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Macau nas Memórias de Joaquim Paço d’Arcos

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A arte e a alma

A arte e a alma

Joaquim Belford Correia da Silva (1908-1979), que assinava como Joaquim Paço d’Arcos, romancista, poeta, dramaturgo e ensaísta, viveu em Macau entre Agosto de 1919 e Junho de 1922, período em que o seu Pai, o Comandante Henrique Correia da Silva [que também usava o nome de Henrique Paço d’Arcos] desempenhou as funções de Governador dessa Província Ultramarina situada na zona meridional da China. Joaquim Paço d’Arcos tinha apenas onze anos de idade, mas os curtos anos em que viveu em Macau revelaram-se culturalmente muito intensos e existencialmente marcantes, de tal forma que a sua futura obra irá reflectir intermitentemente essas vivências, sobretudo nos “Amores e Viagens de Pedro Manuel” (1935), no “O Navio dos Mortos e Outros Contos” (1952), nos “Encontros da Vida e da Literatura” (1955) e nas “Pedras à Beira da Estrada” (1962). Talvez aí se encontrem umas das melhores e mais singulares marcas da estética orientalista da fase imperial da nossa história literária contemporânea. Sem esquecer, naturalmente, as “Memórias da Minha Vida e do Meu Tempo”, em três volumes, 1973/1979. Um dos últimos actos do então governador cessante, Artur Tamagnini Barbosa, em 23 de Abril de 1919, foi o de mandar reforçar alguns orçamentos sectoriais, nomeadamente ção dos cavalos do Palácio com des, como bem se nota. Em Agosto de 1919, um tufão ameaçava paralisar Hongkong, Macau e toda a zona a sul de Cantão. O Governador de Hongkong, Sir Reginald Stubbs oferece a Government House, mas o Comandante Henrique Correia da Silva tinha pressa para chegar a Macau. A canhoneira “Pátria”, comandada por Mariano de Carvalho, transportará o novo Governador, a Família e a sua comitiva, de Hongkong para Macau, debaixo de uma intensa tempestade tropical, “novidade não houve além do balanço ininterrupto durante nove horas, mais do dobro do tempo normal da travessia”. Chegam a Macau com a cidade totalmente às escuras, porque houve uma falha geral de energia. O tufão trouxe muitos prejuízos, mas também um novo Governador. Era o prenúncio de uma atribulada governação. Em Macau reencontraram familiares, como Carlos d’Assumpção, filho do barão d’Assumpção, que usualmente residia em Kowloon, e o médico José Caetano Soares. De assinalar a curiosidade de o Comandante Henrique Correia da Silva ter nascido em Macau, no ano de 1878, quando o seu Pai, Carlos Eugénio Correia da Silva, o Conde de Paço d’Arcos, era Governador do Território, entre 1876 e 1879. António Aresta

a “dotação do Museu Luís de Camões com 129,000” e a “alimenta200,000”. Uma questão de priorida-

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Professor e Investigador No seu afectuoso e vibrante livro de memórias, “Memórias da Minha Vida e do Meu Tempo”, que se estende por três volumes, publicados entre 1973 e 1979 [reeditados num só volume em 2014], encontramos uma soberba descrição de Macau e de alguns meandros diplomáticos e políticos da sua difícil governabilidade.

Joaquim Paço d’Arcos recorda que se defrontavam “nesse tempo em Macau, dois tipos de civilização opostos, conciliados só pelo poder de adaptação e arte de convívio dos portugueses. Muitas das casas em que habitavam as famílias lusíadas, nativas ou idas da Metrópole, fossem antigos palacetes ou modestas habitações, tinham a traça das nossas construções provincianas. Havia calçadas do burgo que nos lembrariam artérias de Leiria ou de Vila Real. A mentalidade reinante era também a duma cidade portuguesa de província. O calor que se prolongava por grande parte do ano convidava à indolência. Mas paralelamente ao burgo um pouco amadorrado, debatia-se no espaço acanhado da península e transbordava para o mar em centenas de embarcações uma outra cidade, verdadeiro formigueiro humano onde não se escutava uma palavra de português. Em prodígio da arte da governação, mantínhamos porém ali, naquele tempo, toda a nossa autoridade e o prestígio intactos. Por ordem interna velava, com a mestria

e experiência que adquirira em África, mas facilmente adaptado ao meio tão diferente, o nosso companheiro Vieira Branco, comissário da Polícia. Tinha este como principal auxiliar um chinês, que era o chefe da Polícia Secreta, o Lau-Sin”.

Um dos maiores problemas sentidos pelo Comandante Henrique Correia da Silva, no governo de Macau, foi o relacionamento com a China sobretudo essa velha e crónica questão da indefinição de fronteiras e de limites nas águas territoriais, que ficava sempre no limbo dos tratados entre os dois estados: “Disputava a China ao nosso país o direito a possuir águas territoriais. Ora nessas águas pretendia o governo português construir um porto moderno, que atraísse a Macau a navegação e restituísse à colónia o papel antigo de interposto do tráfego do hinterland. Seria a maneira de libertar Macau da dependência vexatória do comércio do ópio, sua principal fonte de rendimento”.

O planeamento do governo de Macau não agradava ao governo regional de Cantão, que suspeitava da ameaça de um expansionismo militar português, mas nunca explicou as razões objectivas da sua oposição: “Do projecto fazia parte a construção dum vasto aterro junto à Ilha Verde, pequeno ilhéu lusíada na parte norte e mais larga desse porto. Puseram os chineses, com a sua persistência bem conhecida, todos os entraves a tal construção. Desde as campanhas da imprensa do sul da China, à agitação orquestrada das associações, aos permanentes atritos locais, às intimidações feitas por embarcações armadas, todos os processos foram utilizados para amedrontar os portugueses”. Avizinhava-se pois um conflito em larga escala contra Macau, com uma magnitude raramente observada: “Perante a resistência do nosso pai a suspender as obras do porto, a atitude chinesa foi-se tornando mais firme e mais hostil. Em Janeiro de 1920 a concentração de tropas em volta de Macau tomava já um aspecto ameaçador. As informações da Polícia e do comando militar da Taipa e de Coloane revelavam a entrada na cidade e nas ilhas vizinhas de bandos numerosos de piratas

que no momento oportuno agiriam sob as ordens de três centenas de militares chineses, de várias graduações, que disfarçadamente se tinham introduzido em Macau, e as tropas acampadas em redor da península subiam a alguns milhares de homens, ao mesmo tempo que os navios de guerra da esquadra de Cantão cruzavam ao largo, mas à vista dos pacíficos habitantes da ci-

dade cercada”. A cedência portuguesa era inevitável porque a desproporção de meios e de forças no terreno era notória e óbvia: “E ante a destruição geral que tudo lhe sugeria e o acatamento do instante conselho do representante da Inglaterra na China, Paço d’Arcos, num doloroso desfibrar de toda a sua alma de patriota, decidiu-se expedir a ordem para a suspensão dos trabalhos”. Com o fim das obras portuárias, o conflito terminou de imediato e esvaziou-se a tensão bilateral. Para o acerto da negociação final deste imbróglio político, seguiram para Cantão em representação do governador, José Vicente Jorge e Jaime Cunha Gomes. Era a consabida fórmula diplomática do Buda sorridente que permitia salvar a face, para não haver cabisbaixos perdedores de um lado e vencedores soberbos na outra banda. A vida regressou à normalidade, incluindo a reposição das garantias constitucionais entretanto suspensas e o usual abastecimento de géneros alimentares provenientes da China. Melhor sorte não tiveram as 68 “associações de classe” compulsivamente encerradas pelo Comando Militar de Macau em 7 de Junho de 1922, por evidentes e fundadas suspeitas de agitação subversiva antiportuguesa.

Esta página da história contemporânea de Macau, a partir do testemunho de quem a viveu angustiadamente por dentro vêm demonstrar, uma vez mais, que a ausência de conflitos visíveis ou patentes, não significava que eles não tivessem existido, existiram e não foram poucos, por vezes associados a um profundo desgaste psicológico e emocional. Joaquim Paço d’Arcos deixa-nos ainda o depoimento de Luís Gonzaga Gomes, amigo e condiscípulo no Liceu, então instalado no edifício do Hotel Boa Vista, actual residência consular, “Volta e meia não tínhamos aulas, porque uma canhoneira chinesa ia fundear nas nossas águas. Macau entrava em estado de sítio e lá íamos nós ajudar os soldados a puxar as peças de artilharia, ali perto, na encosta da colina da Penha”.

Em 1921 a boa notícia foi a criação da “Escola Henrique Correia da Silva” em Kobe, no Japão, juntamente com a “Biblioteca Fernão Botto Machado”, que atestavam a vitalidade da comunidade portuguesa aí radicada. Com consternação foi recebida a informação sobre o assassinato de Carlos da Maia, em Lisboa, antigo governador de Macau no período de 1914 a 1916.

