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IV. Galileu: as rakes do choque com a Igreja e a critica do instrumentalismo de Belarmino

"Verdadeiramente, a imaginaqao e bela (...); so peca por niio ser demonstrada nem demonstriivel." Naquela ipoca, a hipotese de Clavio, com efeito, niio podia ser verifi- cada empiricamente (mas hoje o seria): como podia Clavio provar a existhcia de uma esfera cristalina circundando a lua? E se fos- se dito que ha uma substhcia cristalina so- bre a lua, mas disposta em forma de vales e montanhas, de que mod0 Clavio poderia demonstrar a falsidade dessa hipotese? A realidade i que a "revoluqao cientifica ope- rada por Galileu niio se baseia somente nas novidades contidas em (suas) descobertas, mas tambim e sobretudo na nova maturi- dade metodologica por elas revelada" (L. Geymonat). Em todo caso, por meio de suas descobertas astronbmicas, Galileu resolveu a disputa entre o sistema copernicano e o sistema aristotilico-ptolomaico completa- mente a favor do primeiro. Como escreve Thomas S. Kunh: "A teoria de Copirnico [...I sugeria que os planetas deviam ser se- melhantes a terra, que VEnus devia apresen- tar fases e que o universo devia ser muito mais amplo do que se supusera anteriormen- te. Conseqiientemente, quando, sessenta anos depois de sua morte, o telescopio reve- lou repentinamente a existhcia de monta- nhas sobre a lua, as fases de VCnus e um numero imenso de estrelas, de cuja existh- cia niio se suspeitava antes, essas observa- q6es converteram a nova teoria numerosos cientistas, particularmente entre os que nao eram astrbnomos". Mas, com isso, Galileu havia estabelecido todas as condiq6es que o levariam ao choque com a Igreja.

E pouquissimos o defenderam aberta- mente: entre os que o defenderam, estava Campanella.

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IV. ClalileM:

as raizes do choqMe cow a Jgreja

,,, A origern dos dissidios entre Cialilem e a Jgreja

Copirnico havia afirmado que "todas as esferas giram em torno do sol como ao seu ponto central e, portanto, o centro do universo esta em torno do sol". Ele pensava que se tratasse de uma representa@o ver- dadeira do universo.

Mas, como sabemos, no prefacio ao De revolutionibus, o luterano Andreas Osiander (1498-1552) afirmou que "nao 6 necessa- rio que essas hipoteses sejam verdadeiras e nem mesmo verossimeis; basta apenas que elas ofereqam c~lculos em conformidade com a observa~iio". Ptolomeu, cujas teorias entravam em colisiio com a fisica de Aristo- teles, tambem sustentara que suas hipoteses fossem "calculos matematicos" em condi- q6es de "salvar as aparcncias" e niio descri- ~6es verdadeiras dos movimentos reais. Para Osiander, portanto, como ja ocorrera com Ptolomeu, as teorias astronbmicas eram somente instrumentos capazes de fazer previ- s6es sobre os movimentos celestes com maior rapidez.

Em sua A ceia das cinzas, Giordano Bru- no voltou-se contra a interpretaqiio instru- mentalista das teorias de Copirnico dada por Osiander, afirmando que tudo o que Co- pirnico escreve na carta dedicatoria a Pau- lo 111, introdutoria ao De revolutionibus, mostra claramente que ele niio i apenas um "matemiitico que sup6en, mas tambim um "fisico que demonstra o movimento da ter- ra". E acrescentava que o prefacio anbni- mo (de Osiander) foi "grudado" B obra de Copirnico "niio sei por qua1 asno ignoran- te e presunqoso". E tambtm para Kepler "as hip6teses de Copirnico niio apenas nao es- tao erradas em relaqiio a natureza, mas es- tiio ate em maior conson2ncia com ela. Com efeito, a natureza ama a simplicidade e a unidade [. . .I" e Copirnico conseguiu "niio apenas [. . .] demonstrar os movimentos trans- corridos, que remontavam a distante anti- guidade, mas tambim os movimentos futu' ros, se niio de mod0 certissimo, pel0 menos

Anticopernicanos.

