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Regras iguais para todos?

Quem deseja atuar na revenda de combustíveis, precisa atender a diversas exigências legais e ambientais, de forma a garantir a segurança da atividade e a preservação ambiental. O mesmo vale para empresas que fazem o transbordo desse tipo de produto. No entanto, apesar disso, a ANP já se mostrou favorável para iniciar um projeto-piloto de delivery de combustíveis

POR ROSEMEIRE GUIDONI

Entre outubro e novembro de 2019, o lançamento da Gofit, aplicativo para entregas de combustível na modalidade delivey deu o que falar. Embora, para algumas pessoas, esse serviço possa parecer uma modernização e tendência natural do mercado, a exemplo do surgimento de serviços como Uber e Netflix, que acabaram ocupando o espaço dos táxis convencionais e das locadoras de vídeo, não se pode negar o risco dessa alternativa, tanto para o meio ambiente quanto para os consumidores.

O serviço foi suspenso pela ANP no início de novembro, em decorrência de uma liminar obtida pelo Sindcomb (sindicato que representa a revenda do município do Rio de Janeiro). No entanto, a reportagem da Combustíveis & Conveniência teve acesso a um documento da agência (Nota Técnica 5/2019), que cita em sua conclusão ser favorável à “continuidade pela conveniência e oportunidade da continuidade do comércio de combustíveis por parte de um determinado posto revendedor, como projeto-piloto de delivery de combustíveis a ser acompanhado pela fiscalização da

Divulgação

ANP durante o período de 360 dias, mediante o cumprimento dos requisitos estabelecidos”. Vale explicar que o posto, citado no documento, tem contrato com a transportadora LogFit, que é quem faz as entregas do produto. A LogFit, por sua vez, pertence ao grupo Refit (que integra a rede de negócios da Refinaria de Manguinhos).

Questionada, a agência reguladora informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não iria se pronunciar. Enquanto isso, resta aos demais agentes de mercado tentarem entender como um veículo de entregadeliveryde com

Venda delivery de combustíveis tende a ser autorizada pela agência reguladora, porém especialistas alertam para o risco de contaminação ambiental e de incêndios

bustíveis poderá atender às exigências de segurança que são necessárias para a atividade.

“Na minha opinião, a ANP está deixando de exigir regras que os postos, os Transportadores-Revendedores-Retalhistas (TRRs) e os Pontos de Abastecimento (PAs) devem cumprir”, disse Bernardo Souto, consultor jurídico de meio ambiente da Fecombustíveis.

Segundo Souto, seria importante trabalhar com o conceito de fonte móvel de contaminação. Os postos, como fontes fixas, quando comparados com as fontes móveis de poluição/contaminação, apresentam menos riscos ambientais e possuem mais exigências do que essa modalidade de compra de combustível. “A ANP, sem considerar esse paradigma, está facilitando o uso desta modalidade, sem pensar nas consequências ambientais futuras, inclusive para os consumidores, que podem ser enquadrados como poluidores indiretos, nos termos da Lei 6.938/81”, destacou o advogado.

Áreas confinadas e risco de explosão

Para abrir um posto de combustíveis, as instalações precisam estar em conformidade com as regras do Corpo de Bombeiros. Os tanques de armazenamento de combustíveis são espaços confinados, com risco de explosão. Por isso, as instalações precisam seguir regras adequadas para garantir a segurança de funcionários e de clientes, além de toda a população no entorno do posto. Assim, é possível pressupor que o abastecimento de um veículo em ambiente fechado, como a garagem de um condomínio, apresenta riscos. “Imagine o risco de estacionar seu carro ao lado de outro que pode adquirir esse tipo de serviço”, disse Souto.

