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A arte e a alma
Desde pintura e cerâmica até à música e literatura, Macau tem-se vindo a transformar num viveiro de arte e de talentos artísticos. Os criativos dizem que o futuro apresenta-se como muito positivo porque, afirmam, “existe uma vontade colectiva de colocar Macau no mapa mundial como uma grande cidade artística.”
Numa tarde ensolarada de Junho, no moderno bairro dos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE) de Macau, uma multidão animada entra no Museu de Arte para participar na primeira edição da “Arte Macau”, o maior festival de artes da cidade, organizado para assinalar o 20º aniversário da transferência da administração de Portugal para a China.
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Essa multidão de entusiastas das artes percorre a infinidade de instalações multimedia, contemplando as pinturas e tirando uma série aparentemente interminável de fotografias dos objectos de cerâmica centenária em exposição.
E a excitação não acontece apenas neste museu e neste dia preciso. Residentes e visitantes também apreciam as muitas instalações de rua espalhadas um pouco por toda a cidade, visitando ainda os complexos hoteleiros para ver o que lá está exposto.
Apreciam igualmente o que se encontra em exposição nos hotéis e nos consulados estrangeiros – após o que aguardam os muitos espectáculos de dança, cénicos e concertos
Foto cedida pelo Centro de Assuntos Culturais
As esculturas de Wong Ka Long, 'The Wanderer', desenhadas em homenagem ao poeta português Fernando Pessoa, fazem parte de uma das seis instalações externas da Art Macao.
musicais que são organizados no âmbito do Arte Macau até Outubro.
Em termos globais, a resposta a esta primeira edição do Festival foi positiva. Trata-se de um festival que demonstra quão longe Macau já foi em demonstrar o seu amor às artes Marianna Cerini – e sublinha igualmente a sua intenção de passar a ser uma plataforma artística na região nos anos mais próximos.
A primeira edição do Arte Macau está concluída mas desde então os organizadores dos diversos depar-
tamentos governamentais têm brindado ao seu sucesso. Dados oficiais indicam que mais de 16 milhões de pessoas visitaram as exposições, instalações e acontecimentos, fazendo do Festival, afirmam-nos alguns, a
exposição de arte mais visitada em todo o mundo.
É evidente que isto não aconteceu do dia para a noite. A cidade tem um rico tecido cultural, desenvolvido tanto por si própria como através de 400 anos de intercâmbios entre a China e o Ocidente. Mas são os esforços e as iniciativas empreendidas nas últimas duas décadas que realmente a fazem sobressair como um destino artístico vibrante e ambicioso.
Museus públicos foram inaugurados – o Museu de Arte está a comemorar o seu 20º aniversário – e galerias que apoiam os artistas locais têm aparecido, em simultâneo com uma actividade artística mais independente.
A cidade alberga actualmente mais de 30 espaços dedicados às artes, incluindo o Armazém do Boi, entidade sem fins lucrativos, a Galeria do Tap Seac e o Museu de Arte de Macau, ambos financiados pelo governo, este útimo um edifício em cinco andares totalmente dedicado a exposições e à exibição da produção artística local.
Depois da arte há música e literatura. A Orquestra de Macau, um conjunto com 60 músicos que toca desde 1983, ascendeu a um nível de classe mundial e provou ser uma das orquestras mais diversificadas actualmente existentes, tendo entre os seus músicos pessoas dos cinco continentes.
O Festival Literário de Macau – Rota das Letras surgiu em 2012, apresentando anualmente um programa que se centra não apenas nos autores mas também no cinema, música, dança e teatro. Além disso, o Festival de Artes de Macau e o Festival Internacional de Música de Macau –dois eventos que se realizam há cerca de 30 anos – são de momento considerados como dois dos mais importantes acontecimentos culturais da Ásia.
A dimensão e o êxito da edição deste ano do Festival de Arte de Macau são a prova das ambições culturais desta metrópole e de que esta cidade, pequena mas poderosa, pretende alterar o seu papel de um destino do jogo para uma plataforma artística global. Que reserva o futuro?
Uma experiência visual
“Não há qualquer dúvida de que Macau reformulou as suas prioridades ao longo das últimas décadas”, afirma Konstantin Bessmertny, um artista russo que reside em Macau desde 1992, ano em que teve início o despertar artístico de Macau. “A preocupação central costumava ser as receitas do jogo. O foco actual centra-se mais no investimento do desenvolvimento cultural. Enquanto artista, Macau é um lugar muito bom para se estar.”