Este livro de memórias revela-se igualmente muito importante pela minuciosa descrição da vida escolar de Macau e dos seus principais protagonistas: “nos três anos em que frequentamos o liceu, os meus irmãos até ao fim do curso, eu até ao final do quarto ano, foram meus principais professores o Padre Nunes, José da Costa Nunes, em Português; o dr. Borges Delgado, que sucedeu a Humberto de Avelar no reitorado, em Matemática; o dr. Telo de Azevedo Gomes, em Ciências Naturais; Lara Reis em Desenho; o dr. Silva Mendes, também em Português e Latim; Camilo Pessanha, em História e Geografia; Humberto de Avelar, em Latim; José Vicente Jorge em Inglês; e finalmente, em Francês, um jovem goês, Eugénio Aníbal Dias que, por desconhecer praticamente a língua que lhe competia ensinar, recorria ao compêndio do ‘Francês sem Mestre’ para suprir junto de nós a sua pasmosa ignorância”. Todos esses professores foram muito importantes na sua formação escolar, cultural e moral, com a excepção do último. A história do jornal “A Academia – órgão do Liceu Central de Macau”, mereceu um capítulo autónomo nas suas memórias, tal a sua importância no amanhecer da sua carreira literária. Dizia, “escrevíamos sobre muita coisa, mas não sobre a China. Mas no meu espírito, secretamente, esta foi-se insinuando”. No poema “Medo”, encontramos essas ressonâncias:

“………………………………… Nessa cidade remota na Costa da China, Todos os mares nos separam, Mas água toda do mar não foi bastante, Para apagar dentro de mim o fogo dos teus olhos, O fogo que arde numa cidade remota, Na Costa da China…”.

Esta reflexão merece registo porque aqui se cruzam o orientalismo com o seu entendimento da sinologia: “Mas, voltando ao cenário em que aquele tempo habitava e onde tive Camilo Pessanha, o poeta excelso da ‘Clepsidra’, figura estranha, de barba negra hirsuta, olhar alucinado e voz profética, por professor de História – voltando a esse cenário, não se vive indefinidamente na China es-

tirado à sombra, a ler novelas camilianas. O meio assenhoreia-se de nós. As suas personagens impõemse à nossa curiosidade e granjeiam a nossa simpatia, em breve a nossa estima. Os comerciantes pacíficos e os piratas, os letrados requintados e os coolies miseráveis, as mães respeitáveis de família e as prostitutas, os jogadores de fantã e os bonzos dos pagodes vetustos, os vendedores ambulantes e as crianças adoráveis, todos nos rodeiam e o matraquear silabado da sua linguagem sonora quase se torna elemento do ar que respiramos, precisão da nossa existência”.

O Comandante Henrique Correia da Silva apresentou-se no Leal Senado, no dia 17 de Maio de 1922, cuja sessão ordinária era presidida pelo vicepresidente Manuel da Silva Mendes. Vinha apresentar os cumprimentos de despedida e agradecer a boa cooperação que tinha existido ao longo do seu mandato como governador.

Joaquim Paço d’ Arcos manteve sempre um fascínio saudosista pelo extremo oriente, em particular por Macau e pela China. Em 1972 escreve ao seu velho amigo Luís Gonzaga Gomes para lhe pedir este esclarecimento: “Venho agora pedir o obséquio de umas informações, ainda para as minhas ‘Memórias’. Não sei se conhece uma novela minha ‘O Navio dos Mortos’, publicada no livro com o mesmo nome. Aproveitei nessa novela o drama do assassinato em Londres da filha do milionário de Macau Siu-Tang, de seu nome A-lin. Lembro-me que o SiuTang morava junto do Jardim de São Francisco, algures entre o jardim e a Rua do Campo. Muito grato lhe ficarei se me enviar as informações que puder sobre ele, sobre a filha, ano em que se deu o crime, e sobre o assassinato. Haverá possibilidade de se obterem alguns informes? Quais eram os negócios de SiuTang? Em que ano morreu ele? Os outros milionários chineses de que me recordo ou tenho notícia (ainda do meu falecido cunhado José Soares) foram o Lou-Lim-Ioc, que vivia perto do Tap-Seac, e cuja casa frequentei em opíparos jantares. Na Praia Grande vivia o Chang-Fong e o Li-Chai-Tong. Pode o meu Amigo enviar-me a ortografia exacta destes nomes, pois que só os recordo de lembrança?”

Alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, viveu em Macau, em Angola, em Moçambique, no Brasil e em França, tendo conseguido encaixar a vida profissional na sua vocação intelectual. A carreira literária de Joaquim Paço d’Arcos foi longa e prestigiada, presidiu à Associação Portuguesa de Escritores, sendo um dos escritores mais traduzidos [espanhol, finlandês, italiano, francês, inglês, sueco, alemão, holandês, romeno, polaco e russo] e estudados no seu tempo. Para além dos livros já referidos, destacam-se também: “Ansiedade” (1940), “Paulina Vestida de Azul” (1948), “A Floresta de Cimento –Claridade e Sombras dos Estados Unidos” (1953), “Memórias duma Nota de Banco” (1962), “Cela 27” (1965), “Venâncio e Outras Histórias” (1971), “O Samovar e Outras Páginas Africanas” (1972) e “Correspondência e Textos Dispersos, 19421979” (2008). Está hoje um pouco apagado, mas tem um lugar indiscutível na história da literatura portuguesa contemporânea. Eugénio Lisboa, conhecido ensaísta, coloca o dedo na ferida dessa incomodidade: “Joaquim Paço d’Arcos tem estado esquecido, demasiado esquecido, num país que frequentemente desleixa o cultivo dos seus valores. De notar que o ensino das nossas escolas e universidades também não ajuda por aí além”. Numa carta dirigida a Marcelo Caetano, datada de 15 de Outubro de 1976, Joaquim Paço d’Arcos tem esta curiosa observação, dizendo ser um “escritor independente que sempre fui e continuo a ser. Essa independência não me trouxe quaisquer prémios no regime anterior e manteveme inteiramente isolado enquanto passava a procissão dos aderentes no triste Carnaval, no trágico cortejo fúnebre da vida portuguesa dos dois últimos anos”.

Entre as distinções que lhe foram conferidas, destacam-se a Comenda da Ordem de Afonso o Sábio [Espanha], a Comenda da Ordem da Vitória [Inglaterra] e a Comenda da Legião de Honra [França]. Encontramos ruas com o seu nome em Lisboa, Odivelas, Oeiras e Santa Maria da Feira. O seu espólio literário foi doado à Biblioteca da Universidade Lusíada.

É seguramente um autor a revisitar e a ler com muito proveito.

A Comunidade Macaense e a RAEM Contributos para uma reflexão sobre o seu papel, vinte anos depois

I – Um enquadramento necessário

É costume aplicar-se a Macau a metáfora do bambu: assolado pelas tempestades, ele dobra-se, inevitavelmente, perante os ventos fortes. Findo o temporal, porém, o bambu endireita-se, preparado para as próximas intempéries. A meu ver, a Alexandra Sofia Rangel

Encontro das Comunidades Macaenses 2019 (fotografia cedida pela Side Effects Productions, autoria de Bruno Ritchie).

Investigadora académica e colaboradora do IIM comunidade macaense também é como o bambu: sofreu muitos períodos de ameaça ao longo dos tempos, mas adaptou-se às circunstâncias, erguendo-se sempre após cada adversidade.

Foi assim ao longo de séculos, mas enfrentamos hoje uma situação diferente, desde a transferência do exercício da soberania, de Portugal para a República Popular da China, em Dezembro de 1999. Este facto não foi fácil de aceitar por todos, devido aos séculos de presença portuguesa e à forma como a cidade nasceu e se desenvolveu até aos nossos dias.

José dos Santos Ferreira, uma das referências culturais da nossa comunidade, teve razão em afirmar que não sabíamos “que Macau era só nossa por empréstimo e que um dia teríamos de a devolver, bonita e próspera”, porque a China sempre considerou o seu solo como chinês, independentemente de quem estava lá a viver e, mais cedo ou mais tarde, haveria de exigir o retorno à “Mãe-Pátria”. Por este motivo, alguns macaenses acharam que, após a transição, seríamos “estrangeiros na nossa própria terra”, como pudemos ver em depoimentos recolhidos na obra Macau Somos Nós –Um mosaico da memória dos Macaenses no Rio de Janeiro, que o Instituto Internacional de Macau publicou em 2001, sendo paradigmática esta posição assumida por Luís Pedruco, que foi presidente da Casa de Macau do Rio de Janeiro, na entrevista que concedeu aos seus autores (Andréa Doré, Anita Correia de Almeida e Carlos Francisco Moura): “Mas eu não volto a Macau, pelo seguinte, não posso chegar numa terra onde eu nasci – esquece que Macau sempre foi China, é China – uma terra onde eu nasci, nasci como português, passaporte português. Eu saio e volto hoje, aí só posso ficar 90 dias, como turista. (...) Nasci em Macau, mas minha alma é portuguesa, não me interessa, não vou. (…) Vamos supor que lá foi uma casa em que fui inquilino 25 anos, 50 anos, só que o patrão fez despejo. (…) Vou lá para quê?”

