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Eduardo de Jesus
from Catálogo forumdoc.bh.2016
by forumdoc
sex in the city NÃO é MAS x O , SE CIDADE
eduardo de Jesus
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0,5. explicando tudo
Esse pequeno ensaio toma o curta Virgindade (Ceará, 2014), de Chico Lacerda, como um ponto de partida e de chegada. A memória, a cidade e a sexualidade são temas que vão ser desenvolvidos mais adiante, mas que antes iluminam uma série de breves comentários, fora de ordem, sobre cidade e cinema. A ideia é que o filme de Lacerda, ao mostrar a cidade nas tramas subjetivas da sexualidade e do desejo, acaba por gerar uma potente visão do urbano.
0,7. Curitibas
Conheço esta cidade como a palma da minha pica. Sei onde o palácio sei onde a fonte fica,
Só não sei da saudade a fina flor que fabrica. Ser, eu sei. Quem sabe, esta cidade me significa.
(Paulo Leminsky em La vie em close)
1. cinema e cidade
Cidade e cinema estão na mesma trama, como parte de uma mesma raiz da modernidade ligada ao urbano. Os museus de cera, os panoramas e as exibições de cadáveres em Paris no século
XIX ativavam a cidade e pareciam preparar os sentidos para a chegada do cinema. Paris, no último terço do século XIX, se transformou no centro europeu da jovem indústria do entretenimento. Ao se instalar na cidade, o cinema reconfigurou espaços de lazer, modos de encontro e formas de entretenimento criando novas dinâmicas que, de algum modo, davam prosseguimento a esses primeiros espetáculos. Cidade-cinema-espetáculo. Essa é uma parte da estreita relação entre cinema e cidade. Outra parte possível, é a cidade filmada. Ao longo da história do cinema a cidade tem sido protagonista. Múltipla, fragmentada e em tensa relação direta com os poderes constituídos, a cidade contemporânea tornou-se o palco de um amplo sistema de visibilidade do capital, dos modos de vida globais homogêneos (mas não universais) que se espraiam pelo mundo. E sua imagem?
0,9. informações úteis
a. O Burj Khalifa em Dubai nos Emirados Árabes, edifício mais alto do mundo, é uma intervenção urbana e arquitetônica que serve para demonstrar o poder econômico do capital no mundo árabe, constituindo assim uma imagem que pode ser facilmente colocada em circulação nas midiatizações do espaço urbano. Recebe cerca de 4,7 milhões de turistas por ano.
b. “As cidades já não esperam mais pela chegada do turista – elas também estão começando a juntar-se à circulação global, a reproduzir-se em escala mundial e expandir-se em todas as direções” (GROYS, 2015, 134). c) O turismo é uma linha de força na constituição das experiências urbanas contemporâneas.
2. imagens da cidade
O local passa a ser distribuído globalmente, como já havia afirmado anteriormente Guattari: “a cidade-mundo do capitalismo contemporâneo se desterritorializou, seus diversos constituintes se espargiram sobre toda a superfície de um rizoma multipolar urbano que envolve o planeta” (2000, p. 171). Distribuição como serviço e arquitetura, mas sobretudo como imagem. Nesse contexto emergem muitas visões da cidade no cinema. Uma que aqui nos interessa é aquela que faz da cidade do cinema um território de resistência, explicitando os poderes que, de um lado, transformaram a cidade em um campo de múltiplas especulações e, de outro, fazem da experiência urbana um estranho conforto instalado em um espaço-lixo (junkspace).
São muitos os filmes recentes que tratam da cidade e das questões espaciais, como Avenida Brasília Formosa (2010) e Um lugar ao sol (2009), de Gabriel Mascaro, Recife frio (2009), O som ao redor (2012) e Aquarius (2016), de Kleber Mendonça, O céu sobre os ombros (2011), de Sérgio Borges, A cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014), de Adirley Queirós, O porto (2013), de Clarissa Campolina, Julia de Simone, Luiz Pretti e Ricardo Pretti, entre outros. A questão é emergente e parece sinalizar um desejo de apropriar e dar sentido ao espaço urbano com outras experiências menos ligadas aos mercados e especulações. Assim como a Praia da Estação (Belo Horizonte) e Ocupe Estelita (Recife), o cinema também deseja outra cidade, como Robert Park nos ensinou.
1,15. sobre a cidade do cinema, em plano geral
Ao colocar o espaço urbano em primeiro plano, alguns filmes fazem surgir nas imagens uma outra visão da cidade. Representações que acionam as diversas camadas de sentido em múltiplas acumulações no espaço urbano. História e memória coletiva são atravessados por visões subjetivas e experiências pessoais. O invisível e o fora de campo atravessam e ecoam na imagem, que ganha novos sentidos. Nas potentes experiências sensíveis entre nós e a cidade, ativamos processos de territorialização e desterritorialização para além dos espaços construídos mostrando como a cidade pode resistir aos controles e se oferecer em outras experiências. Algo sempre escapa entre nós, o outro e a cidade liberando os imaginários. Imagens da cidade que ampliam o sentido e a importância dos espaços construídos, para além do visível.
