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Kiki Mazzucchelli

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Índices

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Kiki Mazzucchelli

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Os curtas-metragens de Luiz Roque falam sobre gênero, cânones artísticos e história do Brasil de maneiras que conjuram tanto o passado quanto uma visão datada do futuro ao margear o presente. A virada mais sombria do seu último trabalho seria o sinal de um “agora” intrusivo e distópico?

O filme Ano branco (2013), de Luiz Roque, começa no ano de 2005. O cenário é um salão de conferências em uma cidade europeia não-identificada. “O que me interessa na testosterona é utilizá-la como uma droga política”, diz a atriz de bigode que interpreta o acadêmico queer Paul B. Preciado, enquanto aplica uma dose de Testogel no braço e descreve os efeitos químicos da substância no seu corpo. Preciado, que se encontra em transição desde 2014, publicou extensivamente sobre o controle político dos corpos pelas indústrias farmacêutica e pornográfica por meio da comoditização do desejo, tendo cunhado o termo “capitalismo farmacopornográfico”. A primeira parte do filme é inteiramente dedicada à palestra fictícia proferida pela personagem – cujas falas foram tiradas do ensaio “Gender and Sex Copyleft” (2006), de Preciado – que é concluída com a declaração de que “a revolução

1 Publicado originalmente na Revista ArtReview, v. 68, nº. 6, Setembro de 2016, pp. 84-87. Agradecemos aos editores e à autora do artigo por autorizarem sua tradução e publicação neste catálogo.

vai começar pela apropriação dos nossos corpos como lugares essenciais do desejo, livres das restrições e do copyright”. Um corte para 25 anos depois e um voiceover computadorizado nos informa que a Organização Mundial de Saúde não considera mais o transexualismo como uma desordem psicológica. Nesse conto de ficção-científica utópico realizado por Roque, uma bela mulher transgênero é a última pessoa a ser analisada pelas autoridades sanitárias antes do fechamento definitivo de todos os centros de tratamento de desordens ligadas à mudança de sexo. Nós a vemos deitada, nua, em um leito hospitalar, enquanto uma engenhoca robótica de baixa tecnologia – uma cabeça de manequim montada sobre um braço mecânico – escaneia cada centímetro do seu corpo modificado. A cena final é um plano frontal do torso nu e da cabeça da mulher sobrepostos por círculos cintilantes de luz verde, como uma deusa a sinalizar que a revolução de gênero finalmente chegou.

Ano branco foi comissionado pela Bienal do Mercosul, sediada na cidade brasileira de Porto Alegre. Com 7 minutos de duração, é o trabalho mais longo de Roque até então – a maioria dos seus filmes não alcançam a marca dos 5 minutos. Além disso, vale notar que possui uma narrativa bem mais discernível e linear do que outros de seus trabalhos, nos quais os sentidos são produzidos exclusivamente pela potência expressiva das imagens. Com a utilização frequente de tecnologias analógicas de filmagem (Super 8 ou 16mm), o artista cria composições cinematográficas com belas texturas que sugerem um deslocamento temporal para outros tempos históricos, seja o passado, seja o futuro imaginado no passado. Desse modo ele tece narrativas abertas que tocam, livremente, em ideias relativas às modernidades imaginadas ou ao corpo pós-gênero. As experimentações de Roque com a plasticidade imagética e a composição fílmica aparecem mais claramente em obras como O novo monumento (2012), filmado em preto-e-branco e 16mm. O filme começa com uma citação do ensaio “Nove pontos sobre a monumentalidade” (1943) – escrito colaborativamente pelo historiador da arquitetura Sigfried Giedion, pelo artista Fernand Léger e pelo arquiteto Josep Lluís Sert – na qual eles afirmam que os monumentos só podem existir em períodos marcados por uma consciência e uma cultura unificadora. Vemos, então, dois jovens de pé em um terreno baldio vestidos com trajes que lembram uma espécie de Mad Max tropical, enfeitados com espelhos, ossos e correntes. Eles começam a realizar movimentos sincronizados no estilo vogue, ao som de uma melodia tribal. A câmera de Roque captura os detalhes da paisagem rural ao redor e passa brevemente pela superfície ondulada de uma lagoa, pelo velho pavilhão da fazenda e por uma coruja

