatrocen- tos e no Quinhentos foi grande o sucesso da astrologia judiciaria, ou seja, da astro- logia voltada para revelar o juizo dos as- tros sobre as pessoas e tamb6m sobre os acontecimentos. Em suma, o astrologo via nas conjungoes dos astros as condigoes de saude e o destino das pessoas, mas tam- bim as perspectivas da estagiio, as revoltas populares, a sorte dos senhores reinantes, das politicas e das religioes, as guerras fu- turas. Como era o astr6logo que via e sa- bia dessas coisas tio importantes, niio ha- via principe ou poderoso que niio tivesse o seu astrologo na corte.
Ao lado da astrologia, exerciam-se ou- -, tras priticas divinatorias, como a fisiog- nomonia. No De fato (V, lo), Cicero fala do fisiognomonista Zopiro, que afirmava poder chegar a conhecer o carater de um homem atrav6s do exame de seu corpo, es- pecialmente pelo exame de seus olhos, da fronte e da face. Durante a Renascenga, essa arte foi extensamente cultivada, com gran- de sucesso. Em 1580, Giambattista Della Porta publicou o livro Sobre a fisiognomonia humana. A fisiognomonia esteve presente at6 mesmo no Setecentos (basta pensar em Lavater), encontrando-se tragos dela at6 em nossos dias. Outras formas de adivinhagio
eram ainda a quiromancia (previsiio do fu- turo de uma pessoa pelas linhas da mio) e a metoposcopia (previsiio do futuro pelas ru- gas da fronte).
0 paralelismo entre macrocosmo e mi- crocosmo, a simpatia cosmica e a concepqiio do universo como ser vivo sio principios fundamentais do pensamento hermCtico, relanqado por Marsilio Ficino con1 a tradu- $50 do Corpus Hermeticum. Com base no pensamento hermktico, niio hi qualquer du- vida a respeito da influhcia dos aconteci- mentos celestes sobre os eventos humanos e terrestres. Mas, como o universo C urn ser vivo, em que cada parte depende da outra, toda aqio e intervenqio humana tambCm ttm seus efeitos e suas conseqiiCncias. Desse mo- do, se a astrologia e a citncia que previ o curso dos eventos, a magia C a ciincia da inter- venqiio sobre as coisas, os homens e os acon- tecimentos, a fim de dominar, dirigir e trans- formar a realidade segundo nossa vontade. A magia C o conhecimento dos modos pelos quais o homem pode agir para levar as coisas para o sentido por ele desejado. Desse modo, no mais das vezes, ela se con- figura como ciincia que envolve o saber as- trologico: a astrologia indica o curso dos acontecimentos (favoraveis e desfavoraveis) e a magia apresenta os instrumentos de in- tervenqiio sobre esse curso. A magia inter- vem para mudar as coisas que est2o "escri- tas no ceu " e que foram lidas pela astrologia. Evidentemente, a intervenqiio sobre o curso dos acontecimentos pressupoe o conheci- mento desse curso. Dai ter-se impost0 e al- canqado grande sucesso a figura do astrolo- go-mago, o sabio que domina as estrelas.