2,25. cidade, city, cité
Sabendo de todas as forças imperiosas com as quais o capital maneja o espaço urbano, é importante vermos como o cinema, a produção audiovisual e as próprias dinâmicas da comunicação globalizada como um todo, reforçam e acabam por dar os contornos da imagem da cidade que se quer ativar. Longe de inventar outra cidade ou de apontar outras formas de experiência, muitas vezes, o cinema e a produção audiovisual celebram a produção do espaço ligada exclusivamente ao consumo e ao entretenimento. Formas muito controladas e planejadas de se engajar no devir da experiência estética que o urbano pode nos permitir. Nesse sentido, estratégias e formulações do marketing como local branding e nation branding resultam em cidades imaginadas na força do
3,0. o retorno a cidade subjetiva
O curta de Chico Lacerda na aparentemente simplicidade e leveza de seus longos planos fixos e abertos da cidade, embalados por uma narração de tom pessoal, aciona uma visão potente do espaço urbano. No filme, a cidade torna-se uma espécie de confluência de tempos e espaços atravessados pelo passado, trazidos pela memória, mas na visualidade do presente. É no atravessamento entre o que a cidade foi e o que ela é que descobrimos – acionando o fora de campo e as tensões da diferença entre o que vemos e o que é narrado – que pouco a pouco a cidade em sua dinâmica surge diante de nós. A descoberta da sexualidade é tramada em sintonia com as mudanças da cidade. Corpo, cidade e desejo em processos de descoberta. Uma cidade que ao contrário de monumentos ou atrativos turísticos revela-se no filme em imagens ordinárias de espaços comuns, que ganham um melancólico relevo pela experiência e pela memória. Territórios que passam a fazer sentido porque integram-se fortemente às narrativas da vida, por isso significam e nos convocam a fabular as mudanças da cidade. Os elementos invisíveis da cidade – memória, história, afeto, experiência – que parecem recobrir os espaços físicos, se mostram a nós pelo confronto entre a locução e o que vemos na imagem. As dinâmicas da cidade atravessam, junto com a memória pessoal, a narrativa do filme. Entre o que é narrado e o que vemos nas imagens emerge um potente fora de campo que nos fala da cidade e de suas dinâmicas. Onde era cinema, hoje supermercado ou loja de eletrodoméstico; a casa de Henrique, uma das paixões, que vivia perto da casa da avó, tornou-se um inóspito edifício. Assim em seu rigoroso conjunto de planos estáticos, sempre acompanhado da locução e de ruídos do ambiente, o filme passa a explorar paisagens urbanas absolutamente comuns, que se constroem em uma narrativa que une suas espacialidades relacionais cheias de formas subjetivas e sexuais. Em certo momento, esse rigor passa da cidade aos corpos. É nítida a marca dessa passagem pela entrada da trilha sonora, que revela um outro fora de campo, desta vez tendo os corpos como formas de paisagem. Embalados pela suave e romântica canção de Gorky´s Zygot Mynci surgem muitos homens nus em diversas poses e enquadramentos, espaços urbanos e paisagens naturais.
(I need your sweet, sweet love
I need it in my heart
I know I’ve taken
And to give to you I can find so hard) Detalhes de uma nuca, um peito cabeludo ou uma bunda formam a multiplicidade desses corpos, objetos de desejo que remetem ao tempo presente daquelas memórias ditas anteriormente. A sequência funciona como uma espécie de videoclipe que no meio do filme – entre as paixões adolescentes e as diversas formas de buscar imagens e textos que pudessem ativar fantasias sexuais e trazer muita excitação – faz o tempo presente do desejo emergir. Passado e presente se encontram no desejo e na cidade. Movimentos entre os tempos já que a cidade se mostra outra diante da memória que a locução aciona e o desejo ganha forma, sem maiores preocupações ou pudores. Relacionando o clipe no tempo presente com toda a força memorialista da locução e as imagens atuais da cidade, o filme parece enfatizar que a experiência, o desejo e a memória são vetores centrais para perceber as potências relacionais do espaço urbano.
Todo esse trânsito tanto entre o tempo passado e o presente, quanto entre as formas da fabulação da memória (na locução) e a eminência do presente (nas imagens) fazem da cidade do filme uma reterritorialização da imagem da cidade. Percebida agora não mais na força do espetáculo ou da midiatização, tampouco na forma absoluta de seu espaço construído, a cidade atravessa e é atravessada pelo desejo entre os corpos e os espaços fazendo ecoar na imagem a intensidade da experiência.
referências
GUATTARI, Félix. Restauração da cidade subjetiva. In: Caosmose – um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.
GROYS, Boris. A cidade na era da reprodução turística. In: Arte poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015