Outros macaenses, incluindo autores que têm reflectido sobre este tema, preferem a ideia positiva de “Macau somos nós” à negatividade de “estrangeiros na sua própria terra”. Segundo eles, nós, macaenses, trazemos connosco a memória e o significado de Macau, que não podemos esquecer. Na opinião de Jorge Rangel, que prefaciou o

Jovens da diáspora com a Associação dos Jovens Macaenses em 2012.

mesmo livro, “Macau, quaisquer que possam ser as novas vicissitudes da sua história multissecular, existe e continuará viva no coração, na saudade e na personalidade de cada Macaense. Macau somos e seremos todos nós!” A mesma visão tinha Ana Maria Amaro, que foi professora do Liceu de Macau e dedicou muitos anos da sua actividade académica, como professora liceal e universitária, ao estudo da comunidade macaense e da cultura chinesa: “Seja como for e quando for, os macaenses, onde quer que estiverem, manterão sempre, e apesar de tudo, pela saudade e pelas memórias que levarem, bem presas as suas mais profundas raízes à terra deixada, mas não abandonada, que lhes serviu de berço”. Estas palavras estão no texto do catálogo Macaenses em Lisboa: Memórias do Oriente, publicado em 1992. Na mesma obra encontra-se o artigo “Identidade Cultural Macaense: Achegas dum filho da terra”, da autoria de Carlos Estorninho, intelectual macaense que foi um dos fundadores da Casa de Macau em Lisboa, onde ele declarou que “Continuaremos Macau, portugueses de Macau, pois Macau somos nós, os macaenses, onde quer que estejamos. Seremos a memória de Macau.”

A Declaração Conjunta Luso-Chinesa e a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) definiram o actual estatuto de Macau, para vigorar durante 50 anos, dos quais 20 já passaram. É muito importante divulgar a nossa memória e os nossos costumes, não só para que os portugueses entendam a herança que deixaram neste pequeno território no longínquo Oriente, mas também para que os jovens macaenses conheçam o seu passado e se apercebam da riqueza da sua cultura. É preciso que eles, tanto os de Macau como os da diáspora, se interessem mais pela nossa história e por um conhecimento mais profundo da realidade presente, uma vez que as circunstâncias actuais e futuras irão, decerto, transformar a comunidade, que se foi preparando para enfrentar novos desafios.

António Manuel Pacheco Jorge da Silva, arquitecto e escritor macaense radicado nos Estados Unidos, diz que muitas famílias macaenses emigradas continuam ligadas à sua cultura, mas que os seus filhos vão assimilando a cultura dos países que os acolheram e, por isso, há quem entenda que não vale a pena tentar falar-lhes de Macau por não estarem interessados. Este autor contesta esta opinião, pois são cada vez mais os jovens da diáspora que sentem curiosidade pelas suas raízes. Mas se não encontrarem algo concreto que os inspire e lhes dê um sentido de orgulho no facto de serem macaenses, a cultura macaense acabará por desaparecer. A memória é, portanto, um legado que temos de deixar às gerações futuras; caso contrário, todos aqueles que fizeram parte desta comunidade serão apenas uma “nota de rodapé na história”. Como poderemos nós, descendentes de gerações e gerações de macaenses, esquecermonos deles e também deixar o mundo esquecer-se deles? Estas lúcidas reflexões e interrogações estão contidas no seu livro The Portuguese Community in Hong Kong – A Pictorial History, conjuntamente publicado, em 2007, pelo Instituto Internacional de Macau e pelo Conselho das Comunidades Macaenses, sendo este um dos vários trabalhos de grande qualidade e significado por ele produzidos nas duas últimas décadas.

Por seu lado, José dos Santos Ferreira acreditava pouco num futuro para os macaenses pós-1999 e foi com angústia que encarou a data em que Macau deixaria de ser território português, como é visível no seu poema “O Adeus de Macau”, versão portuguesa de “Adios di Macau”, de que se transcreve uma parte bem ilustrativa do seu estado de espírito quanto ao porvir: “Terra

Arraial de S. João, patrono da cidade e da comunidade.

de fé que Deus abençoou, / Macau começou sua vida / Há mais de quatrocentos anos. / Nestes longes do Mundo, / No cantinho de pé dum colosso, / Macau nasceu e cresceu. / Sempre filha de Portugal, / Sempre cheia de amor cristão, / Macau humilde a Deus serviu com devoção / E serviu a Pátria com dignidade. / Seus filhos viveram dias trabalhosos, / Suas gentes sofreram atribulações, / E fizeram-na grande! / Tão grande que se apanhou cobiçada. (…) Na triste hora da largada, / De quantos olhos não manjerão lágrimas, / Quantos corações não cairão destroçados! / Qual manso cordeiro, / Macau passará da Pátria para outras mãos.”

Todavia, ao observarmos atentamente este percurso de vinte anos da RAEM, podemos concluir que, não só as instituições macaenses permaneceram vivas e interventoras, como também as novas autoridades locais e as da própria República Popular da China, quiseram que os macaenses, hoje espalhados pelo mundo, permanecessem em Macau. Ao longo das suas primeiras duas décadas como região administrativa especial da China, os resultados do esforço feito, com este propósito, podem considerar-se positivos, mesmo sabendo que será sempre fácil identificar aspectos e situações menos consensuais. Até por isso, a ligação futura à terra-mãe continuará a constituir um apelo irrecusável e um permanente desafio à nossa comunidade, especialmente agora que está lançado o ambicioso projecto de progressiva integração da região na Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, abarcando nove cidades do Delta do Rio das Pérolas e as regiões administrativas especiais de Hong Kong e Macau.

No que respeita à RAEM, acreditamos que o sucesso dessa integração, que já está a dar passos seguros numa ligação maior à ilha vizinha de Hengqin (espaço que abrange as ilhas da Montanha e de D. João e os aterros que as uniram), dependerá, contudo, da capacidade das autoridades de manterem a singularidade de Macau. É aí que o con-

Procissão de Nossa Senhora de Fátima, a mais participada pela comunidade.

tributo da comunidade macaense poderá ser indispensável, como o é, naturalmente, na viabilização da missão atribuída a Macau como privilegiada plataforma de cooperação entre a China e os países de língua portuguesa.

II – A clarificação de um conceito

Macaense não tem sido, de acordo com a tradição, um termo que se deva aplicar a todos os habitantes de Macau, pois cerca de 95% da população é chinesa, num território onde também reside gente oriunda de muitas partes do mundo, com pequenas comunidades bem distintas e activas de portugueses e outros europeus, filipinos, tailandeses e outros orientais, e, mais recentemente, até americanos, atraídos pelas oportunidades que a todos Macau oferece. De acordo com a investigadora e professora Graciete Nogueira Batalha, no seu livro Língua de Macau – o que foi e o que é, os macaenses são, em regra, fruto de sucessivas gerações de cruzamentos entre portugueses e orientais (mulheres malaias, indianas, japonesas e chinesas, entre outras), havendo também os “macaenses por adopção”, chineses que se converteram ao catolicismo, adoptaram nomes portugueses, frequentaram as escolas de língua portuguesa e, por consequência, assimilaram a cultura e a língua dos macaenses, que os consideram como parte da comunidade.

Na fundamentada opinião de Renelde Justo Bernardo da Silva, que foi professor de gerações de jovens macaenses na Escola Comercial Pedro Nolasco, no seu livro bilingue A Identidade Macaense/The Macanese Identity, “Macaenses são os descendentes dos portugueses, nascidos em Macau. Frequentaram as escolas locais, onde o português foi a língua veicular da aprendizagem. Devido ao isolamento a que foram votados e à sua radicação em terra longínqua, afastada da Mãe Pátria, foram-se casando, pelos séculos fora, uns poucos com portuguesas, mas a grande maioria com as nativas regionais, misturando-se assim o sangue português com o sangue das chinesas, malaias, filipinas, etc. A percentagem do sangue português, que corre pelas veias dos descendentes desta grande maioria, é irrelevante, visto serem portugueses por descendência. Somente que nasceram em Macau e viveram no âmbito dos costumes locais, que séculos moldaram.”

A miscigenação começou quando os portugueses rumaram à Ásia e contactaram com os povos locais. Ana Maria Amaro lembrou-nos, em Filhos da Terra, que foram encorajados, em Goa e em Malaca, através de atractivos dotes nupciais e a oferta de terras, a casar com mulheres locais, uma política de Afonso de Albuquerque que tinha como objectivo o rápido povoamento e a vinculação à terra, criando novas gerações nascidas nas possessões portuguesas em número bastante para assegurarem a sua defesa. Segundo ela, após a fundação de Macau, “os portugueses que demandaram Macau encontraram companheiras e lograram criar um tipo novo de euro-asiático, diferente do mestiço luso-chinês que, alguns autores têm, indistinta e erradamente, visto, ao longo dos séculos, no macaense ou filho da terra.” Ela distinguiu mesmo, em Macau, “três grupos bem demarcados, grupos que se isolaram no decorrer do tempo e se mantiveram apenas ligeiramente interpenetrados até às primeiras décadas do século XX” e “esses grupos (portugueses europeus, macaenses ou portugueses de Macau e chineses) apresentam características antropobiológicas e culturais muito específicas que lhes conferem vincada individualidade. Destes três grupos o que merece o maior interesse é, sem dúvida, o dos macaenses, grupo novo, fruto de um poli-hibridismo muito rico.” Como recordou a autora, os macaenses não são simplesmente “luso-chineses”, porque o seu sangue resulta também de outros cruzamentos. Para muitos, como seria óbvio, a palavra macaense deveria aplicar-se a quem nasça em Macau ou a algo relacionado com Macau, mas, para os grupos referidos, o conceito de macaense tem um significado mais restrito.