Jean Bodin: "Nenhum homem em plena posse de suas faculdades men- tais, ou entgo dotado das mais ele- mentares noq6es de fisica, jamais po- dera crer que a terra, pesada e lenta por seu proprio peso e pela sua mas- sa, se agite para cima e para baixo em redor de seu centro e do sol, pois, ao minimo abalo da terra, veriamos des- moronar as cidades e fortalezas, al- deias e montanhas". Martinho Lutero: "As pessoas deram ouvidos a um astrologo de quatro vin- tens, que se empenhou em demons- trar que e a terra que gira, e nao os ceus e o firmamento, o sol e a lua [...I. Este louco pretende abalar toda a ci6ncia astron6mica; mas a Sagrada Escritura nos diz (Josue 10,13) que Josue ordenou ao sol e n%o a terra que parasse". Filipe Melanchton: "0s olhos nos mos- tram corn toda evid6ncia que os ceus realizam uma revoluq;?~ no espaqo de vinte e quatro horas. Todavia, alguns, por causa de novidades ou para dar prova de engenho, sustentaram que a terra se move [...I. E falta de hones- tidade e de dignidade sustentar pu- blicamente tais conceitos, e o exem- plo e perigoso". JO~O Calvino: "Quem tera a ousadia de antepor a autoridade de Coper- nico a do Espirito Santo?". Roberto Belarmino: "Digo que [...I o Concilio proibe expor as escrituras contra o consenso comum dos san- tos Padres; e se VSa. quiser ler n%o dig0 apenas os santos Padres, mas os comentarios modernos sobre o Genesis, sobre os Salmos, sobre o Ecle- siastes, sobre Josue, encontrara que todos conv6m em expor ad litteram que o sol esta no ceu e gira ao redor da terra com suma velocidade, e que a terra encontra-se afastadissima do cCu e esta no centro do mundo, imo- vel. Considere entgo o senhor, com sua prudencia, se a lgreja pode su- portar que se d6 as Escrituras um sentido contrario aos santos Padres e a todos os expositores gregos e la- tinos". de modo mais seguro do que o faziam Ptolomeu. Afonso e outros". ~~oia, porCm, a defesa da tese realista (a tese segundo a qual o sistema copernicano seria uma descriqao verdadeira da realida- de e nio um conjunto de instrumentos de calculo para fazer previs6es ou possibilitar um calendario melhor) n5o podia deixar de parecer perigosa para todos aqueles que, catolicos ou protestantes, pensavam que, em sua versiio literal, a Bibl~a niio po- dia errar. 0 Eclesiastes (1,4-5) diz que "a terra permanece para sempre (em seu lugar)" e que "o sol se levanta, o sol se deita, apres- sando-se a voltar ao seu lugar". Ji em JosuC (10,13), pode-se ler que JosuC ordenou ao sol que se detivesse. Pois bem, foi com base nesses trechos da Escritura que Lutero, Cal- vin~ e Melanchton opuseram-se duramente B teoria copernicana.

Se o copernicanismo parecia perigoso para os protestantes, fautores do contato imediato de cada crente com as fontes tes- tamentirias, muito mais perigoso devia ser para os catolicos, segundo os quais a inter- pretaqao da Sagrada Escritura depende do magistirio eclesiastico. A Contra-reforma nio poderia admitir que um crente qualquer - mesmo aue fosse um Galileu - estabe- lecesse os principios hermeneuticos de in- terpretaqao da Biblia e propusesse inter- pretaqoes deste ou daquele trecho. Ai reside a raiz do choque entre Galileu e a Igreja. E ai residem as raz6es da interpretaqao ins- trumentalista do copernicanismo proposta por Belarmino e rejeitada pelo realista Galileu.

Em 1615, em Napoles, onde ensinava filosofia e teologia, o matematico e teologo carmelita Ant6nio Foscarini (1565-1616) pu- blicou uma Carta sobre a opiniiio dos pita- goricos e de Cope'rnico, na qual se harmoni- zam e se apaziguam as passagens da Sagrada Escritura e as proposigoes teologicas, que jamais se poderiam apresentar contra tal opiniiio. Foscarini enviou seu pequeno tra- tado a Belarmino, pedindo ao cardeal um parecer sobre ele. E Belarmino responde com breve carta, "porque o senhor agora tem pouco tempo para ler e eu para escrever".

