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Jota Mombaça
from Catálogo forumdoc.bh.2016
by forumdoc
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Jota Mombaça2
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Há uma narrativa corrente acerca de como queer emergiu no campo das micropolíticas contemporâneas, a partir da revolta de Stonewall Inn nos Estados Unidos, no fim dos anos 60 - começo dos 70. Por essa perspectiva, antes de tornar-se um discurso teórico com respaldo acadêmico em escala global, queer marca uma posição política radical, que problematiza as normatividades sexual e de gênero no contexto das lutas por liberação que tiveram lugar nos Estados Unidos – e em outras partes do mundo – nesse mesmo período. A estratégia queer por excelência é a da reapropriação da injúria e a consequente afirmação da diferença marginalizada como ponto de vista privilegiado para uma crítica antinormativa da normatividade. A partir de um giro radical, é a criatura queer – desobediente de gênero e dissidente sexual – que se posiciona no centro da corpo-política contemporânea, reivindicando um corpo, uma voz e uma ética inteiramente diversas com respeito àquela imposta pelo domínio da heteronormalidade.
1 Originalmente, este texto foi dividido em duas partes e publicado no site http://www.ssexbbox.com, sendo a primeira parte postada em 23 de junho <http://www.ssexbbox.com/para-desaprender-o-queer-dos-tropicosstonewall-nao- foi-aqui/> e a segunda em 28 e agosto <http://www. ssexbbox.com/para-desaprender-o-queer- dos-tropicos- desmontandoa-caravela- queer/>, ambas no ano de 2016. Nesta publicação, as partes foram unidas e o texto não sofreu nenhum tipo de alteração. 2 Artista, vinculadx ao programa de pós-graduação da UFRN, performer e pesquisadorx del kuir em contextos sudakas, terceiro-mundistas, transfron-teiriços e de mestiçagem estética, ética, visual, linguística, política, étnica, sexual e epistêmica.
Afirmar essa narrativa, que tributa ao ativismo queer estadunidense o marco genealógico de toda prática teórica que hoje inunda os arquivos acadêmicos do mundo, tem o efeito de descentrar o eixo lógico da produção de conhecimento. Afinal, se queer é antes uma chave de ação política e um princípio agregador de experiências, corpos e vidas postas à margem do sistema heterocapitalista, qualquer saber que queira daí desdobrarse deve assumir para si uma politização incontornável, que não apenas balance os domínios epistemológicos consagrados pelas tradições teóricas do pensamento hétero, mas que também desafie gramáticas, ginásticas, posições e práticas de vida projetadas como norma pela heterossexualização da vida. Ocorre que, por efeito de sua própria internacionalização enquanto conceito-chave e enquanto programa para práticas e discursos desobedientes quanto às normatividades de gênero e sexualidade, queer participa não de um, mas de diversos cenários de emergência distintos. Embora haja uma história oficial do queer vinculada compulsoriamente ao eixo da genealogia estadunidense, os modos como essa palavra-chave penetrou os múltiplos vocabulários locais fez proliferar outras narrativas. Em resumo: o queer de Pindorama, do sul quente dos trópicos, não emerge a partir dos mesmos processos que o queer de cima. Aqui, por exemplo, antes de informar diretamente os ativismos cotidianos de pessoas translésbixas, queer aparece como evento acadêmico. Isso não implica necessariamente uma despolitização total, nem define de partida o todo das possibilidades de apropriação do queer nos trópicos, mas certamente envolve numa representação da academia e das instituições como campos de batalha o eixo central de luta e politização queer no Brasil. Se houve aqui um ativismo queer inaugural, este foi experimentado majoritariamente no âmbito da institucionalidade acadêmica. O queer de Pindorama emerge, assim, de um movimento inverso ao da história oficial do queer estadunidense: vai da teorização à ética; é antes uma abordagem do que um modo de vida e sua geografia afetiva é menos a da boite, da noite, das tretas de rua, dos inferninhos e cantos escuros, do conflito com a polícia, e mais as das salas de aula e corredores departamentais das instituições de produção de conhecimento formal. Esse queer forjado por meio de artigos científicos e teses de doutoramento, ainda que se rebele parcialmente contra os enquadramentos teóricos hegemônicos, não consegue escapar completamente das modulações do campo que o envolve: como evento acadêmico, queer articula sua rede de sujeitos objetificados, projeta seu arcabouço de ficções teóricas e formula suas próprias analíticas socioantropológicas, históricas e estéticas, projetando