Os macaenses usam a expressão “filhos da terra” para se referirem a si próprios, expressão essa que corresponde à do cantonense (dialecto chinês de Cantão, Hong Kong e Macau) tou sáng pou yân, que significa “filhos da terra de ascendência portuguesa”, o que sempre os diferenciou dos chineses e dos chamados

“portugueses de Portugal”, uma vez que os macaenses são e sempre foram portugueses, como bem sublinhou Jorge Rangel, presidente do Instituto Internacional de Macau, no volume I do seu livro Falar de Nós: Macau e a Comunidade Macaense – acontecimentos, personalidades, instituições, diáspora, legado e futuro, que já tem 13 volumes publicados: “os macaenses são e sempre assumiram com orgulho a sua condição de portugueses, além de legalmente o serem. É este, aliás, um traço fundamental da sua personalidade e da sua identidade”. Muitos macaenses também se referem a si próprios como “filho de Macau” ou, no seu dialecto tradicional, o patuá, como “Macau filo”, “filo di Macau” ou, no plural, “filo filo di Macau”.

Hoje em dia, conceitos como etnicidade e identidade no sentido colectivo podem ser contestados no mundo académico, como, aliás, quase tudo o mais. Mas se de facto – como defendem alguns – não devemos usar “identidade” para nos referirmos a um grupo, a verdade é que existe um sentido de pertença que une os macaenses, bem como elementos caracterizadores de uma identidade e uma postura que traduz uma unidade como grupo. A nossa história, as nossas tradições, o nosso dialecto, a ligação aos valores e práticas da Igreja Católica, a nossa maneira de viver e a nossa culinária, tudo isto nos une numa comunidade, ou seja, num grupo com os mesmos valores e objectivos, um património cultural partilhado e afinidades, numa ligação considerada mais profunda e com mais força do que uma associação racional ou contratual de indivíduos, como é o caso do mercado ou do Estado. Esta ideia de comunidade é defendida por Tony Bennet e outros autores na obra New Keywords: A Revised Vocabulary of Culture and Society.

“Chá Gordo” com participantes no Encontro das Comunidades Macaenses (foto do Conselho das Comunidades Macaenses).

Como comunidade, ainda que aberta ao mundo e às suas transformações e capaz de se adaptar a novas circunstâncias, temos o propósito de preservar e divulgar os nossos costumes e tradições e proteger os nossos legítimos interesses. Criámos associações, tanto em Macau como nos países que acolheram os macaenses da diáspora, que funcionam como centros de convívio e de afirmação e valorização da comunidade, através das quais também divulgamos Macau e os macaenses, o resultado vivo do encontro dos portugueses com povos do Extremo Oriente. Devido a várias circunstâncias, muitos macaenses emigraram, em finais do século XIX e durante o século XX para países como Portugal, Brasil, Estados Unidos, Canadá, Austrália, antigos territórios ultramarinos portugueses e Reino Unido, mas mantiveram sempre ligações fortes à terra-mãe.

No meu livro Filhos da Terra: A Comunidade Macaense, Ontem e Hoje, que foi uma adaptação e extensão da minha tese de mestrado e que teve, no final de 2019, uma nova edição, procurei interpretar esses conceitos e caracterizar a comunidade, recordando a sua origem, fazendo o seu enquadramento histórico, identificando os seus elementos identitários e partilhando uma visão pessoal sobre a sua situação no presente.

Macau, constituído pela península de Macau e as ilhas da Taipa e de Coloane, num total de pouco mais de 30 quilómetros quadrados, já com as novas áreas resgatadas ao mar, é um território com quase 500 anos de presença portuguesa que foi devolvido à China em 1999, ano em que se estabeleceu a Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, dotado de ampla autonomia garantida pela Lei Básica da região, aprovada pela Assembleia Popular Nacional da R.P.C., em consonância com a Declaração Conjunta sobre a Questão de Macau, firmada em Abril de 1987 por Portugal e pela R.P.C. Esta Lei Básica assegurou a continuidade da “maneira de viver” da população de Macau e garantiu aos residentes de ascendência portuguesa a necessária protecção, ao mesmo tempo que manteve a língua portuguesa como língua oficial, ao lado da chinesa.

O legado histórico, cultural e arquitectónico, resultante de um prolongado encontro de culturas, que deu a Macau uma singularidade própria, foi respeitado pelas novas autoridades, a ponto de, com o apoio declarado da R.P.C., o centro histórico de Macau ter sido classificado pela UNESCO, em 2005, como património da humanidade.

III – A transição e o estatuto actual de Macau

O estatuto político-administrativo actual de Macau, acordado na Declaração Conjunta Luso-Chinesa e determinado pela Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China está amplamente documentado, pelo que referirei alguns aspectos fundamentais mais relacionados com a comunidade macaense.

Em Janeiro de 1975, Portugal reconheceu a República Popular da China como o único e legítimo representante do povo chinês, mas apenas em 1979 foram, oficialmente, estabelecidas relações diplomáticas entre os dois países. A situação de Macau foi então referida como questão a resolver em momento oportuno. Coube ao Governador Garcia Leandro (1974-79) a responsabilidade de conduzir o processo que levou à aprovação e publicação, em Fevereiro de 1976, do Estatuto Orgânico de Macau, que vigorou até 19 de Dezembro de 1999 e, através do qual, Macau passou a ser “um território sob administração portuguesa”. Os outros governadores, neste período até 1999, foram o General Nuno Viriato de Melo Egídio (1979-81), o ContraAlmirante Vasco de Almeida e Costa (1981-86), o Professor Joaquim Pinto Machado (1986-87), o Engenheiro Carlos Montez Melancia (1987-91) e o General Vasco Rocha Vieira (1991-99).

Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, dois dos raríssimos investigadores com domínio completo das línguas portuguesa e chinesa e que contribuíram decisivamente para facilitar o acesso às fontes históricas existentes nos dois países, argumentam que Macau, como ponto de encontro de culturas e a porta de entrada para a China e de saída de chineses para o resto do mundo, desempenhou um papel fundamental na história moderna da China: “Sem as funções de interface (…) que o Território desempenhou ao longo da história, entre

Encontro dos Jovens Macaenses com o General Garcia Leandro e Dr. Jorge Rangel. os dois Mundos, a diferença, distanciamento e conflitos entre a China e o Ocidente teriam sido inevitavelmente muito maiores do que aqueles que conhecemos. No que toca à interacção histórica entre a China e o resto do Mundo, sem o aparecimento de Macau, todo o processo histórico do Mundo talvez não tivesse tido as estruturas que hoje lhe conhecemos. Nem o Mundo seria aquele em que actualmente vivemos, nem a China o que é. Esta afirmação em relação às funções históricas de Macau parece um pouco exagerada, mas, se reflectirmos bem sobre o que se passou, de forma a corroborar a nossa asserção, talvez não seja. (…) Na História moderna da China, Macau tem sido um ponto de partida para os Chineses conhecerem o Mundo e para irem ao encontro dele.”

Podemos, assim, dizer que interessava à China que Macau continuasse a desempenhar esta função. A Constituição da República Popular da China (1982) estipula que o Estado pode estabelecer, quando necessário, regiões administrativas especiais e que os sistemas a aplicar nessas regiões serão decididos pela Assembleia Popular Nacional, segundo a situação concreta. Após negociações entre os dois Estados, e na sequência de idêntico processo respeitante a Hong Kong, foi assinada, em 1987, a Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a Questão de Macau, um acordo que estabeleceu 19 de Dezembro de 1999 como o último dia de administração portuguesa. Esta Declaração começa por dizer o seguinte: “O Governo da República Portuguesa e o Governo da República Popular da China, recordando com satisfação o desenvolvimento das relações amistosas entre os dois Governos e os dois povos

existentes desde o estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países, acordaram em que uma solução apropriada da questão de Macau legada pelo passado, resultante de negociações entre os dois Governos, seria propícia ao desenvolvimento económico e estabilidade social de Macau e a um maior fortalecimento das relações de amizade e de cooperação entre os dois países.”

Além da data da transição, este documento estipula a criação da Região Administrativa Especial de Macau, em conformidade com o princípio “um país, dois sistemas”, onde será mantido o sistema social e económico vigente durante cinquenta anos a contar de 20 de Dezembro de 1999, não sendo, até 2049, aplicados o sistema e políticas socialistas. A RAEM gozará de um alto grau de autonomia, tendo poderes executivo, legislativo e judicial, sendo que as relações externas e a defesa são da competência do Governo Popular Central. Serão assegurados todos os direitos e liberdades dos cidadãos de Macau: liberdade pessoal, de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, de deslocação e migração, de greve, de escolha de profissão, de investigação académica, de religião e de crença, de comunicações e o direito à propriedade privada. O território terá independência financeira, continuando a moeda local, a Pataca, em circulação, a sua própria bandeira e responsabilidades nas áreas da cultura, educação, ciência e tecnologia, e defesa do património cultural em Macau. A língua portuguesa poderá ser usada nos organismos do governo, no órgão legislativo e nos tribunais.

A partir da assinatura deste documento, começou a ser preparada a transição, observando-se, de igual

Livro sobre culinária macaense de Margarida Gomes.

modo, o que estava a ser feito na cidade vizinha de Hong Kong, cuja transferência estava agendada para 1 de Julho de 1997.

