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Marcos Martins
from Catálogo forumdoc.bh.2016
by forumdoc
CINEMA : E ADOS ENDI z r , ( DES ) AP Trâ NSITOS
uma conversa com Camila José Donoso, diretora de naomi campbel
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Marcos Martins1
1*Nota introdutória
Este breve comentário se constitui numa encruzilhada. Os caminhos que o atravessam seguem percursos fronteiriços. Seus trânsitos evidenciam a proliferação das fricções causadas pelos encontros entre saberes, lugares, vivências diversas. E nem de longe essas zonas de convergência são pacíficas e apaziguadas. Elas se conformam justamente a partir do conflito que a alteridade dá cabo, ou não. Dos imperativos coloniais que captura(ra)m e, como num procedimento de autópsia, disseca(ra)m carnes, afetividades, desejos, subjetividades, nossos modos de ser e, mais diretamente, de nos relacionar. Desde acá – como canta Mano Brown, no lado sul do mapa. Meu primeiro contato com o filme de Camila Donoso se deu a partir de um levantamento de festivais de cinema lgbt realizados em América Latina. Envolto a tantos filmes que fui encontrando, sua obra, Naomi Campbel, pareceu, pelo menos através de algumas leituras e entrevistas prévias sobre o filme, dialogar com a proposta que vinha se estruturando na organização desta mostra. Após assisti-lo tive certeza! No entanto, quando pensamos em práticas+experiências queer no cinema, do quê estamos tratando? De onde falam estes filmes, estes olhares, estas perspectivas queer? Reivindicam esta expressão pra si? Os primeiros passos na preparação da mostra/seminário “Queer e a câmera” deixaram evidentes o quão escorregadio é
este terreno. Um filme é uma visão particular sobre o mundo e pressupõe aí as especificidades de sua feitura: quem o dirigiu, de que maneira o assunto em questão é explorado, como se constrói a(s) narrativa(s), quais olhares estão envolvidos nas tramas dessa película etc… A instabilidade deste debate talvez venha, acredito, num primeiro momento, da própria recusa das questões que compõem esta peleja queer por concepções encaixotadas, totalizantes, limítrofes. Mas quando me refiro às instabilidades destas contendas me remeto também às fronteiras às quais estes fluxos cruzam e as veredas pelas quais o queer viaja e chega até aqui, em nossos territórios brasileiros/latinoamericanos. Se pensarmos os lugares de enunciação os quais Naomi Campbel se situa, um filme latino (chileno), protagonizado por uma atriz transexual, dirigido por uma mulher cisgênera21 – vejo este exercício como fundamental para pensarmos as inflexões que o situar-se traz – encaro-o e convido-xs a encarar, como uma obra extremamente potente no que diz respeito às práticas e (re)produções de saberes desobedientes, descentralizados dos meios hegemônicos de formulação de conhecimentos “formais” – certamente não se restringe apenas à América Latina, mas ao mesmo tempo carrega um peso diferencial quando consideramos os processos coloniais ocorridos nas bandas de cá –, como também uma interpelação, que interroga as interdições, os meios pelos quais nossos corpos vão sendo arquitetados politicamente,32 orientando nossos prazeres pela via dos moldes heterossexuais normativos e nossas relações sociais/ corporais; bem como nas práticas cinematográficas, enquanto ferramenta para subverter, rearranjar, deslizar, desterritorializar, desinformar, desaprender as tecnologias sociais43 que engedram a construção da(s) realidade(s), de nossas compreensões sobre a representação de personagens LGBT nas telas, os papéis de gênero (“papéis de mulheres”, “papéis de homens”) que estruturam as narrativas do mundo do cinema, enfim, os próprios modos de se fazer um filme. O objetivo desta entrevista é “cobrir” um pouco a ausência da diretora que não poderia estar presente durante o festival. Ainda assim, qualquer palavra que tente descrevê-la seria insuficiente. Até porque o próprio
2 Diz respeito à pessoa que se identifica com o gênero o qual foi designado à ela no momento de seu nascimento. 3 PRECIADO, P. B. O que é a contrassexualidade? In: Manifesto Contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. 1 ed. São Paulo: n-1 edições, 2014. p. 21-33 4 LAURETIS, Teresa De. A tecnologia do gênero. In: Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Heloisa Holanda (Org.). Trad. Suzana Funck. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242
exercício de tradução realizado aqui não se aloja somente no transcurso linguístico da permutação de significados de um idioma para outro,5 pois abarca também o sujeito envolvido nessa tradução. No caso, o tradutor sou eu: uma bixa, cis, branca, tutelada sob privilégios que garantem, em muitos sentidos, meu modo de existir num território que colonizou – e ainda o faz – povos indígenas e africanos, assim como tenta, por múltiplas formas de aniquilamento, apagar a existência das mulheres, de vidas dissidentes sempre em resistência. A princípio, o corpo de questões elaboradas havia me deixado satisfeito. Porém, ao receber as repostas de Camila me apercebi o quão insuficientes, tangenciais e por vezes estéreis minhas perguntas poderiam ser, ou são, de fato. O bom é que as repostas dela são muito melhores do que as minhas perguntas.
MM: Inicialmente, gostaria que você se apresentasse e comentasse sobre seus primeiros contatos com o cinema, suas experiências com os ativismos feministas e como você articula estas duas áreas na sua vida e trabalho.
