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V. A incomensurabilidade entre ciihcia e fi

Por um lado, Galileu teoriza a demar- caqiio entre proposiqdes cientificas e propo- siqdes de fC, reclamando a autonomia dos conhecimentos cientificos, que siio compro- vados e avaliados por meio da aparelhagem constituida pelas regras do mitodo experi- mental ("sensatas experiincias" e "demons- traq6es certas"). Mas, por outro lado, essa autonomia das ciincias em relaqiio as Sa- gradas Escrituras encontra sua justificaqiio no principio (que, em sua carta a senhora Cristina de Lorena, em 1615, Galileu diz ter ouvido do cardeal BarBnio) de que "a in- tenqiio do Espirito Santo i a de nos ensinar como se vai ao cCu e niio como uai o cCu". Apoiando-se em santo Agostinho (In Genesim ad litteram, lib. 11, c. 9), Galileu afirma que "niio somente os autores das Sagradas Escrituras niio pretenderam nos ensinar a constituiqiio e os movimentos dos cCus e das estrelas, com suas figuras, gran- dezas e disthcias, mas tambim, estudan- do-se bem, embora todas essas coisas fos- sem conhecidissimas deles, vi-se que eles se abstiveram disso". Diz Galileu que Deus nos deu sentidos, discurso e intelecto: C por meio deles que podemos chegar aquelas "conclu- sdes naturais" que podem ser obtidas "pe- las sensatas experiCncias ou pelas necessa- rias demonstraqdes". A Escritura niio 6 um tratado de astro- nomia, tanto que, "se os escritores sagra- dos houvessem pensado em persuadir o povo das disposiqdes e dos movimentos dos corpos celestes e se, conseqiientemente, nos devZssemos ainda ter essa informaqiio das Sagradas Escrituras, entiio, a meu ver, eles niio teriam tratado tiio pouco do assunto, quase nada em comparaqiio com as infini- tas e admiraveis conclusdes contidas e de- monstradas em tal ciincia". Com efeito, nas Escrituras niio encontramos nem mesmo nomeados os planetas, exceto o sol e a ha, e somente uma ou duas vezes, sob o nome de Lucifer, o planeta VCnus".

Em suma: niio i intenqiio da Sagrada Escritura "nos ensinar se o ciu se move ou esta firme, nem se sua figura C em forma de esfera, de disco ou estendida num plano, nem se a terra esta contida em seu centro ou de um lado". Por isso, "tambim niio tera tido nem mesmo a intenqiio de nos tornar certos de outras conclusdes do mesmo gi- nero, relacionadas com as que agora referi- mos, sem cuja determinaqiio niio se pode asseverar esta ou aquela posiqiio, como seja a determinaqiio do movimento ou da quie- tude da terra e do sol".

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Conseqiientemente, niio sendo funqiio da Escritura determinar "a constituiqiio e os movimentos dos cCus e das estrelas", Ga- lileu chega a afirmar: "Parece-me que, nas dis~utas sobre problemas naturais, niio se deveria comeqar pela autoridade de passa- gens das Escrituras, mas sim pelas sensatas experiincias e pelas demonstraqdes neces- sarias: pois, procedendo do verbo divino a Escritura sagrada e igualmente a natureza, aquela como ditada pelo Espirito Santo e esta como observantissima executora das ordens de Deus; e mais, convindo as Escri- turas, para acomodar-se ao entendimen- to universal, dizer muitas coisas diversas da verdade absoluta, em aspecto e quanto ao cru sipificado das palavras; mas, ao con- trario, sendo a natureza inexoravel e imu- tivel e nunca niio-transcendente aos termos das leis que Ihe 60 impostas, como a de que suas rec6nditas razdes e modos de operar estiio ou niio expostos capacidade dos homens; parece entiio que a quest30 dos efei- tos naturais que a sensata expericncia nos coloca diante dos olhos ou as demonstra- qdes necessarias concluem, niio deva ser, por nenhuma raziio, posta em duvida, menos ainda condenada, por passagens da Escri- tura que apresentassem aparincia diversa nas palavras, pois nem toda palavra da Es- critura esta ligada a obrigaqdes tiio severas

como todo efeito da natureza, nem se des- cobre Deus com menos excelencia nos efei- tos da natureza do que nas palavras sagra- das das Escrituras."