Bessmertny recorda o “deserto artístico” que Macau era quando aqui chegou. “Mas tudo mudou muito rapidamente, à semelhança do que acontece com a maior parte das coisas”, afirma. “As pessoas no poder sempre mostraram uma atitude muito aberta no que se refere às artes.” Os últimos 20 anos, acrescenta, proporcionaram o aparecimento de um conjunto diversificado de artistas que veio redefinir o ambiente artístico local, criando um mundo de contrastes muito interessante. “Tanto as entidades institucionais como as independentes estão a despender grandes esforços no sentido de criar um modelo de apoio para o sector”, diz. “Ao invés de copiar e colar o que existe em cidades como Nova Iorque ou Londres, essas entidades estão a trabalhar na definição da identidade de Macau”.
Com esse objectivo, a cidade decidiu-se pela colocação dos artistas locais no centro dos acontecimentos.
O Espaço de Arte Vila da Taipa é disso um exemplo, apresentando artistas locais e regionais. O Centro de Design de Macau, uma antiga fábrica que foi convertida e agora aloja galerias de artes, lojas, uma cafetaria, livraria e espaço para as artes de desempenho, oferece um espaço criativo para os designers e marcas da cidade.
Macau também fomentou a sua vantagem comparativa. “Enquanto cidade que foi sendo moldada tanto pelo Oriente como pelo Ocidente, Macau localiza-se numa encruzilhada única de culturas”, diz Bessmertny.
Os acontecimentos artísticos locais são igualmente muito mais refinados do que os de Hong Kong, salienta Bessmertny. “Em Hong Kong há muito do que designo por ‘arte como entretenimento’, grandes eventos de carácter comercial. Penso que Macau tem uma aproximação muito mais educativa e socialmente empenhada às iniciativas culturais.”
A Mulheres Artistas 1ª Bienal Internacional de Macau, que se iniciou no ano passado e é dedicada em exclusivo a artistas do sexo feminino de todo o mundo, é uma dessas iniciativas. “Existe da parte de todos quantos estão envolvidos uma vontade clara de nos colocar no mapamundi como uma grande cidade das artes”, conclui Bessmertny. “O potencial é inacreditável.”
Como um livro aberto
À semelhança das artes visuais, a cultura de escrita de Macau é, de há muito, um caldeirão de diversas influências. Os seus autores são chineses, macaenses, portugueses e ingleses. São pessoas que escrevem nas línguas maternas baseando-se nas suas experiências pessoais, ver-
Konstantin Bessmertny, artista.
tendo no papel uma literatura tão diversa quanto possível – se bem que muito pouco conhecida no estrangeiro.
Embora a confluência de culturas e a complexidade linguística tenham definido grande parte de sua história, foi claro um rumo mais deliberado nos últimos 20 anos, à medida que novas gerações de escritores começaram a trabalhar na cidade e fizeram de seu posicionamento geográfico e cultural um aspecto essencial das suas obras.
“O ambiente literário de Macau é imensamente rico e diversificado”, confirma Yao Jing Ming, director do Departamento de Português da Universidade de Macau e autor de uma série de livros e artigos sobre
Cheong Kam Ka
a literatura publicada no território nas últimas três décadas. “É muito diferente das literaturas que se encontram em outras partes da China”, sendo igualmente uma que, desde a transferência da administração, tem sido cada vez mais adoptada e apoiada pelos residentes e pelo governo, como prova o aparecimento de festivais literários e sessões de leitura pública. E uma que, desde a transferência da administração, tem sido cada vez mais adoptada e apoiada pelos residentes e pelo governo, como prova o aparecimento de organizações literárias, leituras públicas e festivais.
O colectivo artístico Armazém do Boi, fundado em 2001, efectua regularmente encontros em que en-
Cheong Kam Ka
Yao Jing Ming, autor.
sina como publicar, entrando em pormenores como editar, paginar e distribuir. A Associação de Poetas Outersky de Macau, a primeira organização literária electrónica da cidade, foi lançada em 2002, sendo uma plataforma activa de intercâmbio de poesia na Internet. A Associação de Histórias de Macau, uma entidade sem fins lucrativos constituída em 2005, promove obras de prosa e de poesia de escritores de Macau, tendo publicado mais de cem títulos até à data.
A nível mais institucional, o Instituto Cultural de Macau tem ajudado a alimentar toda esta agitação, ajudando regularmente os escritores e autores locais a publicarem as suas obras. Em Julho realizou a primeira Feira Internacional do Livro de Macau. O Instituto patrocina desde 2012 o Festival Literário de Macau – Rota das Letras, cujos fundadores são entidades não-governamentais. “A cooperação [e separação de papéis] fez deste festival um momento literário único”, afirma o vice-director do festival, Yao Jing Ming. “Permitiu que o festival mantivesse a sua liberdade, o que agrada muito aos escritores. Esta realidade só tem melhorado ao longo dos anos.” O festival, acrescenta Yao, “é uma janela que permite um olhar diferente para Macau.”
