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O Ocidente profundo e o Oriente (re)emergente na Era da confrontação geopolítica

Dois entre os gigantes do mundo, China e Brasil poderão, através de diálogo multifacético em torno de grandes temas mundiais, dar uma contribuição relevante para a construção de uma nova ordem internacional, que atualmente passa por rápidas e enormes transformações. Apenas três decádas após um grande ponto de inflexão no sistema internacional – o desfecho da guerra fria, com a vitória do ocidente anglosaxão –, a promessa de um mundo regido por instituições e valores liberais, que supostamente se perpetuaria, se esvaiu, está esgotada. A emRonaldo G. Carmona

Professor de Geopolítica da Escola Superior de Guerra (ESG – Brasil)

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polgação dos vitoriosos da guerra fria não resistiu à realidade marcada pela resiliência e centralidade dos Estados nacionais neste periodo que corresponde a nossa era histórica.

O presente artigo buscará apresentar um panorama destas grandes mudanças ocorridas na ordem internacional nas últimas três décadas, a partir de uma leitura geopolítica. Concluirá observando a necessidade, apoiada na história sino-lusobrasílica, de promover um reencontro das duas grandes civilizações do Ocidente e do Oriente, na qual Macau poderá ter seu papel renovado para abrigar este grande diálogo que a atual época histórica exige.

Três décadas de transformações no cenário geopolítico mundial

Nas três décadas que vão dos episódios de 1989-1991 até este 2020 – marcado pela grave pandemia em escala mundial –, assisitimos inicialmente, sua inauguração com a euforia liberal que inaugurou a breve pax americana com força sem igual na última década do século XX.

Foi o periodo em que que os Estados Unidos e seus aliados promo-

veram um processo de globalização sem freios, objetivando derrubar barreiras ao comércio de bens e serviços e a propagar a ideologia da redução do papel indutor do Estado no desenvolvimento nacional – sem reduzir, contudo, ao contrário, ampliando, seu próprio Poder nacional. No plano do poder duro, as eras Bush e Clinton trataram de consolidar posições preparatórias ao que alguns denominariam como novo século americano, ou seja, ao prolongamento, por um novo periodo histórico, da hegemonia sistêmica norte-americana emergida ainda ao final da primeira guerra mundial, com o declínio inglês e a troca de guarda no sistema internacional.

A primeira Guerra do Golfo, em 1990-1991, a inaugurar o pós guerra fria, marcaria também o início da desestabilização de regimes laicos e seculares no Oriente Médio, em linha com o idealismo cosmopolita-liberal que embalava o Ocidente anglo-saxão e seus aliados europeus por impor cópia de seus sistemas políticos e econômico a todo o globo. Os genocidios de Ruanda em 1994 e em Srebrenica em 1995, intensificaram essa cruzada, caracterizando uma espécie de imperialismo humanitário durante o periodo de Bill Clinton. Contudo, o periodo expansivo da seu auge na última década do século XX, sofreu duas contestações de vulto em episódios ocorridos em 2001 e em 2007-2008. A virada de século, assim, trouxe as primeiras consequências de vulto à “eternização” pretendida na vitória anglo-saxã na guerra fria. Os atentados de 11 de setembro de 2001 no coração dos EUA acabaram por marcar uma reorientação da geoestratégia da superpotência para o combate ao terrorismo, intensificando assim, sua campanha de desestabilização de governos no vasto cinturão geográfico que vai do Norte da África às bordas da China a Oeste.

A crise financeira de 2007-2008, eclodida ao final da presidência de George W. Bush impactaria fortemente o início do periodo de Barack Obama, cuja eleição, aliás, teria dado novo alento à narrativa cosmopolita-liberal. Contudo, a gravíssima crise financeira, produto da financeirização sistêmica representada pelo crescente hiato entre riqueza fictícia e produção material, demonstrou-se como uma segunda grande contestação à euforia liberal inaugurada ao terminio da guerra fria.

Nesse mesmo periodo, mais precisamente em 2008, outro episódio de vulto, a chamada guerra da Georgia, marca o início da reação da Rússia à tentativa de cerco e aniquilamento que seguiu ao fim da URSS. Como se lê em Brzezinski e é sugerida por outros estrategistas norteamericanos, a balcanização do território russo e de sua área geográfica de influência seria o golpe final na

pax americana, podemos dizer, após

grande Rússia. Aqui é preciso compreender uma questão tão profunda quanto perene no pensamento geoestratégico estadunidense. Desde Mackinder, passando por Spykman e seu discipulo Kennan, até Bzezinski, o receio de expurgo da presença estadunidense na Eurásia por uma coalizão de potências hostis e o consequente isolamento insular dos Estados Unidos1 constitui o núcleo da preocupação do pensamento geopolítico clássico anglo-saxão.

