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e sua "superaqio"

torna seus os resultados da cihcia e nio minimiza em absoluto a presenqa do corpo e a existhcia do universo material. Escreveu Bergson em A evolu@o criadora: "0 grande err0 das doutrinas espiritualistas foi o de acreditar que, isolando a vida espiritual de todo o resto, suspendendo-a o mais alto possivel sobre a terra, se estava colocando-a ao abrigo de todo atentado".

Entretanto, com tais operaqGes, os espi- ritualistas fizeram com que a vida espiritual ficasse exposta a ser confundida "com o efeito de urna miragem". Para Bergson, as coisas sio diferentes: a consciincia ou vida espiritual C irredutivel a matCria; ela C urna energia criadora e finita, continuamente as voltas com condiq6es e obstaculos que po- dem bloquei-la e degradi-la. Em suma, o pensamento de Bergson e' uma filosofia que pretende ser fiel a realidade, mas onde a rea- lidade niio e' concebida como reduzida nem envolvida pelos "fatos " dos positivistas.

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0 tempo espacializado e o tempo como durac&o

Justamente por ser fiel a realidade, em sua juventude Bergson se entusiasmou pela filosofia evolucionista de Spencer. E, como confessara mais tarde, ele nio queria enti50 nada mais que aperfeiqoar e consolidar os Primeiros principios de Spencer, sobretudo no que se refere mecinica. Mas foi exata- mente atravCs desse trabalho que Bergson se deu conta de que o positivismo nao manteve em absoluto sua promessa de fidelidade aos fatos, como se observa, por exemplo, no tra- tamento do problema do tempo. Dedicado a tal questio, Bergson diz que "aqui nos esperava urna surpresa". o A surpresa consistia no fato de que tempo da experiincia concreta escapa a mecinica. Como podemos ler no Ensaio sobre os dados imediatos da conscitncia, para a mecinica, o tempo C urna sCrie de instantes, um ao lado do outro, como se vi? nas sucessivas posiq6es dos ponteiros do rel6gio. Por isso, o tempo da mecinica C tempo espacializado. E, com efeito, medir o tempo significa comprovar que o movimento de certo objeto em um espaqo determinado coincide com o movimento dos ponteiros dentro daquele espaqo que C o quadrante do relogio. Mas, alCm de espacializado, o tempo da mecinica C tempo reversiuel, ji que podemos voltar atras e repetir infinitas vezes o mesmo experimento. AlCm disso, para a mecinica, todo momento C externo ao outro e C igual ao outro: um instante se sucede ao outro e nZo ha um instante diferente do outro, mais intenso ou mais importante do que o outro.

Ora, tais caracteristicas do tempo da mecinica nZo conseguem de mod0 algum dar conta do que C o tempo da experitncia concreta. Se a espacialidade C a caracteristica das coisas, a duragZo C a caracteristica da conscihcia. A conscigncia capta imediata- mente o tempo como dura~iio. Dura~iio quer dizer que o eu viue o presente com a memo- ria do passado e a antecipa~iio do futuro. Fora da conscikcia, o passado nio existe mais e o futuro ainda nio existe. Passado e futuro s6 podem viver em urna conscihcia que os liga no presente. A duraqZo vivida, portanto, nZo C o tempo espacializado da mecinica.

Naturalmente, o tempo espacializado e, portanto, quantitativo e mensuravel, cristalizado em urna sCrie de momentos ex- ternos uns aos outros, funciona bem para as finalidades praticas da cihcia, que tem por funq5o construir teorias uteis porque ricas de previsGes, que se reduzem de tal mod0 a instrumentos eficazes para controlar as situaq6es que, de quando em vez, devem ser confrontadas. Se Bergson, de um lado, retoma a doutrina da economicidade da cihcia proposta pelos empiriocriticistas, do outro ele percebe, na cihcia da natureza e em seus mCtodos, urna total incapacidade e inadequa~zo para o exame dos dados da consciBncia.

Para Bergson, a realidade apresen- ta aspectos diversos, que, se quisermos permanecer fiCis a experihcia, dyem ser estudados com mttodo pr6prio. E ai que, em sua opiniio, o positivismo falha: na con- cepqgo de que a natureza dos fatos C unica e ao pretender julgar todos os fatos com o mesmo mCtodo.

POP que a durac&o funda a liberdade

Bergson liga a idCia de dura@o, como caracteristica fundamental da consciincia, sua defesa da liberdade e sua critica ao determinismo, quando este presume poder explicar a vida da conscitncia. Na realidade, se os obietos "nZo levam a marca do tem-

po transcorrido", ou seja, se eles existem um externamente ao outro em um tempo espacializado, entiio a determinaqiio de um acontecimento posterior por meio de um acontecimento anterior, diferente dele, torna-se possivel: primeiros acontecimentos idinticos (as causas) explicam posteriores acontecimentos idinticos (0s efeitos). Mas o que C possivel- e util- no iimbito dos objetos espacializados revela-se logo impos- sivel para a consciincia.

A consciincia conserva os traqos do pr6prio passado: nela nunca hi dois acon- tecimentos idinticos, raziio por que a determinaqiio de acontecimentos idinticos sucessivos torna-se impossivel. A vida da consciincia n2o C divisive1 em estados dis- tintos, e o eu C unidade em devir - e onde niio h& nada de idintico, n5o h6 nada de previsivel.

Tanto os deterministas como os susten- tadores da doutrina do livre-arbitrio, segun- do Bergson, estiio errados, porque aplicam h consciincia as categorias tipicas do que, ao contririo, C externo i conscicncia. 0s deterministas buscam as causas determi- nantes da aqiio, e niio percebem que o unico motivo profundo C a consciincia toda, com sua hist6ria. Da mesma forma se comportam os sustentadores do livre-arbitrio, que esta- belecem a causa da liberdade na vontade. Substancialmente, tanto os defensores como os detratores da liberdade da consciincia pressup6em uma idCia de consciincia como uma soma de atos distintos, ao passo que o eu 6 unidade em devir, raziio por que nos "somos livres quando os nossos atos ema- nam de toda a nossa personalidade, quando a expressam".

No Ensaio sobre os dados imediatos da consci8ncia, o tempo espacializado da ciincia se op6e i duragiio da consciincia ou tempo da experiincia concreta. Essa oposiqiio repercute na outra contraposiqiio entre uma realidade externa, meciinica, nunca nova por ser sempre repetitiva, e uma realidade interna, fundida na unidade do eu, sempre criativamente nova. Chegando a esse ponto, Bergson niio podia evitar o problema da relagiio, ou melhor, da passagem entre as duas realidades. 0 problema se impunha tambim pela raziio de que, na consciincia, ele vira sua possibilidade de solidificar-se e quase se petrificar em situaqoes de repetiti- vidade meciinica.

