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36. Correspondência de são Bonifácio (680-754
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Correspondência de são Bonifácio (680-754)
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Bonifácio, (Wynfrith) (Wessex c. 680-Dokkum, Frísia, 754), foi apóstolo da Germânia, arcebispo de Mogúncia. Sagrou Pepino, o Breve, evangelizou a Turíngia, o Hessen e a Frísia, onde foi martirizado. A correspondência de são Bonifácio contém muitas cartas que pertencem a várias outras pessoas de seu círculo e vários correspondentes na Inglaterra e em Roma. Elas retratam seu trabalho de missionário na Germânia e mostram as facetas de seu caráter, que emergem claramente na execução de seus planos. Em nenhuma outra parte desse período achamos tão vívido quadro das condições desencorajadoras entre as quais os missionários labutaram e morreram. Mas também da pobreza, dos perigos, do ostracismo e oposição que ele encontrou, a despeito de que não há nestas cartas nenhum eco de desânimo, pena de si mesmo ou cansaço, apesar da degradação moral do clero franco, que ele se esforçou em reformar. Nós o vemos forjando pacientemente e com confiança completa os instrumentos pelos quais a Europa viria a ser convertida, o estabelecimento de conventos e mosteiros, a fundação de bispados, centros de educação e escolas, submetendo tudo à orientação sempre alerta dos papas, a cujo serviço dedicado e constante ele se empenhara desde o início de sua carreira missionária.
Papa Gregório II recomenda Bonifácio a Carlos Martel (dezembro de 722)
Para o Deus glorioso, nosso filho, o duque Carlos.
Tendo aprendido, filho amado em Cristo, que sois um homem de sentimento profundamente religioso, tornamos sabido de vós que nosso irmão Bonifácio, que agora está
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perante vós, um homem de caráter e fé esterlina, foi por nós consagrado bispo e depois de instruído nos ensinos da Santa Sé Apostólica, sobre a qual pela graça de Deus nós presidimos, está sendo enviado para pregar a fé aos povos da Germânia que habitam a margem oriental do Reno, alguns dos quais ainda estão macerados nos esforços do paganismo, enquanto muitos mais estão mergulhados na escuridão da ignorância.
Por isso vo-lo recomendamos sem mais cerimônias à vossa bondade e benevolência, implorando-vos ajudá-lo em todas as suas necessidades e conceder-lhe sua proteção constante contra qualquer um que possa entrar em seu caminho. Sabeis com certeza que qualquer favor entregue a ele é dado a Deus, que ao enviar seus santos apóstolos para converter os gentios disse que qualquer homem que os recebesse a Ele recebia.
Instruído por nós nos ensinos desses apóstolos, o bispo supracitado está a caminho agora, para levar o trabalho a ele atribuído.
Carlos Martel toma Bonifácio sob sua proteção (723)
Carlos Martel (688-741) era filho natural (nascido fora de matrimônio) de Pepino de Heristal. Recebeu o título Martel (o Martelo) por sua vitória sobre os sarracenos em Tours, fato do qual dependeu o destino da cristandade.
Para os senhores santos e padres apostólicos, bispos, duques, condes, regentes, criados, funcionários mais baixos e amigos, Carlos, prefeito do palácio, saudações amáveis.
Que seja conhecido que o padre apostólico bispo Bonifácio entrou em nossa presença e nos implorou que o levemos sob nossa proteção. Saibam, então, que foi nosso prazer fazê-lo.
Além disso, houvemos por bem emitir e selar com nossa própria mão uma ordem que onde quer que ele vá, não importa onde seja, deve com nosso amor e proteção permanecer imolestado e imperturbado, na compreensão de que ele manterá justiça e receberá justiça de igual forma.
E se qualquer pergunta ou eventualidade surgirem que não estejam cobertas por nossa lei, ele permanecerá imolestado e imperturbado até que alcance nossa presença, tanto ele e os que depositaram sua confiança nele, de forma que enquanto permanecer sob nossa proteção nenhum homem se lhe oporá ou lhe fará dano.
E para dar maior autoridade a este nosso comando, assinamo-lo com nossa própria mão e o selamos embaixo com nosso anel.
Bonifácio escreve ao papa Zacarias sobre as mazelas da Igreja (742)
O papa Zacarias (741-52) era de origem grega. Parece ter entendido menos as dificuldades de Bonifácio que os papas anteriores; entretanto, a ele deve ser consignada a confirmação dos
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primeiros sínodos e muito do que Bonifácio empreendeu. Foi por seus esforços que o sínodo de Cloveshoe, na Inglaterra, 747, foi realizado.