Ao longo dos doze anos que se seguiram à assinatura da Declaração Conjunta, e na sequência de estudos anteriormente realizados, o Governo de Macau apostou na criação de infra-estruturas importantes, sendo a mais significativa a inauguração do aeroporto internacional a 8 de Dezembro de 1995, uma “aspiração constantemente adiada de sucessivas gerações”, como salientou Jorge Rangel no livro atrás referido. Tendo podido acompanhar de perto a gestão pública do território, como membro do Governo de Macau de 1981 a 1986 e de 1991 a 1999, é também dele o seguinte relato: “Com a sua própria companhia aérea – a Air Macau – o território ganhou então uma nova dimensão e ligações directas a outras partes do mundo, deixando de ser um enclave com entrada e saída obrigatória através de Hong Kong, por via marítima, e acesso apenas à província chinesa de Guangdong, pela fronteira terrestre”. Foram construídos escolas e centros de saúde, assim como estradas, pontes, estações de tratamento de águas, recintos desportivos, jardins, parques e outras zonas de lazer, um terminal de contentores, um novo terminal marítimo e ainda novas instalações para os serviços públicos, de onde se destacam os edifícios da Assembleia Legislativa e dos tribunais superiores. Para se efectuarem estas novas construções, foram feitos aterros que permitiram que o investimento imobiliário florescesse de uma maneira nunca antes vista. Quanto à situação financeira, “não obstante a crise asiática, que afectou fortemente toda a vasta área geográfica em que Macau se insere e que obrigou a redobradas cautelas na gestão financeira do território, foi possível trabalhar com orçamentos equilibrados e com recurso mínimo à dívida. Houve, felizmente, meios para tudo e foi, em larga medida, com saldos orçamentais que se fizeram as infraestruturas e se fez uma aposta decisiva na educação, na saúde, na habitação e na acção social. As abundantes receitas dos casinos e de outros jogos de fortuna e azar, num território onde os impostos são baixíssimos, permitiram assegurar a realização plena dos empreendimentos projectados pelo Governo.”

Como se pode ler no livro A Administração de Macau durante o Período de Transição, coordenado por António Santiago Baptista e Celina Veiga de Oliveira, durante esse período “houve a preocupação de salvaguardar os valores e interesses portugueses em Macau após 1999. Os governos de Macau e de Portugal tomaram um conjunto de iniciativas nesse sentido, nas quais se incluem a instalação do Consulado Geral de Portugal no território, a fun-

dação da Escola Portuguesa de Macau, cujo currículo é semelhante ao das escolas em Portugal e sendo reconhecida pelo Ministério da Educação, a viabilização do funcionamento do Instituto Português do Oriente, cujo objectivo é divulgar a língua e cultura portuguesas, a criação, em Lisboa, do Centro Científico e Cultural de Macau, que tem como propósito perpetuar a memória da presença portuguesa no Oriente, o apoio à continuidade da presença económica e empresarial portuguesa e a manutenção da comunicação social de língua portuguesa nas três vertentes: rádio, televisão e imprensa.” Macau continua, vinte anos após a transição, a ter um canal de televisão e uma estação de rádio em português e são ali publicados vários jornais e revistas em língua portuguesa. Logo após a transição, surgiram outros importantes organismos, com destaque para a Casa de Portugal, com um rico programa de acção.

O dia derradeiro da administração portuguesa – 19 de Dezembro de 1999 – foi extraordinariamente marcante para muitos macaenses, mesmo para aqueles que se junta-

Encontro de Jovens – 2018. ram ao convívio de boas-vindas à RAEM levado a efeito, à margem do programa oficial, no Largo do Senado. A imagem mais inolvidável desse dia foi a cerimónia que decorreu no átrio fronteiro ao Palácio do Governo, quando o Governador Vasco Rocha Vieira recebeu a bandeira nacional e a apertou firmemente no coração, entre palmas e lágrimas, após o hino nacional solenemente cantado por uma multidão comovida. Seguiu-se um conjunto de cerimónias oficiais que incluíram uma bonita e muito sentida sessão cultural, entendida pelo público como a festa de despedida de Portugal, um banquete oferecido a 2500 convidados, entre os quais representantes de muitos países e de organizações internacionais, a curta e profundamente simbólica sessão das bandeiras, quando, exactamente à meia-noite, foi içada a bandeira da R.P.C., ao mesmo tempo que era arriada a verde-rubra, e a sessão de tomada de posse das novas autoridades. Foi o fim dum tempo e o começo duma nova experiência política para todos.

O nome oficial de Macau, desde o dia 20 de Dezembro de 1999, é Re-

gião Administrativa Especial de Macau (RAEM) da República Popular da China, regida por uma Lei Básica, cujos princípios tinham sido acordados na Declaração Conjunta LusoChinesa. No corpo da lei ficaram referidos todos os direitos, liberdades e garantias de que já gozavam os habitantes de Macau. É afirmado, no Artigo 5.º, que, até 2049, não serão aplicados em Macau o sistema e políticas socialistas, “mantendose inalterados durante cinquenta anos o sistema capitalista e a maneira de viver anteriormente existentes.” O primeiro Chefe do Executivo, que é o título atribuído ao primeiro responsável político da RAEM, foi Edmund Ho Hau-Wah (1999-2009), seguindo-se-lhe Fernando Chui Sai On (2009-2019) e sendo o actual Ho Iat Seng.

O Artigo 9.º define as línguas oficiais de Macau como sendo a língua chinesa e também a língua portuguesa e são dois os artigos que se referem à liberdade religiosa: o Artigo 34.º, que afirma que os residentes gozam de liberdade de consciência e de crença religiosa, podendo pregar, promover e participar em actividades religiosas em público, e o Artigo 128.º, onde é dito que “De acordo com o princípio da liberdade de crença religiosa, o Governo da Região Administrativa Especial de Macau não interfere nos assuntos internos das organizações religiosas, nem na manutenção e no desenvolvimento de relações das organizações religiosas e dos crentes com as organizações religiosas e os crentes de fora da Região de Macau. Não impõe restrições às actividades religiosas que não contrariem as leis da Região Administrativa Especial de Macau.”

As liberdades dos residentes estão explanadas nos Artigos 25.º e 27.º: “Os residentes de Macau são iguais perante a lei, sem discriminação em

razão de nacionalidade, ascendência, raça, sexo, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução e situação económica ou condição social” e “Os residentes de Macau gozam da liberdade de expressão, de imprensa, de edição, de associação, de reunião, de desfile e de manifestação, bem como do direito e liberdade de organizar e participar em associações sindicais e em greves.”

No conceito de residentes permanentes de Macau, contido no Artigo 24.º, estão incluídos “Os portugueses nascidos em Macau que aí tenham o seu domicílio permanente antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau” e “Os portugueses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau e aí tenham o seu domicílio permanente”. O Artigo 42.º refere-se, especificamente, aos macaenses: “Os interesses dos residentes de ascendência portuguesa em Macau são protegidos, nos termos da lei, pela Região Administrativa Especial de Macau. Os seus costumes e tradições culturais devem ser respeitados.”

O funcionamento da Escola Portuguesa de Macau, com professores portugueses e material didáctico vindo de Portugal, encontra-se assegurado no Artigo 122.º, sobre a liberdade no ensino: “Os estabelecimentos de ensino de diversos tipos, anteriormente existentes em Macau, podem continuar a funcionar. As escolas de diversos tipos da Região Administrativa Especial de Macau têm autonomia na sua administração e gozam, nos termos da lei, da liberdade de ensino e da liberdade académica. Os estabelecimentos de ensino de diversos tipos podem continuar a recrutar pessoal docente fora da Região Administrativa Especial de Macau, bem como obter e usar materiais de ensino provenientes do exterior.”

Sendo a RAEM território chinês, foi estabelecido que, para exercer certos cargos cimeiros, seja obrigatório ter a nacionalidade chinesa, além de ser residente permanente de Macau. Esta restrição não é colocada aos juízes dos tribunais das diferentes instâncias (Artigo 87.º) e aos deputados da Assembleia Legislativa (Artigo 68.º), tendo havido, ao longo das várias legislaturas, alguns deputados macaenses e estando ainda ao serviço das estruturas judiciais vários magistrados recrutados em Portugal.

O Artigo 99.º diz que “A Região Administrativa Especial de Macau pode nomear portugueses e outros estrangeiros de entre os funcionários e agentes públicos que tenham anteriormente trabalhado em Macau, ou que sejam portadores do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau, para desempenhar funções públicas a diferentes níveis, exceptuando as previstas nesta Lei. Os respectivos serviços públicos da Região Administrativa Especial de Macau podem ainda contratar portugueses e outros estrangeiros para servirem como consultores ou em funções técnicas especializadas.” Quanto aos aposentados de Macau, a RAEM garante-lhes o pagamento das suas pensões, independentemente da sua nacionalidade e do seu local de residência (Artigo 98.º).

Houve, de facto, a preocupação de assegurar a maior continuidade possível na maneira de viver da população e no modo de funcionamento da administração pública, mere-

Procissão de Senhor dos Passos.

cendo também menção o facto de, na elaboração da Lei Básica, não terem sido envolvidos só chineses, residentes no continente chinês ou em Macau, mas também macaenses, entre os quais o presidente da Assembleia Legislativa de Macau, Carlos Assumpção, Jorge Rangel, que era então presidente da Fundação Macau, o Arquitecto José Pereira Chan, o Engenheiro Raimundo do Rosário, que é hoje membro do Governo da RAEM, e até o Bispo da Igreja Católica de Macau, D. Domingos Lam.