A quest20 da passagem entre a realida- de externa (a matiria) e a interna (o espirito) i enfrentada por Bergson no livro Mate'ria e membria, onde procura "captar mais clara- mente a distinqiio do corpo e do espirito e penetrar mais intimamente no mecanismo de sua uni5o". Diz Bergson que, no que se re- fere ao problema da relagiio entre a matiria ou o corpo e o espirito, alguns pensadores sustentam a teoria do paralelismo psicofisi- co, segundo a qua1 os estados mentais e os estados cerebrais siio dois modos diversos de falar da mesma coisa ou processo. Contra a reduqio do espirito h matQia, Bergson prop6e e reafirma a idCia de que o cCrebro

niio explica o espirito e que "na conscitncia humana ha infinitamente mais do que no cCrebro correspondente".

Para iluminar essa tese, Bergson assume os dados das descobertas de psicofisiologia efetuadas na Cpoca, e realiza urna analise aprofundada da atividade da conscihcia, distinguindo trts momentos distintos dela, ou seja, a memdria, a recorda~iio e a percep- @o. A mem6ria coincide e se identifica com a pr6pria conscitncia. E C precisamente pela e na mem6ria que "nosso passado inteiro nos segue a cada momento", e o que "ouvi- mos, pensamos e quisemos desde a primeira infincia esta la, inclinado sobre o presente, que esta por absorver em si, premente B porta da conscitncia".

Dessa mem6ria espiritual - que C a "duragiio" da conscihcia - podemos dis- tinguir a recorda~iio. Nosso ser mais verda- deiro e mais profundo esta na mem6ria espi- ritual, mas a vida nos imp6e prestar atengiio ao presente e toma do passado unicamente o que C necessario para que possamos nos orientar no presente. E essa obra de selegiio da recordagiio util e do esquecimento do que nio serve ao presente C realizada pelo corpo e pel0 cCrebro: eles tiram do fluxo at6 abissal da conscihcia aquelas recordagijes funcionais para a insergio de nosso orga- nismo na situagiio do presente, atravCs das percepg6es. Em suma, pel0 ctrebro passa apenas urna parte, parte muito pequena, daquilo que C o process0 da consciincia, ou seja, passa unicamente o que pode se traduzir em movimento. Assim, podemos compreender melhor Bergson quando diz que na conscitncia ha infinitamente mais do que no cCrebro correspondente.

Para se realizar, a memoria espiritual necessita dos mecanismos ligados ao corpo - ja que C atravCs do corpo que agimos sobre os objetos do mundo -, mas C inde- pendente do corpo, de mod0 que urna lesio do cCrebro nio atinge a conscitncia, e sim muito mais a vinculagiio entre a conscitn- cia e a realidade: a conscitncia permanece intacta, ainda que perdendo o contato com as coisas. Para Bergson, a realidade C que, "sempre orientado para a agio, o corpo tem como fungiio essencial a de limitar a vida do espirito, tendo em vista a agiio". E faz isso atravCs da percep~iio, que C "a agiio possivel de nosso corpo sobre os outros corpos". A percepgiio C o poder de agio de nosso corpo, que se move com destreza entre as "imagens" dos objetos. Como imagem do passado, a recordagiio orienta a percepgiio presente, pel0 fato de agirmos sempre com base nas experitncias passadas.

Assim, "todo o passado da pessoa encontra-se aberto" at6 o extremo, que C a a@o no presente. Em cada instante de nossa vida temos, pois, urna ligagiio entre memoria e percepgiio, em vista da agso.

Desse modo, a mem6ria e a percep~iio se identificam respectivamente com o espi- rito e o corpo.

A mem6ria funde em urna totalidade a vida vivida; a percepgso consiste "em des- tacar, no conjunto dos objetos, a agiio pos- sivel de meu corpo sobre eles. A percepgiio, por conseguinte, nada mais C do que urna selegiio". Conseqiientemente, a liberdade da conscitncia encontra suas limitag6es na percepgiio. E a percepgiio, por seu turno, entra no fluxo da vida do eu, fundindo-se na mem6ria ou conscitncia. Eis, portanto, segundo Bergson, em que consiste a verda- deira relagiio entre espirito e mattria e entre alma e corpo: por um lado, a mem6ria "as- sume o corpo de urna percepgiio qualquer em que ele se insere" e, por outro lado, a percepgiio C reabsorvida pela memoria e se torna pensamento.

Bergson niio vt o universo confor- me Descartes, como dividido entre a res cogitans e a res extensa. No fundo, para Bergson, o espirito e a matCria, assim como a alma e o corpo, siio dois p6los da mesma realidade e nio duas realidades diferentes. E precisamente em A evolu@o criadora (de 1907) - obra que James definiu como "uma aparigiio divina" - Bergson passa da analise dos dados imediatos da conscitncia para a elaboragiio de urna visiio global da vida e da realidade, propondo a idCia de um evolucionismo cosmologico.

As teorias da evolugiio se distinguem em duas grandes classes: as mecanicistas e as finalistas. 0 evolucionismo mecanicista explica a evolugiio em termos da causa eficiente, o evo- lucionismo finalista com base na causa final; um com base em raz6es que determinam a evolugio por meio do passado, o outro com base em raz6es que determinam a evolugiio por meio do futuro. Por conseguinte, tanto o evolucionismo mecanicista como o finalista

siio deterministas - e justamente por isso dei- xam escapar a realidade da evolugiio. Com efeito, diz Bergson, a exemplo da vida da consciincia, a vida biologics niio C maquina que se repete, sempre idintica a si mesma, mas C uma constante e incessante novidade, C criagiio e imprevisibilidade, C vida sempre nova que, englobando e conservando todo o passado, cresce sobre si mesma.

A idiia de evolu@o criadora nos permite ir alCm das dificuldades e das fal- sidades do mecanicismo e do finalismo, ja que a vida "C realidade que se destaca claramente da matiria bruta". A vida, em suma, e' evolu@o criadora, criagiio livre e imprevisivel, C "impulso vital", que "niio precisa se distender para se estender". E a matiria nada mais C que o momento de pa- rada desse impulso vital. A vida C o impulso pel0 qua1 ela tende "a crescer em numero e em riqueza, pela multiplicagiio no espago e pela complicagiio no tempo"; trata-se de uma continua criagiio de formas, onde o que vem depois niio C de mod0 algum simples recombinaqiio dos elementos que jii antes existiam; ela C "agiio que continuamente se cria e se enriquece", ao passo que a matiria C "a@o que se dissolve e desgasta", que pro- gressivamente se despotencializa e degrada, o que C atestado at6 pel0 segundo principio da termodin2mica.