E antes, da Inglaterra em relação ao continente europeu. Não por acaso, imediatamente ao final da guerra fria, em 1992, o documento Defense Guidance Planning anuncia ser o impedimento à conformação de grandes potências potencialmente hostis, objeto geoestratégico prioritário no periodo que se abria após a vitória na guerra fria.

Não por acaso: desde os inssucessos das invasões holandesas e francesas no Brasil colônia ainda no século XVII, passando por Napoleão e depois de Hitler no assédio à grande Rússia, e depois na impossibilidade do agressor japonês efetivamente ocupar a China na segunda guerra, a experiência geoestratégica demonstra que grandes massas territoriais, com grande população, não possibilitam domínio e ocupação colonial convencional. Por isso, dividir e fraturar grandes massas territoriais foi objetivo de grandes potencias rivais ontem, hoje e também o será amanhã.

A segunda década do século XX

Efetivamente, as duas grandes contestações à pax americana na primeira década do novo século (2001 e 2007/2008), prenunciariam as mudanças de vulto que seguiriam na segunda década do século XXI.

Desde 2006, o surgimento de um fórum de dialogo entre quatro “países-monstro” (monster countries) –para utilizar de consagrada expressão de George Kennan –, os BRICs, inicialmente de uma forma (relativamente) discreta à margem da Assembléia Geral da ONU, soaria um sinal de alerta ao dito acima quanto a prioridade geoestratégica da grande superpotência vitoriosa na guerra fria.

O início da segunda década do século XXI acentuaria o perfil revisionista (contestador) dos BRICS2 em relação à ordem liderada pelos Estados Unidos.

A reunião de Cúpula dos BRICS em Fortaleza em 2014, em especial, é o auge desta orientação revisionista dos BRICS em relação à ordem internacional vigente3. Destaca-se naquela reunião, que o fórum transmuta-se de um espaço político –fundamentalmente voltado a declarações e pronunciamentos políticos – para a construção efetiva de instrumentos de contestação à ordem internacional, sobretudo por meio das decisões de criação, em Fortaleza, do Banco dos BRICS e do fundo de reserva, com potencial transformador da ordem global.

O sinal de alerta no status quo do poder mundial já tinha sido ativado.

Antes, em 2013, iniciou-se, aparentemente por razões endógenas – e certamente por razões exógenas que ainda estão por serem melhor identificadas –, um forte movimento de desestabilização do então governo brasileiro, em eventos ocorridos em junho de 2013 e que, de fato, deflagrariam um periodo de crise e divisão nacional no gigante da América do Sul, que rigorosamente, persiste até o momento atual. O resultado é conhecido: a neutralização temporária do ativismo geopolítico do Brasil. Contudo, as manobras não lograram deter as mudanças no cenário geopolítico global.

Da re-emergência da China ao mal estar com a globalização

A segunda década do século XXI marcaria a notável e irreparável (re)ascensão chinesa, deflagrada pelas decisões tomadas inicialmente na histórica Terceira Sessão Plenária do 11º Comitê Central do Partido Comunista da China, reunido em dezembro de 1978.

Não se deve subestimar, ao contrário, o contexto internacional que viabilizou espaço (margem de manobra) para as decisões chinesas relativas ao início da política de reforma e abertura. Refiro-me à monobra geopolítica, proposta por Kissinger e executada sob a presidência de Nixon, quando no início dos anos 1970, os Estados Unidos, aproveitando-se do contencioso ideológico sino-soviético, distencionou suas relações com Pequim, no simbólico campeonato de pingue-pongue entre as

Já com o “S” de South Africa, em representação ao continente africano. Ver CARMONA (2014). equipes da China e dos Estados Unidos em 1971, e no ano seguinte, na visita do presidente Nixon ao presidente Mao.

Os anos 1970, pois, em eventos ocorridos em seu início (1971-1972) e no seu final (1978), um de natureza exógena, outro endógeno à China – este, derivado de maior margem de manobra possibilitado pelo primeiro –, marcaram o arranque exponencial da República Popular da China ao posto de maior economia do mundo, resultado iminente que estamos por observar.