“A cidade tem muito boas condições para os escritores e, caso estes tenham talento, serão reconhecidos”, diz Yao. “No futuro, o que realmente pode dar à realidade literária de Macau a visibilidade que merece, será a capacidade de sair da sua própria concha. Penso que devemos sair do nosso próprio mundo e olhar para o exterior”, afirma, acrescentando acreditar que a poesia – ”o exemplo de maior qualidade da literatura contemporânea de Macau” – poderia servir a esse propósito.
Porém, não é apenas a palavra escrita que é comemorada nos festivais. O mesmo acontece com a palavra falada e a imagem em movimento: o Festival Internacional de Cinema e Cerimónia de Entrega de Prémios Macau, que entre 5 e 10 de Dezembro de 2019 teve a sua quarta edição, representa a força crescente da indústria cinematográfica de Macau e recompensa os realizadores, actores e equipas que se destacaram na indústria, além de exibir filmes de todo o mundo. O Festival Internacional Sound & Image Challenge também merece destaque. O evento, que acontece no Teatro Dom Pedro V, todos os Dezembros, celebra os curtas-metragens e videoclipes de Macau, bem como do estrangeiro.
Música para os nossos ouvidos
Há uma pequena mas crescente actividade musical em Macau. A cidade tem uma orquestra desde 1983 e o Conservatório de Macau desde 1991 – os quais tiveram um papel importante na educação musical. Mas, durante muito tempo, mais nada existia além deles. Locais de música ao vivo poucos havia, sendo que mesmo hoje em dia existem apenas alguns. Bandas independentes não eram de forma alguma comuns e mesmo a música popular encontra-se na sua fase inicial. “Mas está cada vez melhor”, diz Lu Jia, director musical e maestro
principal da Orquestra de Macau. “A própria orquestra passou de um público de uma centena de pessoas, quando vim para Macau em 2006, para milhares e a sua capacidade interpretativa cresceu de forma exponencial ao longo das décadas. Todos os concertos do 33º Festival Internacional de Música de Macau esgotaram-se rapidamente. Todo o sector está a tornar-se mais maduro.”
Na base dessa maturidade crescente existe uma série de programas de concessão de subsídios por parte do governo e espectáculos gratuitos introduzidos nos últimos 20 anos, que proporcionaram uma plataforma para que os residentes interagissem com os músicos locais e desenvolvessem uma educação musical.
“O governo tem apoiado muito a música”, diz Lu. “Ajudou a criar uma atmosfera acolhedora e espaço para artistas locais e internacionais. Em Xangai ou em Cantão as pessoas têm de despender mais de mil patacas para adquirir um bilhete para um concerto – em Macau os preços dos bilhetes rondam as centenas de patacas, uma vez que são altamente subsidiados pelo governo.”
O concerto musical Hush!! Full Music, um evento anual organizado pelo Instituto Cultural de Macau desde 2005 – que teve lugar em Abril desse ano – foi fundamental para esse objectivo. O Festival Internacional de Música de Macau, cuja 33ª edição decorreu durante a maior parte de Outubro de 2019, é outro grande acontecimento anual organizado pelo governo que reúne artistas de renome internacional um pouco de todo o mundo que se destina a promover a música.
A um nível mais independente, a Live Music Association, uma organização sem fins lucrativos que realiza
Foto cedida pelo Centro de Assuntos Culturais
Lu Jia, maestro.
espectáculos nocturnos de artistas locais e de fora da cidade, tem desempenhado um papel importante na promoção de um cenário musical alternativo.
Lu crê que um nível tão elevado de envolvimento, tanto a nível governamental como independente, ajudará a desenvolver o potencial musical da cidade.
O posicionamento demográfico e geográfico único de Macau, acrescenta, também pode contribuir para isso. “O que é interessante em Macau”, diz ele, “é que a idade do nosso público é relativamente jovem, especialmente em comparação com a Europa. Também somos um ponto de entrada na província de Guangdong para muitas culturas europeias. Macau é uma ponte e penso que ambos os aspectos – este público mais jovem e a nossa vantagem geográfica – serão as principais forças no seu futuro desenvolvimento musical.”
De qualquer forma o caminho a seguir não se apresenta fácil.
“Espero que haja mais músicos locais em Macau”, diz Lu, acrescentando que gostaria de ver “mais orquestras juvenis e currículos de música nas escolas.” “O desenvolvimento da área da Grande Baía poderá desempenhar um papel importante no futuro do panorama musical de Macau.”
Macau teve um panorama artístico vibrante ao longos de centenas de anos mas, nos últimos 20 anos, foi reforçada essa componente cultural permitindo que se tenha tornado num importante centro artístico regional.