Para Bergson, "nZo ha coisas, mas apenas agi3esn. A matCria C impulso vital degradado, impulso que perdeu em criativi-

dade e que, desse modo, torna-se obstaculo para o impulso seguime, como a onda do mar que, retornando, transforma-se em obs- taculo para a onda que se levanta. A vida, ao contrario, C "corrente que, atravessando os corpos que ela pouco a pouco organizou e passando de geragio em geragiio, dividiu- se entre as espCcies e se dispersou entre os individuos [...I". Para Bergson, a matiria 6 urn refluxo do impulso vital, que, a partir de unidade originaria, se irradia e recai em urna multiplicidade de elementos cujo impulso e cuja criatividade vio se extinguindo.

A evolugio criadora, portanto, nio C um process0 uniforme. Ela i cornparavel explosiio de urna granada cujos fragmen- tos, por seu turno, tambCm explodem. Ela tambCm se assemelha a um feixe de colunas, cada urna das quais representa um caminho diferente da evolugio, urna das bifurcagdes na qua1 o impulso vital dispersa sua unidade originaria. Em outros termos, a evolugio se abre em leque, em diregdes divergentes, com os seres vivos se especializando em fungdes especificas e precisas. A primeira bifurcaqiio fundamental C a que se tem entre as plantas e os animais. Enjauladas na noite da incons- ciincia e da imobilidade, as plantas armaze- nam energia potencial; os animais, mbveis, vio h procura do alimento. E a conscitncia nasce precisamente dessa busca. 0s animais, por seu turno, se bifurcam ou "explodem" em outras diregdes, urna das quais leva is formas mais perfeitas de instinto, como nos himen6pteros, ao passo que outra, a dos ver- tebrados, leva, com a inteligtncia humana, para alCm do instinto. A realidade C que "em todos os outros pontos a conscitncia acabou em um beco sem saida; apenas com o homem ela prosseguiu seu caminho".

A vida animal nio se desenvolveu em urna diregiio iinica. E em algumas dessas direqdes, como aquela em que acabaram os moluscos, ela encontrou becos sem saida. Entretanto, no que se refere h mobilidade e a conscitncia, encontrou seu maior sucesso nos artr6podes e nos vertebrados. A evolu- qiio dos artr6podes manifesta sua melhor express50 nos insetos, especialmente nos himenopteros, ao passo que a dos verte- brados se manifesta no homem. Enquanto, na linha dos artrbpodes, a evolugio leva a formas sempre mais perfeitas de instintos, na segunda ela leva a inteligincia, embora certa "franja de inteligincia" acompanhe o instinto e um "halo de instinto" permanece em torno da inteligincia.

Mais precisamente, porCm, o que C o instinto, e em que consiste a inteligincia? Como escreve Bergson, "o instinto C a fa- culdade de utilizar e tambCm de construir instrumentos org?inicos, a inteligtncia C a faculdade de fabricar e empregar instrumen- tos inorgiinicos [...I. Instinto e inteligtncia representam, portanto, duas soluqdes diver- gentes, mas igualmente elegantes, do mesmo problema".

E esse C o problema da vida (de mod0 que se compreende que, originariamente, o homem C homo faber e niio homo sapiens). 0 instinto funciona por meio de orgios na- turais, a inteligincia cria instrumentos artifi- ciais. 0 instinto C hereditirio e a intelighcia nio; o instinto volta-se para urna coisa, ji a inteligtncia C conhecimento das relaqdes entre coisas; o instinto C inconsciente, a inteligincia consciente; o instinto C repeti- tivo, ao passo que a inteligtncia C criativa. 0 instinto, justamente, C repetitivo e rigido, C hibito; ele apresenta solugdes adequadas, mas para um s6 problema, incapaz de variar. Por seu turno, a intelighcia niio conhece as pr6prias coisas, mas as relagdes entre coisas. Por isso, mediante os conceitos, ela conhece as "formas" e, afastando-se da realidade imediata, pode prever a realidade futura. Por razdes praticas, pois, a inteligincia analisa e abstrai, classifica e distingue, subdividindo a duraqiio real - como em urna pelicula ci- nematografica - em urna strie de diferentes estados. Mas "mil fotografias de Paris niio sio Paris".

Assim, nem o instinto nem a inteli- gincia (e a citncia que esta produz) nos dio a realidade: "Ha coisas que somente a intelighcia C capaz de procurar, mas que nunca encontrara por si s6; somente o ins- tinto poderia descobri-las, mas este nio as procurara jamais".

A int~iq&o COMO t)rg&o da metafisica

Entretanto, a situaqio niio C deses- peradora. E nio o C porque a inteligincia, que nunca esta completamente separada do instinto, pode voltar conscientemente para o instinto. E, quando isso acontece, temos a intui@o, que C "instinto que se tornou

desinteressado, consciente de si, capaz de refletir sobre seu proprio objeto e de amplia- lo indefinidamente".

A intelighcia gira em torno do ob- jet0 e toma o maior numero possivel de vis8es dele a partir do exterior, mas nHo entra nele; mas, "ao contririo, a intuiq5o C que nos conduzira ao interior da vida". A intelighcia produz analise e despedaqa o devir. Mas a intui@o atua atravis da simpatia; e, com ela, "nos transporta para o interior de um objeto para coincidir com o que tal objeto tem de unico e, portanto, de inexprimivel" (inexprimivel atravCs dos simbolos e conceitos da intelighcia). A in- tuiqiio "6 a vis5o do espirito pel0 espirito": ela 6 imediata como o instinto e consciente como a intelig2ncia.

Que a intui@o seja um process0 real C demonstrado pela intuiqiio estCtica, onde as coisas aparecem privadas de todos os laqos com as necessidades cotidianas e com as premgncias da aq5o. E C tambCm a intuiq5o que nos revela a duraqiio da consciencia e o tempo real, e que nos torna conscientes da liberdade que somos nos mesmos. A intuiqiio C o 6rgiio da metafisica: a ciincia analisa, mas a metafisica intui, fazendo-nos assim entrar em contato direto com as coisas e com aquela esscncia da vida que C a duraqso.