Além disso, é obrigatório que os postos revendedores atendam às re

gras previstas pela NR 20, que estabelece requisitos mínimos para a gestão de segurança e saúde no trabalho contra os fatores de risco de acidentes provenientes de extração, produção, armazenamento, transferência, manuseio e manipulação de inflamáveis e de líquidos combustíveis. Essa norma prevê algumas regras para instalação, com identificação de áreas classificadas, ou seja, nas quais existe atmosfera explosiva ou onde é provável sua ocorrência, a ponto de exigir precauções especiais para construção e utilização de equipamentos elétricos. Além da NR 20, há também a NR 10, que exige instalações elétricas próprias, uma vez que os tanques e demais equipamentos de abastecimento são considerados fontes potenciais de explosão. “E não basta o caminhão estar adequado, uma vez que a legislação de segurança determina que toda a bacia atmosférica classificada esteja em conformidade. Assim, o veículo que recebe e o local onde ele está sediado devem se submeter as exigências de segurança, fato não avaliado pela ANP”, opinou Souto.

Marciano Franco, engenheiro especialista em segurança do trabalho, também constata os riscos. “Nos abastecimentos no formato delivery, o local é totalmente aleatório, podendo ser aberto ou fechado, próximo de ambientes inadequados e sem instalações físicas necessárias, como canaletas de contensão e aterramentos. Assim, é inviável atribuir áreas classificadas ou fazer uma análise prévia de riscos nesses espaços, em cada operação”, observou.

20 • Combustíveis & Conveniência Paulo Pereira Postos precisam ter instalações físicas adequadas, como canaletas, que são necessárias para evitar a contaminação do solo

Franco lembrou, ainda, que no âmbito da NR 20, o controle de fontes de ignição no ambiente do abastecimento é obrigatório. O item 20.13.1 destaca que “todas as instalações elétricas e equipamentos elétricos fixos, móveis e portáteis, equipamentos de comunicação, ferramentas e similares utilizados em áreas classificadas, assim como os equipamentos de controle de descargas atmosféricas, devem estar em conformidade com a NR 10”. Até mesmo o uso de celulares em postos de combustíveis é considerado uma possível fonte de ignição, o que deixa claro o risco de abastecimento fora de um ambiente controlado.

Outro detalhe previsto pela NR 20 é que o empregador deve sinalizar a proibição do uso de fontes de ignição nas áreas sujeitas à existência de atmosferas inflamáveis. No entanto, como fazer isso em ambiente aberto? Em reunião na ANP, de acordo com a Nota Técnica 5, os responsáveis pelo aplicativo informaram ter contrato com uma empresa prestadora de serviços de pronto atendimento, que pode ser acionada em caso de emergência.

“Essa postura vai contra todas as premissas de segurança e gestão de riscos, pois é reativa e não preventiva. Vale dizer que inverteu-se a ordem natural das coisas. De nada importa ter uma empresa de atendimento de emergências se a área onde vai ocorrer o transbordo estiver irregular. O que eles têm que analisar é se a área pode ser adequada, ou apontar os locais mais apropriados”, disse Souto.

A empresa responsável pelo aplicativo conta com seguro de responsabilidade civil, emitido pelo Bradesco, além dos documentos obrigatórios para transporte, concedidos pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), pelo Instituto Na

cional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), que é a Análise de Risco e Operacional, além de aprovação do veículo no Departamento Nacional de Trânsito (Detran) e no Instituto Estadual do Ambiente (Inea), que concedem as autorizações dos caminhões para transporte e abastecimento de combustíveis.

“Isso pode ser um crime! Não foi apresentada licença para fornecimento móvel de combustível, mas, sim, para o transporte deste tipo de hidrocarbonetos. Na verdade, o órgão ambiental, ao licenciar uma fonte móvel, autoriza determinada rota, de ponto a ponto. Então, a licença ambiental pouco vale para um processo onde não se sabe o trajeto do veículo. Jamais um órgão ambiental licenciaria uma temeridade desta, se soubesse, de fato, o que vai ser feito”, analisou Souto.

Transbordo de combustíveis O transbordo de combustíveis também é considerado potencialmente perigoso, do ponto de vista ambiental. Em razão disso, inclusive, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) faz o cadastramento de instalações de TRRs para fins de identificação e monitoramento de áreas contaminadas. “Por que os esses estabelecimentos e os postos precisam fazer investigação de passivo ambiental e o serviço de delivery não?”, questionou Souto.