solitária, empoleirada no alto de um ramo que sai de um campo com grama alta, até parar na frente de um galpão. O portão desliza e se abre, revelando uma forma quadrada dividida por um corte curvo vertical: na verdade, uma réplica em menor escala de um monumento sem título do artista neoconcreto brasileiro Amílcar de Castro (1920-2002) localizado na movimentada Praça da Sé, no centro de São Paulo; e possivelmente uma de suas obras mais conhecidas. Agora, a escultura está na caçamba de um velho caminhão que segue ao longo de uma estrada de terra cercada por arbustos, acompanhado pela escolta improvável de três motoqueiros com equipamento completo de motocross, até desaparecer no horizonte. Na sequência seguinte, a escultura se materializou, misteriosamente, no meio de um campo remoto, algo como o monólito negro de 2001: Uma odisseia no espaço (2001: A Space Odissey, 1968). O filme termina com cenas de uma celebração nas ruas de Belo Horizonte, cidade na qual Castro viveu e trabalhou durante a maior parte de sua vida. Os dois artistas fantasiados do início do filme reaparecem dançando em meio ao público. Em O novo monumento, Roque vislumbra um mito de origem fictício para a sociedade brasileira, baseado no trabalho de um artista tardo-modernista que, a despeito de sua fama local, permanece virtualmente desconhecido fora de seu país natal. Ao escolher Amílcar de Castro, em vez de seus contemporâneos mais renomados internacionalmente – como Lygia Clark ou Hélio Oiticica – o artista mostra um desejo de expandir o escopo das narrativas hegemônicas da história da arte, ao mesmo tempo em que sobrepõe significados ligados ao neoconcretismo às conotações gays futurístico-primitivas do ritual realizado pelos dançarinos de vogue. Em última instância, o novo monumento do filme é produto de uma “consciência unificadora” fundada não no sucesso militar ou nas crenças religiosas, mas sim nas ideias abarcadas por um movimento artístico cujo experimentalismo heterodoxo ajudou a redefinir os limites da arte. Enquanto Ano branco imagina um futuro no qual os corpos estão livres das estruturas de poder gênero-normativas e O novo monumento vislumbra uma sociedade unificada pelos princípios do movimento artístico que floresceu no Brasil em meados do século XX, período de grande otimismo e inventividade cultural (interrompido abruptamente pelo golpe militar de 1964), o trabalho MODERN (2014) reúne ideias ligadas à arte moderna e ao corpo pós-gênero. Também filmado em preto-e-branco e 16mm, e produzido durante uma residência na Fundação Delfina em Londres, esse curta-metragem toma como ponto de partida a obra Recumbent Figure (1938), de Henry Moore, escultura icônica que mostra um corpo feminino

reclinado, talhado em pedra marrom clara. MODERN gira em torno do encontro entre uma réplica negra dessa escultura e um personagem baseado em Leigh Bowery, lendário performer e host de clubes londrinos que usou o próprio corpo como superfície para criar silhuetas exageradas. Inteiramente coberto por um catsuit de vinil, com quadris desproporcionalmente largos, seios pontudos e um monstruoso pé elefantino, o artista faz um jogo de sedução com seu “duplo”, enquanto se move ao som de uma música eletrônica suave. Ao alternar, com cuidado, planos elaborados que exploram os detalhes e as texturas dos corpos filmados, Roque parece interessado em realçar as correspondências visuais entre as figuras orgânicas abstratas de Moore e as formas distorcidas ou silhuetas exageradas criadas por Bowery, e no modo como ambas podem ser percebidas como transgênero. Mais ainda, a aproximação não-hierárquica entre um artista consagrado pela tradição e um performer underground que morreu prematuramente em decorrência da AIDS promove um choque subversivo entre os valores culturais discrepantes associados a Moore e Bowery. Com essa espécie de espelhamento entre o mestre moderno e o ícone gay contemporâneo, Roque aborda a relativa ausência de artistas que não sejam brancos, heterossexuais e homens na história da arte hegemônica, apontando para uma das muitas histórias da arte silenciadas, que aguardam para serem escritas. Seguindo suas investigações sobre gênero, Roque trabalha em HEAVEN2, um novo filme comissionado para a edição de 2016 da Bienal de São Paulo, batizada de Incerteza viva. O trabalho, que dá sequência a Ano branco, é ambientado em um futuro distópico no qual um novo tipo de vírus transmitido oralmente começa a afetar as comunidades transgênero. Essa premissa desoladora representa um afastamento do tom idealista que caracteriza os primeiros trabalhos do artista, embora possa ser vista também como um reflexo dos tempos políticos sombrios do Brasil atual, onde grupos LGBT são tomados como um dos principais alvos das forças conservadoras em ascensão.

tradução: Luís Felipe Flores

2 HEAVEN está em exibição na 32ª Bienal de São Paulo: Incerteza viva, de 10 de setembro a 11 de dezembro. Um projeto solo do artista ficou exposto no Centro Cultural de São Paulo até 30 de outubro.

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