A intuiq5o C sondagem da esscncia do real e a metafisica C "a ciencia que se prophe superar a barreira dos simbolos construidos pel0 intelecto". A intuiqiio, como escreve Bergson, "alcanqa a posse de um fio: e ela pr6pria devera ver se esse fio sobe at6 o cCu ou se se detCm a alguma distsncia da terra. No primeiro caso, a experihcia metafisica se vinculara i dos grandes misticos - e eu posso constatar, por minha conta, que essa C a verdade. No segundo caso, as experi2ncias metafisicas permanecerso isoladas umas das outras, sem, no entanto, contrastar entre si. Em todo caso, a filosofia nos tera erguido acima da condiqiio humana".

Sociedade fechada e sociedade abevta

0 impulso vital, que se detCm nas outras espCcies vivas, enrijecendo-se na repetis50 fixa de comportamentos sempre idinticos, no homem supera os obst~culos, expressando-se na atividade criadora hu- mana, cujas principais formas s5o a arte, a filosofia, a moral e a religiiio. Em sua ultima obra, As duas fontes da moral e da religizo (1932), Bergson dirigiu sua atenq5o preci- samente para o tema da criatividade moral e religiosa do homem. Assim, partindo do estudo da consciencia, ele, com A evolu@o criadora, passa para uma teoria do universo e conclui com uma teoria dos valores (mo- rais e religiosos).

Em sua opini50, as normas morais tEm duas fontes: a) a press20 social e b) o impulso de amor. a) No primeiro caso, as normas s5o precisamente o fruto da press50 social e ex- pressam as exighcias da vida associada dos diversos grupos humanos, assim como eles se deram e se d5o na hist6ria. E C a historia que nos ensina que o individuo se encontra em sua sociedade de mod0 analog0 ao mod0 em que uma cClula esta no organism0 ou uma formiga no formigueiro. Geralmente, o individuo segue o caminho que encontra ji trilhado pelos outros e codificado pelas normas de sua sociedade, conforma-se is regras dessa sociedade, exalta seus ideais e procura se adequar a eles. 0 que esti na base da sociedade C apenas o habito de con- trair hhbitos. E, em analise profunda, isso C o unico fundamento da obrigaqiio moral. Mas essa moral da obrigaq5o e do habito C a moral da sociedade fechada, onde o indi- viduo age como parte do todo e esse todo C um grupo determinado, como a naq50, a familia ou o clube. b) Entretanto, segundo Bergson, a press50 social niio C a iinica fonte da mora- lidade e niio consegue, como pretenderam os positivistas, explicar a vida moral do homem em sua totalidade e em suas caracteristicas mais tipicas. Na realidade, n5o existe so- mente a moral da obrigaqiio e do habito, isto 6, a moral relativa is varias sociedades fechadas da historia, mas tambCm existe a moral absoluta, que C a moral da sociedade aberta. Essa C a moral do cristianismo, dos shbios da GrCcia e dos profetas de Israel. Essa moral C obra criadora - criadora de valores universais - de herois morais como Socrates ou Jesus, que viio alCm dos valores do grupo ou da sociedade a que pertencem para ver o homem enquanto homem, a hu- manidade inteira - e a humanidade inteira e' a sociedade aberta. 0 fundamento da moral aberta e' a pessoa criadora; seu fim e' a humanidade; seu contezido e' o amor para com todos os homens; sua caracteristica e' a inova@o moral, capaz de romper com os esquemas fixos das sociedades fechadas. A

que

moralidade aberta C algo que niio se ensina: C a moral dos grandes misticos e reveladores, e de todos os que seguem a inspiraqiio que os induz a segui-10s.

Como na vida moral, tambCm na vida religiosa Bergson distingue entre religiiio estatica e religiiio didmica. Tecida de mitos e fhbulas, a religiiio estatica C resultado do que Bergson chama de fun~iio fabuladora, que se desenvolve durante a evoluq5o para objetivos eminentemente vitais. 0 ser huma- no tem intelighcia, que representa ameaqa continua, sempre pronta a voltar-se contra a vida. 0 ser inteligente tende ao egoismo e a infringir suas relaq6es sociais; ele tern cons- cicncia de sua pr6pria moralidade; conhece a imprevisibilidade do futuro e a precarie- dade dos empreendimentos humanos. Com suas fiibulas, seus mitos e suas superstiq6es, a religizo reforqa os laqos sociais entre o homem e seus semelhantes. Por isso, "a re- ligiiio primitiva [. . .] C uma precaugiio contra o perigo que se corre, quando se comeqa a pensar, a pensar somente em sin. Altm disso, a religiiio dii a esperanqa da imortalidade, oferece ao homem a idCia de defesa contra a imprevisibilidade e a precariedade do futuro, e lhe di o sentido de proteqiio sobrenatural e a crenga de poder influir sobre a realidade, especialmente quando a tCcnica se mostra impotente.

Assim, a religizo C a defesa da ameaqa da intelighcia contra o homem e a socie- dade. Nesse sentido, ela C religiiio natural, fruto e funqiio da evoluqiio natural. Para Bergson, essa religiiio estatica e natural C in- fra-intelectual. Mas ela niio C a unica forma

de religiiio. Ao lado dela, ha a religiiio supra- intelectual, a religiiio dinimica para a qual os dogmas siio apenas cristalizag6es e que mergulha no impulso vital e o continua. Essa religiiio, a religiiio dinimica, C o misticismo, cujo resultado, como escreve Bergson, "6 a tomada de contato e, conseqiientemente, a coincidencia parcial com o esforgo criador que a vida manifesta. Esse esforgo 6 de Deus, se niio for o pr6prio Deus". 0 amor do mistico por Deus, na opiniiio de Bergson, coincide com o amor de Deus pelo proprio Deus: "Deus C amor e objeto de amor: nisto reside todo o misticismo."

Enquanto o misticismo neoplat6nico ou o misticismo oriental C contemplativo e, por isso, niio crc na eficacia da agiio, Bergson ve o misticismo adequado naqueles misticos (como siio Paulo, siio Francisco de Assis, santa Teresa, santa Catarina de Sena ou Joa- na D'Arc) para os quais o Cxtase constitui ponto superior de impulso para a agiio no mundo. E, assim, o amor a Deus torna-se amor pela humanidade.

E, alCm disso, so a experihcia mistica esta em condig6es de fornecer a unica prova da existencia de Deus; a concordincia dos misticos, niio somente cristiios, mas tambCm de outras religiGes, mostra precisamente a existencia real daquele Ser com o qual a intuigao mistica p6e em contato.

