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Leonardo Amaral

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Marcos Martins

Marcos Martins

ABSOLUTO AO DIDATISMO DO n ovo: M a ine c

sobre filme de Eryk rocha

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Leonardo Amaral

No mais famoso movimento de travelling do cinema brasileiro, os personagens Manoel e Rosa correm uma grande extensão de terra em Deus e o Diabo na Terra do Sol. “O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”, antevê o mítico Antônio Conselheiro, notável líder da Revolta de Canudos. Manoel e Rosa correm porque fogem do sertão, da seca, da fome. Correm na tentativa de resistir, de existir, de subsistir. Assim também correm o menino da favela em Rio 40 Graus ou o pequeno ladrão de gatos em Couro de Gato. Os marcos do Cinema Novo parecem retratar uma eterna fuga, uma necessidade de se inquietar diante das mazelas sociais (“Estética da Fome”, diria Glauber Rocha) de um país que se encontra às vésperas de um Golpe de Estado que marcaria para sempre uma nação. As primeiras imagens de Cinema Novo são essas diversas fugas, corridas por sertões, avenidas das grandes cidades, vielas das favelas, becos ou asfalto. É preciso correr, antes que seja tarde. Eryk Rocha, filho de Glauber, em Cinema Novo, faz um filme de arquivos – seja dos filmes que compõem a constelação de obras desse majestoso cinema nacional, seja de relatos e convivências dos cineastas da época. A montagem procura concatenar esses dois registros de modo a alcançar uma totalidade da história. Cinema Novo é didático porque é preciso ser. Haveria outra forma para lidar com o que provavelmente foi o momento mais importante e conhecido do cinema brasileiro? Nesse sentido, o documentário procura (e quer ser) absoluto. Quer trazer e resgatar a constituição do movimento. Não à toa, nos créditos finais, não

se furta em colocar os artífices desse momento em suas respectivas funções nos filmes que marcaram o Cinema Novo. Em “O processo do Cinema Novo”, organizado por Alex Viany, há um dos maiores documentos históricos e estéticos a respeito da fundação do movimento mais marcante da história do cinema brasileiro. Reunidos em diversos encontros que tiveram seus áudios gravados e posteriormente transcritos, os principais intelectuais e produtores do Cinema Novo discutem os conceitos estéticos e as implicações políticas de suas ações e filmes. De um certo modo, Cinema Novo se aproxima desse livro seminal, na medida em que procura retomar muitos dos pensamentos que marcaram a época da produção e filmagem das obras que mais tarde se tornariam fundamentais. É possível acompanhar uma consonância de pensamento entre as discussões presentes no livro e aquelas encontradas nos materiais de arquivo do filme. Muito do que falam Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Paulo Cézar Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Gustavo Dahl, Luiz Carlos Barreto são consonantes discussões que ressoavam na época e que aparecem com bastante frescor no filme.

Cinema Novo ainda faz coro com o argumento de Glauber em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”. O livro, que é um compêndio de escritos e ensaios do cineasta baiano a respeito do passado e destinos do cinema no Brasil, elege as filiações e influências do Cinema Novo: Humberto Mauro e Alberto Cavalcanti. Os dois aparecem em imagens e fragmentos no filme de Eryk Rocha, que os insere como base fundamental para o movimento. Cenas feitas pelos dois se misturam às imagens e discussões dos cinemanovistas. Mas, eis que surge a cisão, a pedra no meio do caminho que impede que a caminhada siga em conjunto. O golpe militar de 1964 opera diretamente no seio da produção do Cinema Novo. No ano em que Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol participaram da Competitiva do Festival de Cannes, Ganga Zumba fez parte da seleção da Semana dos Realizadores de Cannes e outros tantos filmes cinemanovistas participaram e foram premiados em notórios festivais internacionais, o país é tomado por um forte golpe antidemocrático. O golpe militar foi, segundo Glauber em entrevista presente no filme, um divisor no Cinema Novo. Se outrora os filmes eram feitos em conjunto, se instaurou, desde então, um certo individualismo das produções. “Fazíamos os filmes juntos porque gostávamos dos filmes um dos outros”, afirma Carlos Diegues em uma entrevista. O golpe, de alguma maneira, não esgota a admiração mútua, mas torna todo o processo mais distante.

Nesse instante, o filme rompe um pouco com o didatismo histórico para dar lugar a um certo tipo de experimentalismo de montagem. Os filmes se misturam e se fundem. Fragmentos se articulam e tornam-se um único filme. No instante final, os corpos voltam a correr e a última imagem é novamente da corrida de Manoel e Rosa. No entanto, a montagem agora impede a queda de Rosa como acontece em Deus e o Diabo. Ela permanece a correr, e a tela preta ocupa todo o espaço do écran. Cinema Novo continua em fuga, a correr. Ainda está bastante vivo e pulsante.

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