Para nosso senhor amado Zacarias que carrega a insígnia do pontificado supremo, Bonifácio, criado dos criados de Deus.
Confessamos, Pai e Senhor, que depois que soubemos por mensageiros que vosso antecessor Gregório, de santa memória, havia partido desta vida, nada nos deu maior conforto e felicidade que o conhecimento que Deus havia designado Vossa Santidade para aplicar os decretos canônicos e governar a Sé Apostólica. Ajoelhando a vossos pés, imploramos seriamente que, como fomos servos dedicados e humildes discípulos de vossos antecessores na sé de Pedro, podemos igualmente ser contados como servos obedientes, sob o direito canônico de Vossa Santidade.
É nossa firme resolução preservar a fé católica e a unidade da Igreja de Roma, e continuarei urgindo, como muitos ouvintes e discípulos, enquanto Deus me conceda nesta missão, render obediência à Sé Apostólica.
Também temos que informar-vos, Santo Padre, que devido à conversão do povo germânico, consagramos três bispos e dividimos a província em três dioceses. Humildemente desejamos que os confirmeis e estabeleçais como bispados, tanto por vossa autoridade como por escrito, as três aldeias nas quais eles foram consagrados. Estabelecemos uma sé episcopal em Wurzburgo, outra em Buraburgo e uma terceira em Erfurt, antigamente uma cidade de pagãos bárbaros. Esses três lugares nós vos imploramos urgentemente apoiar e confirmar por uma escritura que incorpore a autoridade da Santa Sé, de forma que, se Deus quiser, possa haver na Germânia três sés episcopais fundadas e estabelecidas pela palavra de são Pedro e o comando da Sé Apostólica, que nem as gerações presentes nem as futuras presumirão mudar em desafio à autoridade da Sé Apostólica.
Também seja de vosso conhecimento, Santo Padre, que Carlomano, o imperador dos francos, chamou-me à sua presença e desejou que eu convocasse um sínodo naquela parte do reino franco que está sob sua jurisdição. Prometeu-me que reformaria e restabeleceria a disciplina eclesiástica a qual durante os últimos sessenta ou setenta anos foi completamente desconsiderada e menosprezada. Se ele está verdadeiramente disposto, sob inspiração divina, a pôr seu plano em execução, eu gostaria de ter o conselho e as instruções da Sé Apostólica. De acordo com seus anciãos, os francos não convocavam um concílio havia mais de oitenta anos; não tinham nenhum arcebispo nem estabeleceram ou restabeleceram em qualquer lugar o direito canônico da Igreja. As sés episcopais que estão nas cidades foram dadas, na maior parte, à posse de leigos avarentos ou exploradas para usos mundanos por clérigos adúlteros e desmerecedores. Devendo eu empreender essa tarefa à sua solicitação e a convite do imperador, tenho que ter imediatamente, com as sanções eclesiásticas apropriadas, tanto o comando quando a decisão da Sé Apostólica.
Se eu descobrisse entre esses homens certos diáconos, como são chamados, que levaram sua vida desde a infância em deboche, adultério e todo tipo de impureza e que receberam o diaconato com essa reputação, e que mesmo agora, quando têm quatro ou cinco ou mesmo
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mais concubinas em suas camas à noite, são duros o bastante para se chamarem diáconos e lerem em voz alta o Evangelho: que entram no sacerdócio, continuam na mesma carreira de vício e declaram que têm o direito de exercer as funções sacerdotais de interceder pelas pessoas e oferecer a missa, e que, para tornar a matéria pior, são promovidos, apesar de suas reputações, a ofícios mais altos e são finalmente nomeados e consagrados bispos, em tais casos posso ter uma declaração escrita e autorizada relativa ao procedimento a ser seguido, de forma que eles possam ser processados como criminosos e condenados por meio de autoridade apostólica? Entre eles estão bispos que negam as acusações de fornicação e adultério, mas que, não obstante, são bêbados desleixados, viciados em caça, que marcham armados para a batalha e derramam com as próprias mãos igualmente o sangue de cristãos e pagãos. Desde que sou reconhecido como o servo e delegado da Sé Apostólica, minhas decisões aqui e vossas decisões em Roma deveriam estar em completo acordo, quando eu enviar mensageiros para receber seu julgamento.
Em outro assunto, também, tenho que almejar vosso conselho e permissão. Vosso antecessor de santa memória me incitou, em sua presença e audiência, a designar certo padre como meu sucessor para reger esta diocese após minha morte. Se esta é a vontade de Deus, eu concordo. Mas, agora, tenho minhas dúvidas se isso é possível, porque nesse meio-tempo um irmão daquele padre assassinou o tio do duque, e no momento não vejo nenhuma possibilidade de resolver a querela.