A religiiio dinimica ou aberta C a reli- giao dos misticos. E, como destaca Bergson, a humanidade tem urgente necessidade de genios misticos nos dias de hoje. Com efeito, a humanidade, atravis da ticnica, ampliou sua a@o incisiva sobre a natureza e, desse modo, podemos dizer que o corpo do homem se engrandeceu alCm da medi- da. Pois bem, esse corpo engrandecido, diz Bergson, "espera um suplemento de alma, e a mecinica exigiria uma mistica". Esse suplemento de alma C necessario para curar os males do mundo contemporineo.

(I durqdo real

cssso ds organizag60 ou de compenstra~60 rnljtuo dos fatos de consci&ncio, que constitui a verdodeiro durcq60".

Mas para nos 6 incrivelmente dificil re- prssentar a duragdo em sua pureza origin6ria; e isso sem dljvida prov&m do fato de que n6s ndo somos os ljnicos a durar: as coisas sxternos - parece - duram como nos, e, considerado a partir desta irltimo ponto de vista, o tempo se assemelha muito a um meio homog&neo. Ndo s6 os momentos desta duragdo parecem ser externos uns 00s outros, como o seriam os corpos no espago, mas o movimento percebido pelos nossos sentidos 6, de algum modo, o sinal tangivel ds urna durqdo homog&nea s mensur6vel. Mas h6 mais: o tempo entra nas formulas do mec6nic0, nos c6lculos do astr6no- mo e at& do fisico, sob a formo de quantidade. Mede-se a velocidade de um movimento, o que implica que tamb6m o tempo seja uma grandeza. E a pr6pria an6lise que acabamos de tsntar deve ser complatada, pois se a dura@o propriamente dita ndo 6 medida, o que medem entdo as oscilagdes do phndulo? Rdmitir-se-6, a rigor, que a durag8o intarna, percebida pela consci&ncia, se confunde com o enca~xar-se dos fatos de consci&ncia uns nos outros, com o enriquecimento gradual do su; mas, dir-se- 6, o tempo que o astr6nomo introduz em suas formulas, o tempo quo nossos relocjos dividam em pequeninas partes iguais, esse tempo & outra coisa, & uma grandeza mensur6vel e, portanto, homog&nea. Todavia, ndo Q assim: um exame acurado dissipar-6 tambbm esta ultima ilusdo.

Quando sigo com os olhos no quadrants de um rslogio o movimento do ponteiro que corresponde as oscila~des do p&ndulo, ndo mqo a duragdo, como podaria parecer; ao contrbrio, limito-me a contor simultoneidades, coisa muito difsrente. Fora de mim, no sspago, h6 uma ljnica posi@o do ponteiro e do p&ndulo, enquanto ntio resta nada das posi~dss passa- das. Dentro de mim desenvolve-se um processo ds orcjonizagdo ou de mutuo cornpenstrag80 dos fatos ds consci&ncia, que constitui a verda- deira duragdo: represento para mim aquilo que chamo de oscilagms passadas do p&ndulo, no mesmo tempo em que percebo a oscila~do atual, justamante porqua persist0 desta modo. Suprimamos agora, por um instants, o eu qua pensa estas assim chamadas oscila@x suces- sivas; teremos apenas a durag6o hstsrog&nea do eu, sern momentos externos uns aos outros, sem relagdo com o numero. Rssim, em nosso eu, h6 sucessdo sern exterioridade reciproca; fora do eu, exterioridade reciproca sern sucessdo: exterioridade reciproca, enquanto a oscilagdo presante & radicalmente distinta da oscilagdo precedents que ndo existe mais; mas aus&n- cia de sucessdo, snquanto a sucessdo exists apenas para um expectador consciente, que rscorde o passado s justaponha as duas osci- la@es ou seus simbolos em um espqo auxiliar. Ora, entre esta sucsssdo sem exterioridade e esta sxterioridade sern sucessdo realiza-se uma espbcie de troca, bastante similar 6 que os fisicos chamamos de fen6mano de endosmose. Como coda uma das fases sucessivas de nossa vida consciente, que, todavia, se compenetram entre si, corresponde a uma oscilagdo do p&n- dulo a ela simult6ne0, e como de outro lado essas oscila<des sdo claramente distintas, pois quando urna se produz a outra ndo exists mais, contraimos o h6bito de estabelecer a mesma disting8o entre os momentos sucessivos de nossa vida consciente: as oscilagdes do balancsiro a decompdem, por assim dizer, em partes externas umas as outras. Daqui a id&ia err6nea de urna duragdo interna homog&nea, an6loga ao sspago, cujos momentos id&nticos se sucederiam sern ss compenetrar. Mas, de outro lado, as oscila~des pandulares, que sdo distintas apsnas porque quando uma aparsce a outra ss dissolve, tiram de algum rnodo vanta- gem pala influ&ncia que assim exerceram sobre nossa vida consciente. Gragas recorda~do de seu conjunto que nossa consci&ncia organizou, slas se conservam para depois se alinhar: em poucas palavras, criamos para elas urna quarta dimensdo do aspago, que chamamos o tempo homog&neo, e que permite ao movi- mento pendular, embora se produza sempre no mesmo Iugar, justapor-se indsfinidamente a si mesmo. Cis, de fato, o que descobrimos agora, exparimentando estabslecer qua1 papel cabe sxatamente ao real e qual, ao inv&s, ao imagin6ri0, dentro deste processo muito com- plexo. Existe um espqo real, sern duragdo, mas em que certos fen6menos aparecem e desa- parecem simultaneamente a nossos estados

de consci&ncia. Existe urna dura$do real, cujos rnomentos heterog&neos se cornpenetrarn, mas coda rnornento do qua1 pods ser aproxi- mado de um estado conternporBneo do mundo externo e, por causa do efeito desta propria aproxirnagio, separado dos outros rnornentos. Do confronto dessas duos realidades qera-se urna representa<do sirnbolica do d&v$5o, extraida do espqo. F1 duraq3o assume assirn a forma ilusoria de um meio homog&neo, e a liga~do entre estes dois terrnos - o espqo e a dura~do - Q a sirnultaneidade, qua se poderia dafinir corno a intersec$do entre o tempo s o sspqo [. . .].