IV – Um legado que importa valorizar

Após séculos de presença portuguesa em Macau, vemos, nos monumentos e velhos edifícios, marcas do passado do território que nos convidam a descobrir a sua história. Luís Andrade Sá e António Falcão, em Marcas da Presença Portuguesa em Macau, mostram o significado e o valor desse património construído: “As velhas pedras são as marcas físicas da presença portuguesa em

Macau e para além delas há sempre uma história por adivinhar. Não interessa que os canhões já não sejam os de Bocarro, que o são na nossa memória; nem importa saber o nome de quem deu o brado de fogo na noite da destruição de S. Paulo, que houve alguém; nem quantas vidas salvou o farol da Guia, que lhas devem. Às vezes basta assumir o papel do estrangeiro, daquele que não reconhece, e procurar nos elementos que perduram, mesmo num tabique que apodrece, um fio que seja o princípio de uma descoberta. (…) E os prédios, aquilo que sobra da chamada arquitectura colonial portuguesa? São verde alface e têm grandes portadas nas janelas; há-os amarelos com portões de ferro à entrada ou debruados a vermelho sangue. Nas varandas têm vasos de Cantão com plantas ressequidas e roupa a estender nas traseiras.”

Macau foi, durante muito tempo, um espaço de vivendas e casarões antigos, residências de famílias macaenses. Hoje, este tipo de habitação é muito raro, pois a cidade (assim como a população) cresceu a ritmo acelerado nas últimas décadas do século XX, sendo agora ocupada por modernos prédios de 30 ou mais andares. Mas Macau tem uma área muito reduzida. O território tem hoje pouco mais de 30 quilómetros quadrados, mas o centro histórico apenas 1/8 dessa área, pelo que, em 10 ou 15 minutos a pé, podemos deixar a azáfama da zona dos casinos e dos novos hotéis e entramos no sossego de um templo, de uma igreja ou de um jardim chinês, quase todos muito bem preservados.

Muitos sentem que o território está a ficar descaracterizado com os novos edifícios, já que o que o torna diferente de outras cidades na costa meridional da China são as marcas da presença portuguesa. Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, na obra atrás citada, sintetizam eloquentemente esta preocupação: “Uma confluência a todos os níveis entre culturas diferentes, da China e do Ocidente, constitui o encanto perene de Macau. A conotação e o valor intrínseco da cultura de Macau constituem uma força motriz para o seu desenvolvimento e, também, uma sólida base para novas conquistas. Tratase de uma herança preciosa, um capital inesgotável para o desenvolvimento futuro de Macau. Não só devemos apreciá-la e protegê-la, mas, e mais importante ainda, sistematizá-la, investigá-la, cultivá-la e senti-la com o coração para realçar o seu espírito e significado, a fim de que possa desempenhar melhor as suas funções, contribuindo para o progresso e desenvolvimento de Macau, da China, do Mundo e de toda a Humanidade.”

Por isso, foi com enorme satisfação que, não só os macaenses, mas também a população de Macau em geral, viram, em 2005, o centro histórico da cidade ser proclamado Património Mundial pela UNESCO, sendo o 31.º local na China a receber este estatuto. Sob a protecção desta organização internacional, as zonas características de Macau serão preservadas e tidas em conta em futuros projectos urbanos. O centro histórico, conforme a documentação oficial distribuída pelos Serviços de Turismo de Macau, “constitui uma representação ainda existente do povoado histórico que marcou os primórdios da cidade, envolvendo legados arquitectónicos entrelaçados no tecido urbano original da mesma, que inclui ruas e praças, tais como o Largo da Barra, o Largo do Lilau, o Largo de Santo Agostinho, o Largo do Senado, o Largo da Sé, o Largo de S. Domingos, o Largo da Companhia de Jesus e o Largo de Camões. Estas praças principais e ambientes urbanos estabelecem a ligação entre uma sucessão de mais de vinte monumentos, que incluem o Templo de A-Má, o Quartel dos Mouros, a Casa do Mandarim, a Igreja de S. Lourenço, a Igreja e Seminário de S. José, o Teatro D. Pedro V, a Biblioteca Sir Robert Ho Tung, a Igreja de Santo Agostinho, o Edifício do Leal Senado, o Templo de Sam Kai Vui Kun, a Santa Casa da Misericórdia, a Igreja da Sé, a Casa de Lou Kau, a Igreja de S. Domingos, as Ruínas de S. Paulo, o Templo de Na Tcha, a Secção das Antigas Muralhas de Defesa, a Fortaleza do Monte, a Igreja de Santo António, a Casa Garden, o Cemitério Protestante e a Fortaleza da Guia (incluindo a Capela e Farol da Guia).”

A preocupação com a protecção do património está explícita na Lei Básica, no Artigo 125.º: “O Governo da Região Administrativa Especial de Macau protege, nos termos da lei, os pontos de interesse turístico, os locais de interesse histórico e demais património cultural e histórico, assim como protege os legítimos direitos e interesses dos proprietários de património cultural.” Mais medidas legislativas e administrativas têm sido, entretanto, aprovadas, visando a protecção e a valorização desse património e a caracterização do chamado “património imaterial” de Macau. De facto, as novas autoridades aperceberam-se de que é preciso preservar e valorizar o carácter multicultural de Macau, sendo a herança histórica da cidade uma vantagem no seu futuro desenvolvimento, até porque constitui uma preciosa atracção turística. Macau tornou-se, também, um importante elo entre a China e o mundo lusófono, já que o Governo Central cedo reconheceu o seu potencial nesta área, em particular nas relações sinoportuguesas. A este propósito, Jorge Rangel, no 4.o volume do seu

livro Falar de Nós: Macau e a Comunidade Macaense, achou oportuno sublinhar que “É justo reconhecer que a China soube (...) respeitar e valorizar, com lucidez e pragmatismo, este papel de Macau, vencendo os preconceitos e a ignorância de algumas forças vivas locais. Definiu-se um caminho. Importa prossegui-lo determinadamente, com a mesma lucidez e idêntico pragmatismo.” Neste contexto, vale a pena registar a constituição recente de associações locais que se ocupam da preservação e valorização do património, criadas por jovens chineses de Macau com forte sentido de pertença à terra onde nasceram.

Uma das políticas mais relevantes do Governo da RAEM é, portanto, desenvolver Macau como uma permanente plataforma de cooperação multifacetada entre a China e os países de língua portuguesa. A este propósito, foi criado, em 2003, o Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, com secretariado permanente em Macau e cujas áreas de cooperação se foram alargando substancialmente, estendendo-se à cultura, à administração pública, à saúde, ao desporto e à formação de recursos humanos.

Mas o legado não se limita apenas aos monumentos; engloba, igualmente, valores e pessoas, as “pedras vivas” da história e a sua memória. Para além das igrejas, monumentos e casarões de estilo colonial, os portugueses deixaram em Macau uma forma de estar, suportada por um sistema jurídico e judicial de matriz portuguesa e enriquecida pelos direitos, liberdades e garantias que a Constituição Portuguesa assegurou até 1999 e que foram incorporados na Lei Básica da região, contribuindo, também aqui, para afirmar a sua singularidade.

IV Encontro da Comunidade Juvenil Macaense.

E ficou esta outra herança indiscutivelmente importante: a comunidade macaense, descendente dos soldados, navegadores e mercadores que, em tempos remotos, partiram em busca de novos mundos e chegaram a essas terras distantes. A eles se juntaram funcionários públicos, profissionais das mais diversas áreas ou simples aventureiros em busca de fortuna e gentes vindas de todas as partes do mundo, em busca de paz, refúgio e oportunidades, além dos chineses de Macau, em número sempre crescente, que ali nasceram ou quiseram viver e constituíram o sustentáculo humano indispensável ao seu desenvolvimento. Todos fizeram Macau, marcaram o seu percurso, afirmaram a sua singularidade e deram razão de ser ao estatuto de autonomia que lhe foi reconhecido.

Existe abundante literatura recente sobre o legado, nos trabalhos de António Aresta, Celina Veiga de Oliveira, António Conceição Júnior, António Manuel Pacheco Jorge da Silva, Stuart Braga, Carlos Marreiros, Jorge Rangel e outros, pelo que julgo desnecessário alongar-me neste ponto fulcral para se entender a comunidade macaense, a situação presente e as suas expectativas em relação ao futuro.

V – Que futuro para a comunidade? Vinte anos volvidos, podemos constatar que as expectativas foram, em muito significativa medida, correspondidas e a Lei Básica respeitada, o que é essencial para o sucesso de Macau. Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, já atrás citados, ofereceram-nos esta visão razoavelmente optimista: “A convivência entre os Chineses e os Portugueses no Território permanece ligada à memória colectiva histórica eterna, enquanto os sedimentos históricos e culturais em Macau, visíveis e invisíveis, serão a pedra basilar e a força motriz para o desenvolvimento e progresso desta terra no futuro. Temos a certeza de que com o empenhamento na política orientadora de ‘Um país, dois sistemas’ e o cumprimento rigoroso da Lei Básica, Macau poderá desempenhar um papel ainda mais activo no processo de modernização da China. O futuro de Macau será então mais promissor.”

Nas cerimónias comemorativas do 10.º aniversário do estabelecimento da RAEM, realizadas em Macau, em

Dezembro de 2009, e que os órgãos de comunicação social reportaram larga e intensamente, fizeram-se balanços apropriados nos discursos oficiais proferidos. O mesmo aconteceu no vigésimo aniversário, em Dezembro passado. A nota dominante foi a da confiança no futuro e de regozijo pelo cumprimento da Lei Básica, assim como pela prosperidade que continuou a caracterizar o desenvolvimento económico de Macau, não obstante a crise financeira internacional que não deixou ninguém imune e alguns conhecidos acidentes de percurso que podiam ter abalado a estabilidade. De facto, e apesar de a carga fiscal permanecer muito baixa (12% no máximo), as receitas públicas ampliaram-se substancialmente com a política de liberalização das operações dos jogos de fortuna e azar, nas quais intervêm empresas locais e interesses económicos do exterior, ligados mormente a Hong Kong e a Las Vegas, que fizeram aparecer muitos mais casinos (são já quase 40 em funcionamento) e outros recintos de diversões e, com eles, hotéis de impressionante categoria e dimensão, bem como outras actividades que o efeito multiplicador do turismo permitiu criar, expandindo também o emprego e enchendo os cofres da região, o que permitiu apostar em novos investimentos físicos, na melhoria dos apoios sociais e no reforço exponencial das reservas financeiras. Os mais de 30 milhões de visitantes, na sua maioria chineses, asseguraram o seu funcionamento e estável crescimento.