Essa breve carta C um texto classico do ins- trumentalism~. Belarmino recorda a Fosca- rini que, "como sabe o senhor, o Concilio proibe que se exponham as Escrituras con- tra o comum consenso dos santos Padres. E se V. Sa. quiser ler, nzo digo somente os san- tos Padres, mas tambCm os comentadores modernos, sobre o Gtnesis, sobre os Sal- mos, sobre o Eclesiastes e sobre Josuk, vera que todos convergem em expor ad litteram que o sol esta no ciu e gira em torno da terra com suma velocidade, bem como que a terra esta muito distante do cCu e esta no centro do mundo, imovel. E considere ago- ra o senhor, com sua prudtncia, se a Igreja pode suportar que se dt as Escrituras um sentido contrario aos santos Padres e a to- dos os expositores gregos e latinos". Mas logo afirma: "Quanto ao sol e a terra, ne- nhum sabio tem necessidade de corrigir o erro, porque experimenta claramente que a terra esta firme e que o olho nio se engana quando julga que a lua e as estrelas se mo- vem". Sendo assim, e considerando que o Concilio tridentino proibiu interpretar as Es- crituras "contra o comum consenso dos san- tos Padres", Belarmino afirma: "Parece- me que V.Sa. e o senhor Galileu seriam prudentes em contentar-se de falar ex suppo- sitione e niio em absoluto, como sempre acreditei que Copirnico tenha feito. Pois dizer que a suposiqio de que a terra se move e o sol esta firme salva as apartncias melhor que os exchtricos e epiciclos esta muito bem dito, niio havendo perigo algum - e isso basta para o matematico. Mas que- rer afirmar que realmente o sol esta no centro do mundo e s6 gira sobre si mes- mo, sem correr do Oriente para o Ociden- te, e que a terra esta no terceiro cCu e gi- ra com suma velocidade em torno do sol C coisa perigosa, capaz nio somente de irri- tar todos os filosofos e teologos escolasti- cos, mas tambCm arriscado de incomodar a Santa SC por tornar falsas as Escrituras Sa- gradas."

Galileu, porCm, n5o era da opiniao de Belarmino. Para ele, as "sensatas experitn- cias" e as "demonstraq6es certas" estavam ali, proclamando a veracidade do sistema copernicano. Em 7 de marqo de 161 5, dom Piero Dini, que era ent5o referendario apos- tolic~ junto i corte pontificia, enviou uma carta a Galileu, informando ter mantido longo coloquio com o cardeal Belarmino e comunica-lhe o seguinte: "Quanto a Co- pCrnico, diz S.S. Ilma. ngo poder acreditar que seja para proibir, mas crt que o pior que possa acontecer-lhe seria fazer-lhe uma advertencia de que sua doutrina teria sido introduzida para salvar as apartncias, ou coisa semelhante, dirigida aqueles que in- troduziram os epiciclos e depois n5o acre- ditaram mais [. . .] ".

Pois bem, respondendo de Florenqa a Dini, em 23 de marqo, Galileu reafirmou a veracidade do sistema copernicano. Na opi- niio de Galileu, CopCrnico falou da cons- tituigiio do universo e descreveu aquilo que existe realmente in rerum natura, "de mod0 que querer persuadir que CopCrnico n5o considerava verdadeira a mobilidade da terra, ao meu ver, niio poderia encontrar concordiincia, sengo, talvez, junto a quem niio o tenha lido, visto que todos os seus seis livros estio plenos de doutrina que de- pende da mobilidade da terra, explicando- a e confirmando-a. E se, em sua dedicato- ria, ele muito bem entende e confessa que a posiqiio da mobilidade da terra o levaria a ser considerado tolo universalmente, jui- zo que ele afirma n3o levar em conta, mui- to mais tolo teria sido ele deixar-se repu- tar por uma opiniiio por ele introduzida, mas nio inteira e verdadeiramente acre- ditada".

Em suma, CopCrnico n5o C um "mate- matico" que apronta hipoteses como puros instrumentos de calculo, mas sim um fisico, que pretende dizer como realmente siio as coisas. Em conseqiitncia disso, prossegue Galileu, CopCrnico "nio C capaz de mode- raggo, constituindo a mobilidade da terra e a estabilidade do sol o ponto principal de toda a sua doutrina e o seu fundamento universal: por isso, C preciso condena-lo in- teiramente ou deixa-lo em seu ser".

Realista C Coptrnico e realista C Gali- leu. Mas se, como fazia Belarmino e, com ele, a Igreja, se sup6e que as passagens da Biblia relativas ao sistema do mundo, in- terpretadas literalmente pela tradiqio, s5o efetivamente verdadeiras e intocaveis, en- tZo o choque frontal entre a Igreja e Gali- leu tornava-se inevitavel, dada a interpre- taqiio galileana realista da doutrina de Copirnico, doutrina que contrastava com as passagens biblicas referidas e interpreta- das ao pC da letra. E foi sobre esse aspect0 importante que acabou ocorrendo o cho- que entre Galileu e a Igreja. Galileu teve de ceder. Mas primeiro vejamos de que mod0 Galileu concebia as relaqoes entre citncia e fC.

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