Diziarnos, portanto, que cliversos estra- tos de consci&ncia se organizam entre si, se compenetram, ss snriquecsrn sernprs rnais, e que a urn eu que ignorasss o espaGo, eles poderiam fornecer assirn o sentimento da durasdo pura; mas, j6 para srnpregar o terrno "cliversos", tinhamos isolado esses estados uns dos outros e os tinhamos extariorizado, urn em rela~do aos outros, em suma, nos os tinhamos justapostos; e assirn, a rnesrna expressdo a que tivernos de recorrer, traia nosso h6blto enraizado de desdobrar o tempo no espqo. E 6 necessariarnente a partir do irnagern desss desdobramento, urna vez qua ele se tenho rea- lizado, que tornarnos de emprGstimo os termos destinados a exprirnir o estado de urn espirito que ndo o tenha ainda realizado: asses terrnos 350, portanto, rnarcados por urn vicio oriqindrio, e a representag30 da urna rnultiplicidade sern rela$do corn o nljrnero ou corn o espqo, embora seja clara para um pensamento qua entre em si rnesrno e se abstraia, ndo pode ssr traduzida na linguagem do senso comurn. Todavia, se paralelamante ndo considerarrnos aquilo que chamamos de rnultiplicidade qualitativa, ndo poderernos sequer forrnular a idQia de urna rnultiplicidade distinta. Ndo G talvez verdade que, quando contarnos explicitarnsnte unida- des, alinhando-as no espa$o, no lado desta adi~do cujos terrnos id&nticos ss enfileiram sobre urn fundo homog&neo, nas profundida- des do espirito essas unidades continuam a se orqanizar urnas corn as outras, procssso de fato din6mic0, bastante sernelhante a represen- ta~do puramente qualitativa qus uma bigorna sensivel poderia ter do nirrnero crescente das batidas de urn rnartelo?

H. Bsqson, Ensoio sobre os dodos imsdiatos do consci&ncia, em Obros (1 889- 1896).

da mi60 entre alma r corpo

"Ern todas as doutrinas a obscuridads do prob/srno [do unido entre olrno s corpo] derivo do dupla antitsss qus nosso intslscto estobslecs sntrs o sxtenso e o insxtsnso, de urn lado, s, do outro, sntrs a qualidods s a quontidode.

Salisntarnos ao lonqo do carninho um pro- blem~ rnetafisico que ndo gostamos ds deixar em suspenso e, do outro, srnbora sejarn antes de tudo psicologicas, nossas pesquisas nos deixararn entrever, rnois de urna v~z, se ndo um meio para resolver o problerna, pelo rnenos o lado pelo qua1 poder enfrent6-lo.

Esse problerna Q nada rnenos que o do unido entre a aha e o corpo. Ele se irnpde a nos corn for~a, para que distingarnos profundarnenta a matbrio do espirito. E ndo podemos conside- r6-lo insolljvel porque definirnos o espirito e a mathria por meio de caracteriza@es positivas, e ndo por rneio de negacdes. E, efetivarnente, G exatarnente no matGria que nos colocoria a percep@o pura, assim corno, corn a membia, podsrernos j6 penstrar realrnente no proprio es- pirito. Mas, de outro lado, a rnesrno obssrva~do psicologica, que nos revslou a distin~do entre a rnatQria e o espirito, pee-nos diante de sua unido. nssirn, ou nossas an6lises estdo rnarca- das por urn vicio originario, ou entdo devern nos ajudar a sair das dificuldadss que levantarn.

Em todas as doutrinas a obscuridade do problerna provQrn do dupla antitese que nosso intelecto estabalece entre o extenso e o inextenso, de urn lado, e, do outro, entre a qualidade e a quantidade. < incontest6vel que o espirito se opde a matbrio ern prirneiro lugar corno umo unidade pura a urna multiplicidade essencialmente divisivel, e que, alGrn disso, nossas parcep~des se cornpdsm de quanti- dades hetsrog&neas, enquanto o universo percebido parace que se resolva em muclansas hornog&neas s calcul6veis. Haveria, portanto, de um lado o inextenso a a qualidade, e, do outro, a extensdo e a quantidade. Rejeitarnos o rnaterialisrno, que pretende derivar o prirneiro terrno do segundo; mas tarnbhrn ndo nceitarnos o idealismo, que pretends que o segundo seja sirnplesrnente urna constru$do por parts do pri- meiro. Sustentarnos, contra o materialisrno, qua a percspcdo ultrapassa infinitarnente o estado

cerebral; mas, contra o idealismo, procuramos sstabelscer qua a mathria supsra de todos os lados a representag60 que dela temos, representagdo que o espirito, por assim dizer, nela captou grac;as a uma escolha inteligente. Estas duas doutrinas opostas atribuem, uma ao corpo e a outra ao espirito, o dom de uma verdadeira e propria criq60, a partir do mo- msnto qua a primaira pretende que o chrebro gere a representac;60, e a segunda que nosso intelscto delinsie o plano da natureza. E, con- tra essas duos doutrinas, invocamos sempre o mesmo testemunho, o do consci&ncia, a qua1 nos mostra qua nosso corpo & uma imagem como as outras, e que nosso intelacto & uma faculdade daterminada de dissociar, de distin- guir s de opor logicamante, mas n6o de criar ou de construir. Rssim, prisioneiros volunt6rios da andliss psicolo9ica a, por conseguinte, do senso comum, parece qua, depois de ter Ieva- do ao desespsro os conflitos que o dualismo vulgar Isvanto. fechamos todas as saidas que a metafisica podia abrir para nos.

Todavia, sxatamsnte porque rejeitamos ao extrsmo o dualismo, nossa an6liss talvez tenha conseguido dissociar seus elementos con- traditorios. R teoria da percepgao pura, de um lado, e a da rnamoria pura, do outro, abririam enMo o caminho para uma aproximag60 entre o inextenso e o sxtsnso, entre a qualidade e a quantidade.

Queremos considerar a percepgao pura? Fazsndo do estado cerebral o inicio de uma ac;do e n6o a condigdo de uma percep<60, re- jsitamos a imagern percebida das coisas para fora da imagem de nosso corpo e, portanto, rscolocamos a psrcspgbo nos proprias coisas. Mas entdo, como nossa percep~6o Faz parte das coisas, estas Oltimas participam da natureza da nossa percspgdo. R extens60 material n6o 6, e n6o pods mais ser, a extansdo mljltipla de qua fala o sstudioso de geometria; ela se asssrnslha rnais sxatamsnte d extansdo indivisa ds nossa representagdo. 0 que significa que a andliss da percapgdo pura nos fez entrever na id6ia ds ~xtsns6o uma possivel aproximag60 entre o extenso e o inextenso.