De qualquer forma, o arranjo comercial que envolve o delivery de combustíveis inclui três pessoas jurídicas: o posto revendedor,

Vista grossa

As regras do setor regulamentadas pela própria ANP são bem claras quanto à proibição da venda e entrega de combustível em domicílio. “O caso do Gofit, aplicativo de entrega de combustíveis ao consumidor final operado pela Refinaria Manguinhos, rebatizada Refit, fere o artigo 21, VII, da Resolução ANP 41/2013”, disse Arthur Villamil, consultor jurídico da Fecombustíveis.

É vedado ao revendedor “comercializar e entregar combustível automotivo em local diverso do estabelecimento da revenda varejista e, para o caso de posto revendedor flutuante ou marítimo, em local diverso das áreas adjacentes ao estabelecimento da revenda varejista”. Ou seja, o Gofit começou a comercializar combustíveis fora do estabelecimento revendedor, violando a norma da ANP, sem sequer ter pedido autorização prévia para fazer isso. “O que causa estranheza é que a ANP somente ficou sabendo da atuação da Gofit por meio de denúncias. Em vez de aplicar a lei igualmente a todos, a agência resolveu permitir que a Gofit continue atuando de modo ilegal durante um projeto-piloto por um ano. Será que se um posto revendedor tivesse comercializado produtos fora do seu estabelecimento a ANP também faria essa vista grossa?”, questionou.

Villamil cita que o entendimento da própria ANP sempre foi no sentido de proibir e autuar postos por comercialização de combustíveis fora do seu estabelecimento, fato que consta até mesmo na página do Facebook oficial da Agência.

o prestador do serviço tecnológico (aplicativo) e a transportadora. “A responsabilidade pelo produto e por toda a operação perante a ANP é do posto revendedor (Posto Vânia), que é o agente que comercializa o produto ao consumidor final e é regulado pela Agência”, destaca a nota técnica.

Emissões de benzeno

Outra questão que hoje atinge os postos revendedores é a necessidade de trocas de bombas de abastecimento, com a instalação de sistemas de recuperação de vapores, prevista pela Portaria 1109/2016, do Ministério do Trabalho e Emprego. A obrigatoriedade decorre do fato de que os frentistas ficam sujeitos à exposição ao benzeno que evapora do tanque dos veículos durante o abastecimento. Para preservar sua saúde e integridade, já foi estabelecido um cronograma que prevê a adequação de todo o parque de bombas nacional.

Esse é mais um investimento que precisará ser feito pelos postos, com foco na segurança do trabalhador. Em situações de abastecimento fora do ambiente do posto, se não houver a mesma obrigatoriedade de instalação de um sistema para recuperação de vapores, não apenas o trabalhador, mas, também, toda

a comunidade no entorno, sofrem a exposição ao benzeno.

Contaminação ambiental

Além das preocupações citadas, todos os postos revendedores precisam seguir as determinações da Resolução 273 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que estabelece uma série de regras para garantir a preservação ambiental. As normas, que completam 20 anos em 2020, são consideradas essenciais para evitar acidentes ambientais, uma vez que os postos são enquadrados como empreendimentos potencial ou parcialmente poluidores.

As regras estabelecidas pela Resolução têm o objetivo de evitar que eventuais vazamentos alcancem o so

Flexibilização das regras sem o devido cuidado preocupa revenda, que precisa seguir diversos procedimentos para evitar acidentes ambientais, minimizar os riscos de explosões e garantir a segurança de funcionários e de clientes lo ou galerias subterrâneas, comprometendo a qualidade da água. Quando isso acontece, a contaminação pode atingir áreas enormes. Por isso, já há duas décadas os postos revendedores precisaram se adequar, substituindo tanques comuns por modelos de parede dupla, instalando câmaras de contenção, canaletas e caixas separadoras de água e óleo. Todos os equipamentos precisam ser certificados e estar em conformidade com a legislação para que o posto consiga a licença de operação.

Além disso, em locais onde possa ter ocorrido uma contaminação, é necessário que sejam adotadas medidas de remediação e monitoramento, justamente para conter o problema e impedir o alastramento.

Aliás, para obter a licença de operação, a Resolução 273 estabelece que os postos precisam ter, entre outras coisas, o Atestado de Vistoria do Corpo de Bombeiros e o certificado de treinamento da equipe para atendimento a emergências e resposta a incidentes. Em um ambiente aberto, será que todas essas medidas são possíveis?