Também em Lisboa, quer no 10.o , quer no 20.o aniversários da transferência, por iniciativa da Fundação Jorge Álvares e com a colaboração da Fundação Calouste Gulbenkian e de outras entidades, foram organizadas sessões solenes, presididas pelo Presidente da República e com a presença do Embaixador da República Popular da China, em que se teceram elogios à forma como Portugal cumpriu a sua missão em Macau e passou, de forma digna, as responsabilidades políticas e administrativas às autoridades chinesas. Em 2009, foi também inaugurada uma exposição, intitulada “Macau, Encontro de Culturas”, que fez a sua itinerância por cidades portuguesas, para divulgar o legado que ficou em Macau, após mais de quatro séculos de presença portuguesa.

Por seu lado, a RAEM preparou as suas mostras, através de serviços oficiais ou utilizando a colaboração e a capacidade de instituições da sociedade civil, como o Instituto Internacional de Macau. Uma delas, inaugurada em Pequim, foi depois apresentada em diversas partes da China. Outras estiveram em Portugal (Lisboa e Porto), no Brasil (São Paulo e Rio de Janeiro) e em cidades dos Estados Unidos da América e Canadá, tendo várias Casas de Macau assegurado uma útil e empenhada colaboração. Os propósitos foram apresentar os resultados positivos alcançados na vigência da RAEM e dar uma nota de confiança no futuro, revelando as realidades e as potencialidades desta região especial. Outras iniciativas idênticas foram preparadas para a jubilosa celebração do 20.o aniversário, tendo múltiplas organizações da sociedade civil promovido os seus próprios actos comemorativos.

Para muitos, as inquietações que se fizeram sentir antes do estabelecimento da RAEM, dissiparam-se ou, pelo menos, atenuaram-se consideravelmente. A comunidade macaense residente, certamente a mais vulnerável neste contexto, adaptou-se às novas circunstâncias e as autoridades, quer as centrais, quer as regionais, deram sinais positivos de quererem continuar a contar com a participação activa da comunidade na construção do futuro da região. Não se registaram situações de discriminação no âmbito do poder político e, embora alguns casos tenham sido reportados ao nível da administração pública, sobretudo no que respeita a concursos, a contratos e a promoções, os macaenses foram encorajados a manter um envolvimento em todas as vertentes, da economia à cultura.

Na vida associativa, as instituições macaenses têm sido apoiadas financeiramente e elas mantêm-se coesas e interventoras em diversas áreas, da recreativa à social e da cultural à profissional. Até foram feitos convites a dirigentes de organismos macaenses para visitarem várias vezes a R.P.C., onde foram recebidos por altas entidades chinesas. É natural, contudo, que algumas desconfianças e receios permaneçam, especialmente no que respeita ao fim da vigência da RAEM, em 2049, e à medida que se vai fazendo, regular e inexoravelmente, a integração de Macau e Hong Kong na vasta área chinesa do Delta do Rio das Pérolas, que tem sido uma das de mais espectacular desenvolvimento em todo o mundo. Foi, entretanto, anunciado e iniciado o imenso projecto da Grande Baía de Guangdong-Hong Kong-Macau, com objectivos e etapas claras de progressiva integração.

Quanto aos membros da comunidade que partiram e que engrossaram a diáspora macaense, as atitudes são também mistas, embora de grande abertura e de enorme vontade de verem mantidas as ligações às origens. Os Encontros das Comunidades Macaenses podem estimular o reforço desta ligação e, por isso, foram e devem continuar a ser realizados, assim como os Encontros dos Jovens Macaenses, incluindo os representantes da diáspora. Merecem, igualmente, muito maiores apoios as

Casas de Macau e outras organizações da diáspora macaense, que podem ser tidas como extensões naturais de Macau, disponíveis para darem à região uma colaboração que pode ser da maior utilidade e eficácia, na sua promoção no exterior.

As autoridades centrais ligaram a região aos seus projectos de dimensão universal, como é o caso da Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, articulando o papel de Macau como plataforma de cooperação com o mundo lusófono nesse contexto mais amplo. Também definiram para a região outra missão muito relevante como grande Centro Mundial de Turismo e Lazer. Claro que essas decisões criaram oportunidades de participação que podem também beneficiar a comunidade macaense, nas ocupações profissionais e na participação cívica. Por outro lado, o ensino superior, que teve um impulso decisivo na última década da administração portuguesa, conheceu um notável desenvolvimento, podendo a região funcionar, igualmente, como um centro de formação avançada, adequadamente apoiado por qualificados institutos de estudos e investigação.

A confiança no futuro tem sido constantemente expressa, com visível optimismo, por dirigentes políticos e cívicos locais. Mas, é bom ter sempre em conta que, depois de muitos dias de céu azul, podem surgir nuvens negras no firmamento. Em tempos recentes, alguns novos factores e circunstâncias, como os continuados incidentes em Hong Kong e os efeitos da “guerra comercial” travada entre as maiores potências económicas, criaram acrescidas apreensões, que a pandemia, que afectou inexoravelmente o mundo todo, veio agravar, obrigando a repensar caminhos, procedimentos, comportamentos e opções. Muito louvável foi a forma como o Go-

Arraial de S. João.

verno da RAEM soube enfrentar esta dificílima situação, pelas medidas que, imediatamente, tomou. Todos sabemos que, após esta imensamente dolorosa calamidade, de dimensão planetária, provavelmente nada ficará na mesma. Todavia, acreditamos que com todas as inevitáveis sequelas que nos acompanharão durante muito tempo, a confiança em dias melhores permanecerá, porque eles voltarão.

Existirão sempre visões e perspectivas mais ou menos optimistas. Túlio Tomás, personalidade de apurada sensibilidade e elevado nível cultural que dirigiu os Serviços de Educação de Angola e de Macau e foi ViceReitor da Universidade da Ásia Oriental, identificou muito bem esta questão, sabendo antecipar as dúvidas e as inquietações que poderiam surgir no desenvolvimento de um complexo processo político-administrativo de mudança histórica que conduziu ao estabelecimento da RAEM. Fê-lo num texto publicado em 1992, integrado no catálogo da exposição “Macaenses em Lisboa: Memórias do Oriente”, organizada

pela então Missão de Macau: “Visão pessimista, sem contrapartida? De modo algum. É que Macau conserva ainda intacta uma parte riquíssima –a mais rica – do seu património: as suas gentes. Os Macaenses de raiz. Muito embora dispersos pelo Mundo, eles todos constituem uma grande Macau, que não se perderá enquanto a força da tradição, em que foram educados, os não abandonar. Mesmo que os chamados ventos da História os varressem da terra onde nasceram, e onde repousam os seus antepassados, eles continuá-la-iam nas sete partidas do mundo onde se acolhessem. Levariam consigo uma cultura multissecular, feita pedra a pedra, mas que, incompreendida por muitos observadores vindos do exterior, é uma indiscutível realidade. Muitos não se aperceberão dela localmente, mas o facto é que essa cultura se evidencia imediatamente, no seu património, transmitido de tradição em tradição, nos grupos de macaenses que vão fixar-se em terras estranhas. Aí ressalta, imediatamente, a sua personalidade, o seu saber ancestral e, sobretudo, o seu indefectível patrio-

tismo, o seu esforçado apego às coisas portuguesas, tantas vezes mais acendrado que entre os filhos do Portugal europeu, que muitos deles, ainda há pouco, não conheciam. Resta-nos, pois, a consoladora esperança de que, mesmo que as pedras desapareçam, ficarão as almas, e essas são imortais (…) Macau, pois, háde sobreviver. Serão eles os arautos da Macau rediviva.”

Não seria fácil condensar melhor, em tão poucas frases, as certezas que nos animam, as esperanças que acalentamos e as dúvidas que espelham o nosso necessário realismo quando fazemos pausas para pensar, sabendo que queremos continuar a construir um amanhã seguro para a comunidade, no seu todo, e para cada um dos “filhos da terra” que desejam ficar na terra que (oficialmente) nunca foi sua, mas que, na verdade, por todas as razões, sempre foi e continuará a ser (também) eternamente sua.

Bibliografia

AMARO, Ana Maria (1988). Filhos da Terra. Macau: Instituto Cultural de Macau.