Então, imploro-vos que me deis vossa autoridade de agir no aconselhamento de meus colegas com relação à escolha de um sucessor, de forma que em comum possamos fazer o que é mais vantajoso para Deus, para a Igreja e a salvaguarda da fé. Que eu possa ter vossa permissão para agir neste assunto como Deus me inspirar, pois sem desafiar os desejos do duque, a escolha anterior parece impossível.
Tenho adiante que buscar vosso conselho, Santo Padre, com relação a um desconcertante e escandaloso relato que alcançou nossos ouvidos ultimamente. Grandemente nos perturbou e encheu os bispos da Igreja de vergonha. Certo leigo de alto grau veio a nós e afirmou que Gregório, de santificada memória, o pontífice da Sé Apostólica, havia lhe concedido permissão de se casar com a viúva de seu tio. Essa mulher já havia previamente se casado com seu próprio primo e o abandonado durante sua vida. Ela é conhecida por ser aparentada em terceiro grau do homem que deseja se casar com ela e que declara agora que a permissão necessária lhe foi concedida. Além disso, antes de seu primeiro matrimônio ela havia feito um voto solene de castidade, e depois de tomar o véu, lançou-o de lado.
Para esse matrimônio o homem atesta que tem permissão da Santa Sé. Isso não podemos aceitar como verdadeiro. Pois, num sínodo da Igreja além-mar onde nasci e fui criado, isto é, o sínodo de Londres, convocado pelos discípulos de são Gregório, os arcebispos Agostinho, Laurêncio, Justo e Melito, tal matrimônio foi declarado na autoridade da Santa Bíblia ser um crime odioso, uma união incestuosa e execrável e um pecado condenável. Por isso eu vos imploro, Santo Padre, declarar a verdade sobre o assunto, de forma que isso não possa dar origem a escândalos, dissensões e novos erros entre o clero e os fiéis.
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Porque os sensuais e ignorantes germanos, os bávaros e francos veem que alguns desses abusos que condenamos são predominantes em Roma, pensam que os padres os permitem lá e por causa disso nos reprovam e tomam mau exemplo. Dizem que em Roma, perto da igreja de São Pedro, viram multidões de pessoas que desfilam nas ruas no começo de janeiro de cada ano, gritando e cantando canções de estilo pagão, montando mesas com comida e bebida, de noite até a manhã, e que durante aquele tempo nenhum homem está disposto a emprestar a seu vizinho fogo ou ferramentas ou qualquer coisa útil de sua própria casa. Contam, também, que viram as mulheres usando amuletos pagãos e pulseiras nos braços e pernas e os oferecendo à venda. Todos esses abusos testemunhados por pessoas sensuais e ignorantes trazem reprovação em nós daqui e frustram nosso trabalho de pregar e ensinar. De tais matérias o apóstolo diz com reprovação: “Começaste a observar dias especiais e meses, estações especiais e anos. Estou ansioso a teu respeito: terá toda a labuta que gastei em ti sido inútil?”.
E santo Agostinho diz: “O homem que põe sua fé em tal tolice como encantamentos, adivinhos, ledores de sorte, amuletos ou profecias de qualquer tipo, embora jejue e reze e vá continuamente à igreja, dando esmolas e fazendo todos os tipos de penitências, não ganha nada enquanto se agarrar a tais práticas sacrílegas”.
Se Vossa Santidade acabasse com esses costumes pagãos em Roma, isto redundaria a seu crédito, além de promover o sucesso de nosso ensino da fé.
Os bispos e padres francos cuja reputação como adúlteros e fornicadores foi notória, cujos filhos, nascidos durante seu episcopado ou sacerdócio, são testemunhas vivas de sua culpa, agora declaram em seu retorno de Roma que o pontífice romano lhes concedeu plena permissão de exercer seus ofícios na Igreja. Nossa resposta para eles é que nunca ouvimos a Sé Apostólica dar julgamento contrário aos decretos canônicos.
Todos esses assuntos, mestre amado, nós os trazemos para que possamos dar a esses homens uma resposta autorizada e que, sob vossa orientação e instrução, superemos esses lobos vorazes e impeçamos que as ovelhas sejam desencaminhadas.
Finalmente, nós vos enviamos alguns pequenos presentes, um aconchegante tapete e um pouco de prata e ouro. Embora sejam muito insignificantes para ser oferecidos a Vossa Santidade, seguem como símbolo de nosso afeto e nossa obediência dedicada.
Possa Deus proteger Vossa Santidade e que possais desfrutar saúde e vida longa em Cristo.
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