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Ewerton Belico

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Leonardo Amaral

Leonardo Amaral

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Sobre taego ãwa, de Marcela Borela e Henrique Borela

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ewerton Belico

Nós queríamos falar, finalmente ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparência física era suficientemente eloqüente por ela mesma. Mas nós justamente voltávamos, trazíamos conosco nossa memória, nossa experiência totalmente viva e sentíamos um desejo frenético de a contar tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossível preencher a distância que descobrimos entre a linguagem de que dispúnhamos e essa experiência que, em sua maior parte, nos ocupávamos ainda em perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a não tentar explicar como havíamos chegado lá? Nós ainda estávamos lá. E, no entanto, era impossível. Mal começávamos a contar e sufocávamos. A nós mesmos, aquilo que tínhamos a dizer começava então a parecer inimaginável. Essa desproporção entre a experiência que havíamos vivido e a narração que era possível fazer dela não fez mais que se confirmar em seguida. Nós nos defrontávamos, portanto, com uma dessas realidades que nos levam a dizer que elas ultrapassam a imaginação. Ficou claro então que seria apenas por meio da escolha, ou seja, ainda pela imaginação, que poderíamos tentar dizer algo delas

Robert Antelme, L’espèce humaine

1.“Recordo-o”: Taego Ãwa se inicia pela evocação da memória e seus usos – Henrique e Marcela Borela levam aos Ãwa as imagens de seu passado doravante redescobertas. Mas o que vemos e ouvimos, de imediato, é o presente dos corpos e vozes, que indicam a necessidade da rememoração não da opressão ainda vigente, mas das marcas de uma experiência coletiva inscrita no espaço. Vozes e imagens, arquivo e testemunho convergem em um fim político e comunitário, a esperança de recuperação da terra perdida. O arquivo é então o vetor de um conjunto de relações: do processo do filme que se mostra diante do espectador, dos Ãwa entre si e diante de nós ao perscrutar a memória de um genocídio, daquilo que o arquivo desvela ao expor suas lacunas: o aparato ideológico de sua própria produção. Tratar-se-á de uma singular política da memória, no qual o documento está

menos a serviço de caução da experiência vivida e testemunhada pelos sobreviventes (no caso, O sobrevivente, Tutawa Ãwa) do que exposição do lugar de fala do opressor.

2. Memória de lacunas, rastros, resíduos: Taego Ãwa tem como inscrição fundamental um paradoxo a partir do qual se desdobra, a insuficiência estruturante dos arquivos que o percorrem e atam seus liames. Se as imagens tendem a uma profusão dispersiva, é a voz de Tutawa Ãwa que aponta o furo do que não pode ser mostrado. E é essa insuficiência que se constitui no dispositivo mesmo do filme, que se lança à rememoração ao constituir uma arena onde o encontro com o passado se torna possível. O vínculo relacional com os documentos somente se constitui mediante uma cena de origem, na qual se instaura a narrativa de uma queda, a ruptura que dá origem à perseguição e ao genocídio. E, para além do narrado, os fragmentos de um arquivo possível persistem ainda quando o filme se encerra, como a apontar para uma multiplicação sem fim de traços do passado.

3. “Ainda guardávamos as lembranças de nossa vida anterior, mas veladas e longínquas e, portanto, profundamente suaves e tristes, como são para todos as lembranças de infância e de tudo que já acabou”:1 como em uma topografia das perdas, passado e presente se confundem tanto na destituição das formas tradicionais de vida comunitária quanto em sua reencenação, que Taego Ãwa torna possível, tal como a pintura com jenipapo. Há como que uma lógica de sobreposições, que organiza o contraponto entre as paisagens devastadas do passado e a documentação paciente dos espaços da aldeia e de seu derredor no presente. Tais passagens traduzem duas espécies de políticas da imagem que estão aí implicadas: o registro que, para além de expressão bruta do aparato ideológico de um massacre, é ele próprio um dos mecanismos de sujeição dos Ãwa, que tem sua imagem apropriada juntamente com suas terras, seus corpos, suas vidas – registros esses pacientemente coletados e apresentados no filme – e uma espécie de conjunto de forças de restituição, do qual Taego Ãwa participa, como vetor da esperança da reconquista da terra e como força imaginativa que permite a reconstrução de práticas coletivas.

4. “(...) nenhuma narrativa coercitiva, nenhum intérprete – narram-se lutas, revoltas, fracassos, derrotas, atrasos ou antecipações, estatísticas,

mostra-se história, topografia, geografia, geologia, luz, luzes, ventos e nuvens, terra (transformada e cultivada pelos homens) traços, – apagados ou ainda visíveis – e céu (muito céu)”:2 a fatura de Taego Ãwa parece indicar um peculiar forma de filme político – nem registro urgente, pois é sobretudo da “perlaboração” da perda que se trata; e nem registro histórico omni-abrangente, pois as fraturas de uma narrativa histórica possível são sua própria matéria. O filme de Henrique e Marcela parece dar voz, lugar e abrigo a uma geografia das experiências, escapando à tentação de devolvermos o mesmo espetáculo ao tentar constituir narrativas contra-hegemônicas.

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