CJ: Após estudar num colégio de garotas e lá encontrar amigas com as quais, desde muito novas, já comecei a fazer coisas; aos quinze já pensávamos em feminismo, inclusive já tínhamos uma oficina de cinema – entre a oficina de circo e de fotografia. Uma rebeldia cresceu em nós, educadas a partir dos preceitos do catolicismo. Quis estudar cinema sem ter nenhum familiar artista, mas sim, uma família com grande imaginação e uma grande capacidade de narrativas orais que mesclam o cotidiano com o mágico (fantástico). Aos dezesseis, eu e minhas amigas, fomos pela primeira vez num encontro feminista, e desde então estes espaços feministas e pós-feministas e dissidentes e de amizade têm se transformado em meu refúgio-exílio político neste mundo, este mundo capitalista e racista em que vivemos. Minhas/meus amigxs e os vínculos que se formaram por meio do ativismo, são os mesmos que têm me levado a fazer filmes desde essa união, desde esses laços e desde essa afetividade.
MM: Agora sobre seu filme, Naomi Campbel, você poderia falar acerca do processo de criação, pessoas envolvidas, como se deu sua aproximação com a atriz Paula Yérmen Dinamarca e como foi seu diálogo com ela (e seu
5 COSTA, Claudia de Lima. Feminismo e tradução cultural: sobre a colonialidade do gênero e a descolonização do saber. In: Mulher e literatura - 25 anos: Raízes e rumos. Cristina Stevens. (Org.). 1ed. Florianópolis: Editora Mulheres, 2010, p. 237-256.
envolvimento) na composição do filme? enxergo, seu filme, também com uma proposta de discussão que diz repeito aos deslocamentos de convenções sociais das narrativas cinematográficas (ditas tradicionais)? Como vê esse debate?
CJ: A participação de Paula e nossa amizade criativa permitiu que o filme se configurasse com o tempo – o filmamos durante um ano – em uma exploração tanto visual quanto biográfica e, claro, política, pensando em conjunto como queríamos representar nossa e o lugar que nossos personagens ocupam, nosso contexto. Durante todo esse processo de escrita do roteiro nos perguntávamos como poderíamos desarmar estas engrenagens tão apreendidas na universidade – este filme foi nosso trabalho de conclusão de curso, então falávamos coisas que não podiam ser ditas – e essas coisas aprendemos para desarmá-las e experimentar. Em relação ao tema das narrativas me parece mais uma característica de nosso colonialismo cultural, de como nos encucaram inclusive como narrar nossos tempos, nossas vidas.
MM: Como uma diretora cujo trabalho pensa as tensões das linguagens normativas de gênero no campo do audiovisual, como você vê a formação dos grupos, coletivos que realizam produções que dialogam com esta temática e narrativa?
CJ: Gosto muito da ideia de novos espaços de (não) aprendizagem e de espaços onde se pense de maneira coletiva. Na verdade, a produtora de Naomi Campbel, Rocío Romero, com quem trabalho também em nosso novo filme já há três anos, NONA, – protagonizado por minha avó – também atuou em Naomi como Lucha, a senhora, amiga de Yérmen; como também Paula atua em Nona, porque inevitavelmente nossas vidas se conectam. Com Rocio nós temos um projeto, o TRANSFRONTEIRA. Um centro de experimentação e encontro de (de)formação – junto com Ignacio Agüero e outrxs colegas latinxamericanxs –, onde pensamos como praticar o não-ensinamento, que aposte na descoberta de uma linguagem própria, ou seja, que os filmes e xs autorxs explorem o que desejarem, mais do que compreender a formação como uma espécie de fórmula que se aprende (como poderia ocorrer em qualquer manual), tratando a criação e o processo de fazer um filme como algo vital. E isso é pouco valorizado a partir dos conceitos da indústria.
MM: As discussões que refletem sobre a temática queer se constituem e se
difundem desde os contextos norte-americanos e europeus. Como você vê este debate e suas práticas político/culturais/cotidianas, da vida em nosso cenário latino?
CJ: Tentei pensar desde meu território sudaca e, no meu caso, como chilena, periférica do mundo. Esta sensação de fim de mundo que tenho em minhas terras é algo que não se pode entender desde nenhum contexto europeu ou norte-americano. Também tratei de ler o feminismo com referências em minhas próprias mulheres – as mais próximas – minha avó, minha mãe, minhas tias.
MM: Quais seriam, em nosso cenário sudaca, alguns dos desafios acerca das transformações da linguagem cinematográfica desde uma perspectiva queer?
CJ: Para mim, o pior de ver um filme “queer” ou “lgbt” é cair nas mesmas convenções clássicas de fazer e filmar um filme. Pensar de uma maneira livre é também fazer filmes distintos, que retratem nosso tempo – em meu último trabalho filmado no México, CASA ROSHELL, quis experimentar algo diferente do que em NAOMI. Este filme não tem história, apesar de contar com mais de vinte personagens. Queria explorar outras filosofias trans, subjetivas e poéticas das bocas de suas próprias protagonistas, e atuadas por elas, em algo que temos chamado de Transficção.
MM: Mais uma vez, muito obrigado pela receptividade em nossas conversas. Foi um prazer te conhecer e entrar em contato com seu trabalho. um abraço. Marcos.
CJ: Muito obrigada a vocês por me escreverem.