Pane Seca

Esse seria, supostamente, um bom nicho de mercado para o fornecedor de combustíveis na modalidade delivery. Porém, será que existe demanda suficiente para justificar o serviço?

Enquanto muito se discute sobre a viabilidade ou não do possível novo formato de operação, os

postos de combustíveis já têm uma nova obrigatoriedade, válida a partir de março de 2020. Para conseguir atender aos motoristas em situação de emergência por falta de combustível, a chamada pane seca, os postos precisam adquirir vasilhames específicos, certificados pelo Inmetro. As regras dos novos galões estão na Portaria 141/2019 e atendem às determinações da Resolução 41/2013 da ANP.

O galão certificado evita que embalagens comuns sejam descartadas de forma inadequada pelo consumidor, contaminando o meio ambiente, e também para impedir possíveis fraudes volumétricas.

Questão tributária

Uma das preocupações de Paulo Miranda Soares, presidente da Fecombustíveis, com a venda delivery, é o recolhimento de impostos. “Não sabemos se o que está sendo vendido tem o recolhimento adequado de tributos. Antes de instituir o serviço, é necessário regulamentá-lo, para que as regras sejam iguais para todos os agentes”, destacou.

No entanto, a concorrência desleal, baseada na elisão ou sonegação fiscal, é uma realidade e não é algo exclusivo do novo serviço. No interior de Minas Gerais, por exemplo, vários grandes consumidores vendem o produto diretamente ao cliente final, afetando a revenda local. Um empresário do setor, que preferiu manter seu nome sob sigilo, destacou que não há condições de concorrer com os agentes que atuam de forma ile

Liminar impede venda de combustíveis em domicílio

POR KÁTIA PERELBERG

O aplicativo de entrega de combustíveis em domicílio Gofit está suspenso na cidade do Rio de Janeiro desde 6 de novembro, quando o juiz Márcio Alexandre Pacheco da Silva, da 45ª Vara Cível do Rio, acolheu o pedido de liminar do Sindicato do Comércio Varejista de Combustíveis e Lubrificantes e de Lojas de Conveniência do Município do Rio de Janeiro (Sindcomb). O não cumprimento da decisão acarreta multa diária de R$ 100 mil.

A equipe do escritório Taunay & Rocha Associados questionou à ANP sobre aatuação da empresa Refit na chamada venda de combustíveis em casa, o delivery Gofit. Com uma cópia encaminhada a quatro diretores da agência reguladora - Aurélio Amaral, José Cesário Cecchi, Felipe Kury e Dirceu Amorelli - o Sindcomb dirigiu a representação a Décio Oddone, diretor-geral da ANP, em razão de anúncio, veiculado massivamente nas principais mídias do Estado do Rio de Janeiro, sobre a criação do Gofit. A empresa começou a revender gasolina C e etanol no dia 21 de outubro, em caminhões com capacidade para 1.000 litros, nos bairros da Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes e Vargem Grande, em afronta às leis.

O Departamento Jurídico Cível do Sindicato provou que os artigos 6º e 8º da Lei 9478/99, Lei Complementar no 43/99, do município do Rio de Janeiro e Resoluções 41/13 e 57/14 exigem requisitos rigorosíssimos para aprovar um estabelecimento como posto revendedor de combustível, de modo a garantir qualidade, quantidade e segurança ideais, bem como a isonomia entre os agentes econômico. Licenças de operação perante os órgãos públicos e privados, como Ibama, Inmetro, Corpo de Bombeiros, recolhimento regular de impostos, livros de movimentação de compra e venda, testes de estanqueidade e cursos de brigada de incêndio são algumas exigências sem as quais a operação de posto é proibida.

gal. “Essas empresas instalam um tanque, alegando ser para consumo próprio. Porém, vendem diretamente ao consumidor final, sem autorização e sem que sejam fiscalizadas. Há de tudo no interior, até mesmo empresas do setor agrícola que trazem combustível em galões, junto com outros insumos e até mesmo verduras, de São Paulo. Estamos quase na fronteira dos dois estados e, em São Paulo, o preço do combustível na bomba é menor do que eu, como posto revendedor, pago à distribuidora”, afirmou. n

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