sobre o aqui-agora das relações de gênero e sexualidade um vocabulário novo, repleto de taxonomias autoproclamadas as mais corretas para lidar com os fenômenos da dissidência corpo-política nos trópicos. Hija de Perra, em seu ensaio “Interpretações imundas de como a teoria queer coloniza nosso contexto sudaca, terceiro-mundista e pobre de aspirações, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados pela heteronorma”, ao refletir sobre as insuspeitas continuidades entre queer e colonialidade no contexto sul-americano (especialmente o chileno), apresenta – tendo como ponto de partida a própria experiência – uma crítica ao caráter de interpelação que o queer adquire quando aqui chega. Ao falar de si como “uma nova mestiça latina do Cone Sul que nunca pretendeu ser identificada taxonomicamente como queer”, Perra atribui aos teóricos de gênero a responsabilidade pelo seu encaixe nesse eixo classificatório, revelando assim o quanto a proliferação do referencial queer no nosso contexto historicamente marcado por efeitos de colonialidade e subalternidade dependeu, ao menos inicialmente, desse ato de dar nome levado a cabo por meio de iniciativas teóricas relativamente separadas dos movimentos de vida que tem caracterizado as existências dissidentes sexuais e desobedientes de gênero no mundo sudaca. Assim, embora teoricamente as abordagens queer confrontem a noção de identidade como fixa, e se pautem tanto numa desnaturalização radical das posições de sujeito quanto numa relação de resistência perante as imposições e assujeitamentos corpo-políticos, elas não deixam de produzir como efeito, a partir de sua emergência nos trópicos, isso que Hija de Perra põe em evidência: um gesto simultaneamente colonial e perturbador, que precipita a própria captura antes mesmo de chacoalhar de fato a ordem contra a qual promete insurgir-se. Não se pode dizer que o problema da colonialidade tenha passado desapercebido no marco dos estudos queer acadêmicos do Brasil. No mesmo ano (2012) que Hija de Perra publicou o ensaio citado no primeiro texto desta série, um interessante movimento de critica descolonial ganhou força na produção queer brasileira oficial. Destaco aqui dois textos dessa leva que se tornaram bastante populares entre pessoas estudiosas do assunto. “Queer nos Trópicos”, de Pedro Paulo Gomes Pereira, e “Subalterno quem, cara pálida? Apontamentos às margens sobre póscolonialismos, feminismos e estudos queer”, de Larissa Pelúcio, ambos publicados no mesmo Dossiê Saberes Subalternos da Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCAR (2012). Esses dois textos compartem uma perspectiva bastante crítica quanto ao modo como, no que diz respeito à geopolítica do conhecimento afinada
em escala global, a produção teórica queer brasileira deve desafiar, desde as margens, os postulados projetados como verdade pela colonialidade do saber, regime que visa definir – segundo uma hierarquia na qual os saberes do “Sul Global” são necessariamente inscritos por efeitos de subalternidade, ao passo que as produções euroestadunidenses são hiperestimuladas e sobrevalorizadas – o que conta ou não como “teoria de ponta”.
Tais reflexões têm a importância de situar os termos definidos pelo cânone queer global, questionando sua universalidade ao mesmo tempo em que afirmam, desde o contexto igualmente situado da produção teórica queer brasileira, uma singularidade perante as generalizações feitas por autores euroestadunidenses. Nesse sentido é que as proposições de Paul B. Preciado, especialmente as contidas em Testo Yonqui, são criticamente avaliadas e confrontadas em ambos os textos. Não se trata, contudo, de uma tentativa de invalidação das contribuições do autor, mas de uma problematização contundente quanto ao caráter universal dessas proposições com vistas à insuficiência de seus modelos para uma análise da realidade brasileira concreta. Dos dois textos mencionados, é o “Queer nos Trópicos” que vai mais fundo nessa problematização da obra de Preciado. Para uma revisão crítica do conceito de “farmacopornopoder” – que, grosso modo, postula a preponderância dos dispositivos fármaco (biotecnológico) e pornô (semiótico-técnico) nos processos de subjetivação e de produção de gêneros na contemporaneidade –, Pedro Paulo Gomes Pereira evoca a experiência de Cida, travesti com quem conviveu durante uma etnografia realizada em 2004 num abrigo para pessoas portadoras de aids nas proximidades de Brasília. Depois de apresentar brevemente a história de vida de Cida e traçar um paralelo com a de Preciado, o autor concede especial atenção à relação “de sua fonte” com a umbanda, enfatizando o modo como esse conhecimento mítico-religioso e as ritualizações que ele implica interatuam junto a uma série de outros elementos – técnicos, discursivos, performativos – na produção de seu corpo. No texto, a relação entre religiosidades afrobrasileiras e processos de subjetivação e corporificação de mulheres trans e travestis é abordado a partir de uma série de referências a outras pesquisas acadêmicas sobre o tema. Levando em conta essas narrativas sobre travestis adeptas de umbanda, candomblé ou quimbanda, Pedro Paulo busca problematizar a centralidade dada por Preciado (e por outros autores europeus importantes para o desenvolvimento dos estudos queer, como Michel Foucault) aos elementos de