Todavia, nossa concspg60 da memoria pura nos devsria Ievar, por um caminho paralelo, a atenuar a segunda oposi@o, a que existe entre a qualidade e a quantidade. Com afe~to, separamos radicalmente a lembran~a pura do estado cerebral que a prolonga e a torna eFicaz. R memoria, portanto, ndo G, em nenhum nivel, emanagdo da mathria; ao contrbrio, 6 a matbria, do modo sm qus a captamos em uma percepgbo concreta, que ocupa sempre certa duraq50, que deriva srn grande parte da mem6ria. Ora, onde est6 precisamente a diferenc;~ entre as qualida- des heterog&neas que se sucedem em nossa percepg60 concreta e as mudangas homog&neas que a cihncia situa por tr6s dessas perceppzs no espago? Rs primsiras s6o descontinuas e n6o podem ser deduzidas umas das outras; as segundas, ao contrdrio, se prestam ao c6lculo. Mas para lsso n6o h6, de fato, necessidade de transform6-las em quantidades, puras: seria o mesmo que reduzi-las a nada. E suf~c~ente que sua heterogene~dade seja, de algum modo, diluida o suficiante, a Fim de que, de nosso ponto de vista, se torne praticamente negligen- ci6vel. Ora, se toda percep<bo concreta, por mais breve que a suponhamos, & j6 a sintese, operada pela memoria, de uma infinidade de "percepg6es puras" que se sucedem, n60 se deve talvez pensar que a heterogeneidade das qualidades sensiveis derive de sua contragio em nossa memoria, e a homogeneidade relativa das mudan~as objetivas de seu abrandamento natural? E entbo, assim como CIS considerag6es sobre a extensbo diminuiam o intervalo entre o extenso e o inextenso, as consideraq3es sobre a tens60 n6o poderiam talvez diminuir o inter- valo entre a quantidade e a qualidade? H. Bergson. Mothrio s rnernorio. em Obros (1 889- 1896).

e &Japta@o ao ambiente

"[...I R evolu@o n60 trap urn cominho 6n1c0, mos empenha-se em vdrios diregdes, olids, sam visor a objetivos, e permonscs inventive em suos prdpr~as odoptoc;6as".

Que a condig60 necess6rio do evolu~6o seja a adaptagbo ao ambiente, de modo ne- nhum o podemos negar. E demasiado evidente que, quando uma esphcie n6o se submete ds condig6es de vida qua lhe s6o colocadas, ela desaparece. Mas outra colsa & reconhecer nos circunstbncias externas for~as com as quais a evolu@o deve se confrontar, e outra & ver ai as causas determinantes da evolu~6o. Esta ljltima tese & propria do mecanicismo. €la ~xclui abso- lutamente a hipotese de um impulso origindrio, ou seja, de um impeto interior que levar~a a vida, atravbs de formas coda vez mais complexas, a destinos sempre mais elevados. Esse impulso, todavia, & constat6vel; e um simples golpe de

vista sobre as esphcies Fosseis nos mostra que a vida teria podido deixar de evolver-se, ou evolver-se dentro de limites muito restritos, se tivesse tomado o partido, muito mais cdmodo, de se mumificar em suas formas primitivas. Cer- tos foraminiferos ndo mudaram desde o period0 siluriano at& hoje, impassiveis testemunhas das inumerdveis ravolu<des que abalaram a terra; as lingulas sdo hoje aquilo que eram nos tempos mais remotos da era paleozoica. R verdade & que a adaptaq50 explica as sinuosidades do movimento evolutivo, mas ndo suas dire~des gerais, e muito menos o movimento em si mes- mo. 0 caminho que leva ao povoado 6, de Fato, obrigado a subir encostas e clescer declives: ele ss adopto 6s acidentalidades do terreno; mas estas ndo sdo a causa do caminho nem Ihe imprimiram sua dire~do. Em todo momento for- necem-lhe o indispens6vel: o proprio solo sobre o qua1 se estende; mas, caso se considere o caminho em seu conjunto e n60 mais cada um de seus elementos, os acidentes do terreno ndo parecem mais que obstdculos, ou causas de retardo, porque o caminho apontava sim- plesmente para o povoado, e teria querido ser uma linha reta. 0 mesmo vale para a evolu~@o da vida e as circunstdncias qua ela atravessa; com a diferenc;a, todavia, qua a evolu<do ndo trqa um caminho unico, mas empenha-se em vClrias dirs<Oes, alias, sem visar a objetivos, e qua parmanece inventiva em suas proprias adapta@ss.

Todavia, se a evolu~do da vida 6 bem diferente de uma s&rie de adapta@es a circunst6ncias acidentais, ela ndo C tamb&m a rsaliza<do de urn plano. Um plano 6 dado antecipadamente, & representado, ou a0 me- nos representdvel, antes de ser realizado nos particulares. Sua execu@o completa pode ser rsmetida a um bturo longinquo, e at& retardada indefinidamente: sua id&ia ndo deixa por isso de ser formuldvel desde j6 em termos dodos. Ao contr6ri0, se a evolu<do & uma cria<do sempre renovada, ela cna pouco a pouco ndo s6 as formas do vida, mas tambhm as idbias que poderiam permitir que uma intelig6ncia as compreendesse, os termos que poderiam servir para exprimi-10s. lsso significa que seu futuro excede os limites de seu presente e ndo poderia desenhar-se nele em idbin.

Este 6 o primeiro erro do Finalismo. Ele traz consigo outro ainda mais grave. Se a vida realizasse um plano, @la deveria manifastar uma harmonia tanto mais elevada b madida que mais avansa. Rssim, a casa revela sempre rnelhor a idbia do arquiteto d medida que as pedras sdo acrescantadas ds pedras. Ro contrd- rio, se a unidade da vida se encontra totalmente no impulso que a impele sobre o caminho do tempo, a harmonia ndo @star6 na Frente, mas atrds. A unidade vem de uma vis o twgo: da- se no inic~o como um impulso, ndo posta no Fim como um ponto de atra$io. Comunicando-se, o impulso divide-se sempre mais. h medida que progride, a vida se dissemina em maniFesta@es que a comunhdo de origem tornard sem duvida complementares, sob certos aspectos, mas que ndo deixardo, por isso, de ser antagonistas e incompativais entre si. for isso a desarmonia en- tre as esp&cies se acentuard. € aqui enunciamos apenas a causa essencial; para simplificar, su- pusemos qua toda sspbcie acolhesse o impulso recebido para transmiti-lo a outras, e que, em todos os sentidos em que a vida se evolve, a propagqdo tenha lugar em linha reta. Na rea- lidade, h6 esp&cies que se det&m e outras que invertem o cam~nho. A evolu@o ndo & apenas um movimento para frente: em muitos casos nos a vemos marcar passo, mais Frequentementq ainda desviar-se, ou antdo voltar para trds. E necess6rio que seja assim, como mais adiante mostraremos: as mesmas causas que div~dem o movimento evolutivo fazem de Fato com que a vida, evolvendo-se, se desvie com Frequ&ncia de si mesma, fixando-se sobre a forma que, um momanto antes, produziu.