Cabe ressaltar que antes, ainda que em menor escala, o Brasil já havia experimentado este salto exponencial. No século XX, a partir da Revolução de 1930, o Brasil tinha percorrido trajetória que, em escala aproximada, também resultou por alterar substancialmente as bases de seu Poder nacional.

A política de reforma e abertura chinesa, por quatro décadas, aproveitou-se de movimento sistêmico que incluiu as esferas geopolítica – a manobra por cindir os dois gigantes eurasiaticos no início dos anos 1970 –e outra geoeconomica – o deslocamento produtivo das fábricas do ocidente em relação à própria China –,

para promover uma notável (re)ascensão, provavelmente sem igual na história mundial. Ressalte-se que o “re” acoplado à palavra ascensão não é mero acessório, uma vez que a China retorna ao posto de grandeza que caracterizou-a até as agressões externas na Guerra do Ópio, que iniciou um século e meio de assédio estrangeiro, interrompido de fato com a Revolução de 1949.

O fato é que condições sitêmicas –isto é, margem de manobra permitidas por razões exógenas –, combinadas com decisões autonomas da liderança chinesa, derivada de decisões endógenas – corrigem o periodo de caos interno anterior – Grande Salto Adiante e depois, a Grande Revolução Cultural Proletária –, e permitem à China apropriar-se da globalização para fortalecer sem igual as bases de seu Poder nacional.

Contudo, os efeitos da globalização foram absolutamente assimétricos em termos globais. Nos países desenvolvidos, em especial em antigas áreas industriais, alguns de seus efeitos mais perversos derivaram em desemprego e desesperança. Em boa parte dos países em desenvolvimento, desconstrução de suas economias nacionais.

Estas assimetrias da globalização não tardariam pois a materializar-se em efeitos político de vulto. Assim, do ponto de vista da evolução recente do cenário geopolítico global, dois efeitos políticos de grande peso ocorrem ao iniciar a segunda metade da segunda década: o chamado BREXIT na Grâ-Bretanha e a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos. O BREXIT – a saída da Grã-Bretanha da União Europeia –, aprovado por pequena margem em junho de 2016 (51,8% a 48,2%), é a manifestação mais forte de um fenomeno mais amplo: a profunda crise da globalização liberal – cuja primeira manifestação de peso ocorrera na citada crise de 2007-2008 – com a reafirmação dos velhos e atualissímos princípios westphalianos quanto ao primado do Estado nacional, que a ilusão liberal do pós guerra fria ousou contestar. O BREXIT também é o maior golpe já desferido à União Europeia, antiga aspiração liberalinstitucionalista de construção de uma governança supranacional no velho continente.

A eleição de Donald Trump, em novembro de 2016, sob o slogan AMERICA FIRST, consolidaria a primazia de uma nova tendencia na situação internacional, da centralidade dos projetos nacionais em oposição ao idealismo liberal surgido, como dissemos acima, ao final da guerra fria. Contudo, a eleição de Trump eleva qualitativamente a opção pela confrontação com a China – tomada originalmente por seu antecessor, Barack Obama ainda nos primeiros anos de sua presidencia, no que fi-

cou conhecido na literatura com a política do “pivot to Asia”. Com Trump, há portanto esta elevação exponencial da opção pela confrontação, em especial a partir da deflagração da chamada guerra comercial em março de 2018.

A rigor, trata-se de uma guerra voltada a contenção da ascensão do poder nacional chinês em multiplas esferas. De fato, resulta numa atualização, desta vez com foco na China, da velha estratégia do containment concebida ao início da guerra fria por George Kennan para o enfrentamento da União Soviética.

O quadro de confronto sistêmico entre as duas grandes potências mundial, não obstante, exigem reflexão sistemática quanto às suas causas, visando medidas mitigadoras de seu agravamento, tendo em vista ajustes que permitam a convivência relativamente harmonica de opções nacionais distintas.

Não consta que a China busque um expansão ideológica mundo a fora. Isso difere, essencialmente, a atual confrontação daquela observada no periodo da guerra fria.

Na busca de uma cooperação pragmática, que busque ao mesmo tempo permitir que as nações conservem seus valores, identidades e aspirações ao desenvolvimento, e por outro lado instituam um ambiente harmonico no plano internacional, é que duas grandes civilizações podem desenvolver diálogo profícuo visando estes grandes objetivos.