matriz biotecnológica na produção dos corpos, afirmando a insuficiência de modelos universais a partir de um quadro complexificado pela interação de elementos míticos e rituais com fluxos de imagem, silicone, hormônios etc., no corpo de travestis afro-religiosas do Brasil. Dessa maneira, “Queer nos Trópicos” pretende excitar uma reconfiguração possível do arcabouço teórico queer consolidado nos estudos sobre vivências trans e reivindica, para isso, uma analítica queer sensível ao modo como diferentes contextos acionam diferentes mediadores para a produção dos gêneros e sexualidades. Com esse movimento, o autor consegue desbancar a relação de poder geopolítico que garante aos saberes projetados desde os centros globais de produção de conhecimento a possibilidade de definir os modelos analíticos que serão aplicados nas margens. No entanto, para dar cabo disso, depende de reconstruir com sua própria voz a experiência de Cida e de outras travestis. Ao comparar a história de Cida com a de Preciado, por exemplo, o autor em nenhum momento alude à própria história, ou assume a implicação que o próprio corpo tem no tipo de produção conceitual que ele leva adiante em seu texto. O que Pedro Paulo oferece como contraponto à experiência de Preciado narrada em primeira pessoa é a experiência de Cida narrada em terceira pessoa. Dessa maneira, não obstante desbanque a tradição universalizante das produções de conhecimento eurocêntricas a partir de um enfoque singularizado pela densidade do contexto brasileiro, o seu texto se sustenta por sobre um apagamento sistemático das próprias marcas corpo-políticas de quem escreve – o que desdobra uma continuidade insuspeita entre o que autor faz e o que ele critica. Se ao criticar a dimensão colonial do queer no mundo sudaca Hija de Perra evoca sua experiência para interrogar, desde a própria dissidência sexual e de gênero, a matriz queer de conhecimento, oferecendo dessa forma uma resistência efetiva à interpelação queer como efeito de poder acadêmico; o giro decolonial das pessoas teóricas de gênero do Brasil segue limitado a assinalar escalas hierárquicas entre contextos acadêmicos distintos (os do Norte e do Sul globais), sem com isso, em momento algum, questionar a própria academia – com sua linguagem teórica normalizada, sua tematização das vidas de pessoas reais e suas hierarquias consolidadas por sistemas rígidos de avaliação institucional – como território-chave para a atualização do queer como referencial indissociável da colonialidade do saber no contexto brasileiro (sudaca e terceiro-mundista).
Assim, falta à elite teórica do queer nos trópicos reconhecer de que modos a colonialidade do queer não se dá somente de fora para dentro – isto é, do mundo euroestadunidense para os contextos periféricos –, mas também de dentro para dentro, por efeito de um “colonialismo interno” levado a cabo pelos mesmos teóricos de gênero que ora questionam a supremacia do queer do Norte sobre os queer do Sul. Nesse sentido, a oposição macro-estrutural Norte e Sul produz contraditoriamente um apagamento das tensões Sul-Sul e contribui para a perpetuação de modos de dominação epistemológica, ética e política não previstos por autores como Pedro Paulo Gomes Pereira. Desaprender o queer dos trópicos tem assim o sentido de uma desnaturalização radical dos procedimentos acadêmicos, incluindo uma problematização das relações sujeito-objeto que ajudaram a consolidar a elite teórica queer do Brasil, assim como uma revisão critica dos efeitos de interpelação que a apropriação do queer desdobrou em territórios como o nosso. Em tempo: não posso deixar de registrar que esse texto não necessariamente escapa àquilo que critica, pois que consiste em mais um exercício teórico sobre o queer, produzido desde a posição de bicha gorda não binária e acadêmica, e não num programa de ação para as pessoas dissidentes sexuais e de gênero. A diferença deste texto é que, se ele interpela algo, é a própria elite queer e seus procedimentos críticos, fazendo de objeto aqueles que, até agora, não participaram do debate senão como sujeitos: as pessoas pesquisadoras. p.s.: quando falo em “elite teórica queer do Brasil”, refiro-me à rede de teóricos de gênero e sexualidade consolidados, bem posicionados nos rankings formais de produção de conhecimento, empregados por universidades de renome, majoritariamente brancos e cisgêneros. Falo de gente como Richard Miskolci, que durante o I Seminário Queer do SESC (que não por acaso ficou conhecido como Cisminário) chegou a afirmar que a ausência de pessoas trans*, racializadas e dissidentes sexuais na programação do referido evento se devia a uma “falta de vocabulário” que ele, e a equipe por ele formada, estava tentando suprir com suas pesquisas, falas e publicações.
HIJA DE PERRA. Interpretações imundas de como a teoria queer coloniza nosso contexto sudaca, terceiro-mundista e pobre de aspirações, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados pela heteronorma. In: Periódicus, Bahia, v.1, n.2, nov.2014/abr.2015 Disponível: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/ article/view/12896>
PELÚCIO, Larissa. Subalterno quem, cara pálida? Apontamentos à margem sobre pós-colonialismos, feminismos e estudos queer. In: Contemporânea, São Carlos, v.2, n.2, jul./dez. 2012, p. 395-418. Disponível em: <http://www. contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/89/54> Acesso em 18/08/2016.
PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer nos trópicos. In: Contemporânea, São Carlos, v.2, n.2, p. 371-394, jul./dez. 2012. Disponível em: <http://www. contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/88/53> Acesso em 18/08/2016.