Fica, portanto, reivindicada a autono- mia da ciencia: tudo aquilo de que podemos ter informaqiio atravCs das "experiincias sensatas" e das "necessarias demonstraq6es7' fica subtraido a autoridade das Escrituras.

No entanto, se as Escrituras nio sio um tratado de astronomia, qua1 C entio seu objetivo? De que nos falam? Qua1 C o sm- bito das "verdades" que, nio sendo englo- biveis na cicncia, elas podem propor e es- tabelecer? A essas interrogaqoes, Galileu responde o seguinte: "Eu consideraria [. . .] que a autoridade das Sagradas Escrituras tenha o objetivo de persuadir os homens principalmente daqueles artigos e proposi- q6es que, superando todo discurso huma- no, niio poderiam fazer-se criveis por outra cihcia nem por outro meio senio pela boca do proprio Espirito Santo".

As proposiq6es de fide dizem respeito a nossa salvaqiio ("corno se vai ao cCu7'), sen- do "decretos de absoluta e inviolivel vera- cidade". Em outros termos, a Escritura e uma mensagern de salvapio que deixa intacta a autonomia da investiga@o cientifica.

Mas nio C so isso, pois Galileu se em- penha em outras importantes consideraq6es: 1) Erram aqueles que pretendem se deter sempre no "puro significado das pa- lavras", pois, caso se fizesse isso, escreve Galileu numa carta de 1613 a dom Bene- detto Castelli, entio na Escritura "apare- ceriam nio somente diversas contradiqGes, mas tambCm graves heresias e blasfimias, ja que seria necessario ver em Deus pCs, mios e olhos, bem como efeitos corporais e humanos, como os de ira, de arrependimen- to, de odio e ate, por vezes, de esquecimen- to das coisas passadas e de ignorsncia das futuras". 2) Dai deriva que, tendo a Escritura sido obrigada a se "acomodar a incapaci- dade do vulgo", entiio "os sabios exposito- res produzem os virios sentidos e acrescen- tam as raz6es particulares pelas quais foram proferidas tais palavras".

Fe religiosa (finalidade da fe).

"N%o tendo desejado o Espirito San- to ensinar-nos se o ceu se move ou se esta parado, nem se sua forma seja a de esfera ou de disco ou estendida no plano, nem se a terra esteja contida no centro dele ou de um lado, n%o tera tido nem mesmo a intengso de tor- nar-nos certos de outras conclusbes do mesmo gsnero, e ligadas de algum mod0 com as agora citadas, que sem a determinagao delas n%o se pode asserir esta ou aquela parte; corno, por exemplo, determinar o movimen- to e o repouso de uma terra e do sol. E se o proprio Espirito Santo pruden- temente omitiu ensinar-nos tais pro- posigbes, como nada atinentes a sua intengao, ou seja, para nossa salvag%o, como se podera agora afirmar, que manter delas esta parte, e n%o aque- la, seja t%o necesdrio que uma seja de fide, e a outra errbnea? Podera, entao, haver uma opiniao heretica. e em nada referente a salvag%o das al- mas? Ou poderemos dizer que o Es- pirito Santo tenha desejado n%o en- sinar-nos uma coisa que se refere a salvag$o? Eu diria aqui algo que,ouvi de uma pessoa eclesiastica em emi- nentissimo grau [cardeal BarBnio], isto e, a inteng8o do Espirito Santo 6 nos ensinar como se vai ao ceu, e n%o como vai o ceu [...Im. Assim escrevia Galileu, em 161 5, a se- nhora Cristina de Lorena.

3) A Escritura "niio apenas C capaz, mas necessariamente carente de exposiq6es diversas do aparente significado das pala- vras", pois os escritores sacros dirigem-se "a povos rudes e indisciplinados" . 4) "Ademais, sendo manifesto que duas verdades nio podem se contrariar nunca, C funqio dos sabios expositores esforqarem- se por encontrar o sentido das passagens sacras, harmonizando-as com aquelas con- clus6es naturais que se tornaram certas e seguras pelo sentido manifesto ou pelas de- monstraq6es necessarias." 5) Desse modo, a cikncia torna-se um dos instrumentos a serem usados para se interpretar alguns trechos da Escritura. Com efeito, "tendo adquirido a certeza de