O Ocidente profundo e o Oriente emergente no novo cenário geopolítico

Localizados nas duas extremidades geograficas do globo terrestre, um ao sul do hemisfério ocidental e o outro ao norte do hemisfério oriental, Brasil e China possuem, por óbvio, diferenças significativas, mas também surprendentes identidades históricas e contemporâneas.

O Brasil é o herdeiro direto da tradição e do legado de pensamento estratégico que inaugurou a era moderna, quando as Caravelas partiram ainda no século XV rumo ao Oceano desconhecido, numa ousadia até então sem precedentes.

Motivou Dom Afonso Henrique e seus sucessores, primeiro, o idealismo – a fé católica –, a partir da qual – no contexto do espírito da época – se transbordaria civilização aos povos do mundo. Mas também a aspiração da prosperidade material para o povo português, confinado na extremidade geografica da peninsula europeia e com o acesso ao Oriente dificultado à leste.

Destaca-se a apurada visão geoestratégica do português, que na construção do primeiro Império de dimensões realmente mundial, buscou ocupar os pontos de estrangulamente ou de passagem pelas mais importantes rotas de navegação, dentre eles o até hoje fundamental Estreito de Malaca.

Mas é em Macau onde o Império Português, teria o ponto de contato

de civilizações: a chinesa, com seu largo desenvolvimento percorrido, já à altura, por milhares de anos e a portuguesa, produto por sua vez da mestiçagem na extremidade da península europeia. Civilização mais recente que se realizaria inicialmente por um presença territorial ao largo do mundo e enfim, na contemporaneidade, no colosso sul-americano herdeiro desta tradição mais profunda.

O intercambio sino-luso-brasileiro ao longo dos séculos, deixou marcas profundas nestes povos. Não por acaso, os escritos daquele que é o

principal interprete da formação social brasileira, Gilberto Freyre, foram reunidos numa antologia denominada China Tropical – e outros escritos sobre a influência do Oriente na cultura luso-brasileira, em 1997, por ocasião do centenário do nascimento do escritor brasileiro. É vasta a contribuição da milenar civilização chinesa à cultura brasileira contemporanea, tão bem descrita por Freyre.

Macau, por sua vez, em seus cinco séculos de existência deixou marcas profundas e inapagável deste intercambio civilizatório para o povo chinês. Para o Brasil, no âmbito da atualização da reflexão sobre seus desafios geopolíticos no século XXI, destacase o resgate de suas origens profundas, cuja localização mais remota localiza-se no projeto da escola de Sagres. Projeto que hoje poderá se renovar a atualizar no Brasil como representante do Ocidente profundo, aquele que precedeu, na cultura e na estratégia, os anglo-saxões.

Inspira os brasileiros a visão do Padre Vieira, que na sua História do Futuro, antevia o destino-manifesto brasílico do Vº Império.

Na atual quadra geopolítica, marcada pela ascensão – re-ascensão, como dissemos –, do Império do Meio, cabe os dois colossos, Brasil e China, que laços profundos cultivam desde séculos, e na contemporaneidade possuem fortes laços economicos, desenvolverem ativo dialogo em torno da organização de uma outra globalização. Macau, espaço desse encontro das duas grandes civilizações, é espaço sem igual para a necessidade de nossa época histórica.

Referências bibliográficas

BREU FREIRA, Antonio de. O Padre Antonio Vieira no Maranhão e o messianismo do Quinto Império. Junho de 2017.

BRZEZINSKI, Zbigniew. El gran tablero mundial – La supremacia estadunidense y sus imperativos geoestratégicos. Paidós. Barcelona, 1998.

CARMONA, Ronaldo. “Geopolítica clássica e Geopolítica brasileira contemporânea: Mahan, Mackinder e a “grande estratégia” do Brasil para o século XXI”. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo (USP), 2012.

CARMONA, Ronaldo. O retorno da Geopolítica: a ascensão dos BRICS. Revista Austral. Porto Alegre, EdUFRGS, 2014.

KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potencias: transformação econômica e conflito militar de 1500 a 2000. 2ª ed, Rio de Janeiro: Campus, 1989.

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SPYKMAN, Nicholas J. Estados Unidos frente al mundo. Fondo de Cultura Econômica, Ciudad de México, 1944.

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