H. Osrgson,

R ~voIy60 criodoro.

I. 3 renovac6o da teoIo9ia protestante

A teologia protestante do seculo XIX e da primeira metade do seculo XX foi dominada pela teologia liberal, que encontra seus representantes de maior relevo em Albrecht Ritschl(1822-1889) e em seu discipulo Adolf von Harnack (1851 -1 WO), autor da obra-prima que 6 A hist6ria dos dogmas (3 vols., 1886-1889). 0 que se tem a dizer a respeito da teologia liberal e que ela, em linha geral, 4 uma concepgao em que se tende a mostrar um substancial acordo Barth: entre cristianismo e cultura. Deus e

Contra tal posiqao levantou-se a voz de Karl Barth (1886- "o totalmente 1968), chefe da teologia dialetica: em seu comentario A Epistola aos Romanos de sao Paulo - saido em 191 9 e, em segunda edi@o, em 1922 - denuncia todas as tentativas de engaiolar a Palavra de outre" + 3 Deus nas redes da razao humana, reafirma a infinita distancia qualitativa entre o homem e Deus, salienta a oposiqilo substancial entre Deus e tudo aquilo que e humano. Deus C o "totalmente outro", e nao podemos alcan~a-lo com a filosofia ou a razao. A fb 6, de um lado, a intervenqao milagrosa de Deus na vida do homem e, do outro, urn abandonar-se existencial do homem a Deus.

Tambem para Paul Tillich (1886-1965) - autor de Teologia sistemdtica (3 vols., 1951 -1 963) -as provas racionais da existencia de Deus n3o s%o v6lidas. nl,ich: a fe a resposta

de Deus

De acordo com Barth, Tillich escreve: "Se Deus e derivado do 2 pergunta mundo, n%o pode ser aquele que o transcende infinitamente". de homem

Todavia, em desacordo com Barth, Tillich nao pensa que a ontologicamente fe seja obra exclusiva de Deus: a f6, com efeito, 6 a resposta de miseravel Deus A pergunta de um homem consciente de sua propria miseria + § 2 ontologica. Te6rico da dernitiza@o 6 Rudolf Bultmann (1 884-1 976). Corn a obra Novo Testamento e mitolo ia. 0 problema da demitizagao da mensagem neotestamentdria 9 1941) ele pretendeu, justamen- ~~~~:~: conteljdo te, "demitizar" a narrasao evangelica, descobrir o significado e,encial profundo escondido sob as concep@3es mitologicas; quis distinguir do Evange/ho entre o conteddo essential do Evangelho e a forma mitol6gica para a/em da assumida por esse conteudo. E o significado mais profundo da pregaqao de Jesus C - afir- ma Bultmann em Jesus Cristo e mitologia (1958) - que e precis0 forma "mitologica" + § 3 estar abertos ao futuro de Deus, estar prontos "para receber este futuro que pode sobrevir como um ladrao na noite [...I".

Karl Barth: a "teologia dialktica"

contra a "teo109ia liberal"

A teologia protestante alemii do sC- culo XIX e da primeira metade do sCculo XX foi dominada pela teologia liberal que, inspirando-se em Schleiermacher, Hegel e tambCm em David Strauss, encontra em Albrecht Ritschl (1822-1889) e em seu dis- cipulo Adolf von Harnack (1851-1930) seus representantes mais ilustres. A obra-prima de von Harnack 6 A hist6ria dos dogmas (3 vols., 1886-1889), que tem como idCia central a de que o mCtodo hist6rico-critic0 C o 6nico mitodo que pode nos oferecer uma interpreta~iio cientifica das Escrituras e da Tradiqiio. Trilhando esse caminho, embora permanecendo cristiio convicto, ele chega a negar tanto os milagres como os dogmas. Em sua opiniiio, os milagres seriam resultado da mentalidade m6gica dos primeiros discipu- los, e os dogmas seriam fruto da helenizaqiio do cristianismo. Como quer que seja, em linhas gerais, a teologia liberal tendia a mos- trar um acordo substancial entre cristianismo e cultura, quando niio se arriscava h redugiio do cristianismo h cultura.

Essa teologia, ligada h cultura, isto 6,; filosofia e, no fundo, h politica de sua Cpo- ca, sofreu tambCm o destino de sua Cpoca. As agitag6es politicas das primeiras duas dtcadas de nosso sCculo, juntamente com o aparecimento de novas orientag6es filos6fi- cas, como, por exemplo, o existencialismo, certamente contribuiram para o nascimento e o desenvolvimento daquela revolugiio teo- logica representada pela teologia diale'tica, que encontrou em Karl Barth (1886-1968) seu mais eminente representante.

Em 191 9, Barth publicou seu comenta- rio h Epistola aos Romanos, de siio Paulo, saindo em 1922 a importante segunda edi- giio revista da obra. Referindo-se a Kierke- gaard (para o qua1 existe "infinita diferenga qualitativa" entre Deus e o homem, e que havia dito que, para o crente, a raziio serve unicamente para estabelecer que ele "cre contra a raziio"), Barth, em apaixonado protesto, denunciou todas as tentativas de aprisionar a Palavra de Deus nus grades da raziio humana. E, contra a teologia liberal, que considerava a Revelagiio cristii como termo final ou desenvolvimento harmhi- co da natureza e da raziio humana, Barth reafirmou niio apenas a infinita distLincia qualitativa entre o homem e Deus, mas tambCm a oposi@o substancial entre Deus e tudo aquilo que C humano, vale dizer, a raziio, a filosofia, a cultura. Diz Barth que os te6logos liberais, com sua pretensiio de tornar a fC popular com a ajuda da ciencia das religiGes, do mCtodo hist6rico e da filosofia, injuriaram a transcendencia de Deus. E "uma canonizagiio geral da cultura, como a que foi feita por Schleiermacher, niio pode ser levada em conta por nos". Deus C "o totalmente outro", e C inutil pensar em alcanga-lo com a raziio, com a filosofia, com a religiiio ou com a cultura.

A raziio da teologia liberal pretende que a fC niio seja um risco ou um salto. Mas Barth, ao contrario, quer preservar a alteridade de Deus, o seu ser "totalmente outro".

A fC niio se ap6ia na forga da raziio; ela C muito mais o milagre da intervengiio radi- cal de Deus na vida do homem, ao passo que a submissiio do homem a Deus C o paradox0 "irracional" de um abandon0 existencial. E C aqui que encontramos as motivag6es dos ataques de Barth contra a analogia entis.

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