algumas proposiq6es naturais, devemos nos servir delas como meios adequadissimos ii verdadeira exposiqio das Escrituras e a investigaqio dos sentidos que necessaria- mente estio contidos nelas, como verdadei- ros e conformes com as verdades demons- tradas". 6) Por outro lado, na carta a dom Piero Dini, em 1615, Galileu afirma que C preciso ter muita circunspecqiio "no que se refere iiquelas conclus6es naturais que nio sio de fide, mas as quais podem chegar a expe- rihcia e as demonstraq6es necessarias", e diz que "seria pernicioso asseverar como doutrina resolvida nas Sagradas Escrituras alguma proposiqzo da qual, alguma vez, se pudesse ter demonstraqio em contrario". Com efeito, "quem quer p6r um termo ao gf nio humano? E quem podera afirmar que ja se sabe tudo aquilo que 6 sabivel no mundo?". 7) Em suma, a Escritura nio deve ser comprometida por intkrpretes faliveis e nio inspirados no que se refere a quest6es que podem ser resolvidas pela razio humana. Como a ciincia progride, C pernicioso pre- tender comprometer a Escritura em propo- siq6es (corno, por exemplo, as posiq6es de Ptolomeu) que posteriormente poderzo ser refutadas. referentes Desse modo, "alCm dos artigos a salvaqio e ao estabelecimento da fC, contra a firmeza dos quais nio ha qualquer perigo de que possa se insurgir nunca alguma doutrina valida e eficaz, tal- vez fosse um 6timo conselho nio acrescenta- 10s outros sem necessidade. E, sendo assim, quanto maior nio seria a desordem o acres- centi-10s a pedido de pessoas que, alCm de ignorarmos, se dizem inspiradas por virtu- de celeste e vemos claramente que sso de todo despidas daquela intelighcia que se- ria necessaria, nio digo para retrucar, mas mesmo para compreender, as demonstra- q6es com as quais as agudas cihcias proce- dem na confirmaqio de algumas de suas con- clus6es?"

Portanto: 1) a Escritura C necessiria para a sal- vaqio do homem; 2) os "artigos relativos i salvaqao e ao estabelecimento da fin sio tio firmes que contra eles "nio ha qualquer perigo de que possa se insurgir um dia alguma doutrina vilida e eficaz";

3) devido is suas finalidades. a Escri- tura nio tem nenhuma autoridade no aue se refere a todos aaueles conhecimentos que podem ser estabelecidos por meio de "sensatas experiincias e necessirias demons- traq6esn; 4) quando fala sobre aquilo que C ne- cessario para a nossa salvaqio (ou sobre coisas nio cognosciveis por outro meio ou por outra cihcia), a Escritura nio pode ser desmentida; 5) entretanto, dado que escritores sa- cros dirigiam-se ao "vulgo rude e indis- ciplinado", em muitas passagens a Escritu- ra necessita de interpretaqio; 6) a citncia pode constituir um meio para interpretaqoes corretas; 7) nem todos os intkrpretes da Escritu- ra siio infaliveis; 8) nio se pode comprometer a Escri- tura em coisas que o homem pode conhecer com sua razio; 9) a cicncia C aut6noma: suas verdades sio estabelecidas com sensatas ex~eriincias e demonstraq6es certas e nio com base na autoridade da Escritura; 10) nas quest6es naturais, a Escritura vem em ultimo lugar.

Portanto, na opini2o de Galileu, ci8n- cia e fe' siio incomensuraveis. E. sendo inco- mensuraveis, s2o compativeis. Ou seja, nio se trata tanto de um ou-ou, mas muito mais de um e-e. 0 discurso cientifico C um dis- curso empiricamente control6ve1, que visa a nos fazer compreender como funciona este mundo, ao passo que o discurso religioso C discurso de salvaqio, que nio se preocupa com "o que", ma? sim com o "sentido" das coisas e da nossa vida. A citncia 6 cega para o mundo dos valores e do sentido da vida; a fC C incompetente sobre quest6es factuais. CiEncia e fC tratam cada qual de suas ques- t6es pr6prias: C essa a razio pela qual se harmonizam. Elas nio se contradizem e nem podem se contradizer, ja que sio incomen- suraveis: a cicncia nos diz "corno vai o ciu" e a f6 nos diz "corno se vai ao cCu".

Assim, quando emergem coisas que parecem contradiqijes, deve-se logo suspei- tar que o cientista transformou-se em meta- fisico ou entio que o homem religioso trans- formou o texto sagrado em um tratado de fisica ou biologia (ou em algum capitulo de tais tratados).

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