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Ensinar na China – uma forma de viajar diferente

Recordo-me que foi num janeiro frio de 2012 que fui, pela primeira vez, lecionar na China. Foi em Chengdu, ao abrigo de um programa do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, de onde sou docente. Há quase uma década que o ISCTE está na China continental. Através da sua escola de gestão, a presença internacional do ISCTE, o Instituto Universitário de Lisboa que foi criado em 1972, tem deixado marcas por terras da África lusófona, nomeadamente, em Moçambique e Cabo Verde, como também no Brasil e ainda por terras do Oriente como em Macau e na República Popular da China. Na China, O ISCTE oferece em parceria com duas prestigiadas universidades, dois programas académicos ao nível do 3.º ciclo. O primeiro, em Chengdu, capital da província de Sichuan é um doutoramento em gestão aplicada que em inglês se designa por DOM – Doctor of Management em parceria com a escola de gestão e economia da University of Electronic Science and Technology of China (UESTC). Este é um programa generalista no domínio científico de gestão abarcando, por isso, todas as áreas de estudo neste âmbito, como estratégia, gestão de recursos humanos, marketing, gestão de operações e finanças. É um programa muito requisitado e os participantes muito satisfeitos com a prestação organizativa e académica tanto da parte chinesa como da parte portuguesa. O segundo programa, realizado em cooperação com a Southern Medical University de Guangzhou, na província de Guangdong, é um doutoramento em gestão da saúde. Como tal, a maioria dos que se inscrevem neste programa são médicos e administradores de hospitais ou profissionais ligados às indústrias que circunscrevem o mundo da saúde. Neste trabalho, propomos partilhar com os leitores a minha vivência e de alguns professores da mesma escola nesta senda que é ensinar num país culturalmente diferente e cujos alunos não têm outra competência linguística que não a sua língua materna.

A memória da primeira lição

A parte letiva dos dois programas é dada em parte por professores da escola de gestão do ISCTE que se deslocam à China para o efeito como também por docentes das universidades parceiras. A tarefa nem sempre é fácil, sobretudo quando há que coordenar as agendas diárias com a viagem, as aulas e os compromissos sociais. O nervosismo miudinho da primeira experiência é sempre marcante. Aterrei no último dia de janeiro de 2012 no aeroporto internacional de Chengdu, capital da província de Álvaro Rosa

Docente universitário Sichuan a noroeste da China. Era já noite, dois cavalheiros esperavam por mim na zona da chegada que me levaram de carro ao hotel numa viagem de quase três quartos de hora. Dada a dificuldade de comunicação porque eu não dominava o mandarim e eles não falavam inglês, só no dia seguinte vim a saber que afinal os dois cavalheiros eram alunos da turma que eu ia ter. Mais tarde, também vim a descobrir que esta era uma prática recorrente da gestão do programa da parte da UESTC: Sempre que eu precisasse de me transportar de e para o aeroporto ou se pretendia visitar uma outra cidade, a Universidade solicitava a um aluno meu para me organizar a logística necessária, e assim, eu ficava sempre bem entregue.

Nesse ano, as aulas não eram nas instalações da Universidade, mas sim, no hotel onde eu estava alojado porque estávamos nas antevésperas do Ano Novo Lunar e por este motivo, havia de conferir um carater especial, festivo, ao programa social da atividade académica. Na manhã do dia seguinte, ao pequeno almoço, à chinesa, num restaurante enorme repleto de hóspedes fui conhecendo o staff da Universidade local e demais professores que lá estavam para as festas! Deram-me, de imediato, um documento de várias páginas. Era a agenda da minha estada toda. Vinha, com detalhes, o horário das aulas, dos almoços e jantares, as pessoas com quem iria jan-

Ambiente de aula na Southern Medical University, Guangzhou.

tar, os alunos que iria receber individualmente e tudo o mais. Tinham pensado em todos os pormenores com a certeza de que eu não ficaria com nem um minuto por preencher.

Chegou a hora de entrada para a sala de aula. No fundo da sala, junto à entrada, estava pendurado um enorme placard com bolsinhas individuais inscritas com os nomes dos alunos. Os participantes foram entrando e assinavam, junto à entrada, a sua presença numa folha para o efeito e colocavam o seu telemóvel na bolsinha do placard com o seu nome. Este gesto de deixar o telemóvel à entrada deixou-me perplexo. É um ato de humildade e de coragem impressionante nos dias que correm…

À hora marcada, comecei a minha lição.

Incumbiram-me de lhes falar de metodologias de investigação. Ensinar investigação a candidatos a doutores é sempre um exercício desafiante em qualquer parte do mundo. Os candidatos vêm sempre com ideias grandiosas e generosas, imbuídos de alta energia, a pensar que o mundo será certamente melhor com o seu contributo doutoral. Por sua vez, o professor vai desfiando, paulatinamente, o fio da meada do método científico, enfatizando a necessidade de cumprimento do método científico, das validações que são necessárias, um sem fim de matéria tão aborrecida e tão distante dos sonhos que os levaram a candidatar-se ao programa. Para não lhes matar o sonho e a audácia vou contando com exemplos e histórias como as técnicas da investigação asseguram um conhecimento mais sólido dos fenómenos que deparamos no nosso dia a dia.

Retomando a particularidade da agenda, a experiência diz que, na China, a agenda é flexível. Colegas meus e eu próprio temos estado por várias vezes em Chengdu por períodos de vários dias e até de períodos de mais de uma semana. E, como sempre, dão-nos logo à chegada o plano de toda a estadia. No entanto, todos os dias, o plano sofre alterações! A felicidade é que sendo nós portugueses, como diria o Prof. Nelson Ramalho, professor de Recursos Humanos, “e por termos inscritos na nossa cultura a experiência de séculos de contacto com o mundo e termos no nosso DNA cultural a versatilidade nas relações internacionais” somos capazes de digerir facilmente as mudanças constantes do plano. Certamente que povos provenientes de uma cultura de planeamento rígido e, quando confrontado com o dinamismo de agenda, colocariam tantos problemas na relação que os programas desapareciam em dois anos.

As aulas em Guangzhou

A Southern Medical University (SMU) situa-se num dos polos muito movimentados da cidade de Guangzhou (outrora Cantão), não muito distante do novo aeroporto Baiyun da cidade. O complexo universitário integra um hospital, o Nanfang Hospital – a formação médica da SMU estende-se por mais cinco hospitais na região –, um hotel e demais equipamentos sociais. O nosso programa funciona num edifício nobre contiguo ao da administração da universidade.

A sala de aula que nos é afeta é enorme e equipada com sistema audiovisual adequado. Existe um serviço de café permanente na sala, onde não faltam, para além de chás e bolos, fruta diversa, rebuçados e snacks variados.

Uma sessão de apresentação de projeto de investigação doutoral do DOM de Chengdu, no ISCTE, em 2019.

Os alunos não falam, em regra, o inglês, por isso, o recurso a um intérprete é indispensável. A interpretação é sequencial, o que nem sempre facilita a explanação de exemplos. Nos últimos anos, a função de interpretação é desempenhada por uma senhora extraordinária, doutorada em economia e que domina na perfeição a terminologia dos temas de gestão, da saúde e de metodologias de investigação. Como lembra o Prof. José Paulo Esperança, docente de negócios internacionais, muitas vezes, “é ela quem tira as dúvidas aos alunos” o que eu acrescentaria, até dá muito jeito.

Durante todo o tempo de aula, há pelo menos um funcionário presente na sala que tem por missão velar pelo bom funcionamento geral de tudo. É sempre ou quase sempre uma pessoa cuidada para com o docente em aula e que não lhe falte nem água nem café. Esse funcionário tem ainda uma outra função que é anotar o número de intervenções dos alunos em aula, cronometrandoas. Este procedimento meticuloso é uma realização material mais profunda que conheço da avaliação da participação dos alunos em aula, evitando de todo em todo a perceção subjetiva por parte do professor.

O aluno chinês, na boa tradição confuciana, é um aluno muito respeitoso, como recorda o Prof. Nelson Ramalho que aprecia imenso a “cordialidade dos alunos chineses e a demonstração do enorme respeito pelo professor”. Os alunos chineses têm uma postura na aula muito diferente da dos alunos portugueses. São, na sua generalidade atentos, mas pouco participativos, no entanto exibem, nas palavras do Prof. Nelson Ramalho, “uma tolerância qb quanto aos excessos de preleção do docente e nunca demonstram impaciência mesmo quando a aula vai pelo intervalo adentro”.

Por outro lado, os alunos tendem a não questionar o docente na aula, preferem ouvir e refletir. No entanto, quando adquirem algum à vontade com um professor, “são capazes de abertamente discutir, expor as suas dúvidas e pedir orientações” como também refere o Prof. Nelson Ramalho.

A dimensão da turma é cerca de 25 alunos. São altos quadros ou dirigentes com uma vontade enorme de refletir, sobretudo sobre as organizações ondem se encontram a trabalhar. Outros são empresários de sucesso que acreditam que terão chegado o momento de regressar à escola para mais luz. Independentemente da motivação individual para ingressar no programa, há uma certeza, esses alunos acabam sempre o doutoramento a que se propõem fazer, como diz o Prof. José Paulo Esperança “podemos dar-lhes trabalho, eles não desistem e fazemno”.

O momento de convívio

Cada módulo letivo nos programas da China tem a duração de 24 horas e decorre de sexta-feira a domingo. Sendo o povo chinês de índole gregário, o convívio social é imperioso. Ao sábado à noite, faz-se sempre um jantar, mais ou menos exótico, mais ou menos opulente, dependendo do estilo de pessoa do organizador, sendo os docentes obviamente convidados. Como no resto da China, o jantar inicia-se por volta das 18h. A característica principal destes jantares é a socialização e o ato de brindar constitui um cumprimento e uma comunhão da felicidade de encontro entre as partes. Por esta razão, nos banquetes e jantares, brinda-se do início até ao final do repasto. Brindam-se todos com todos e fazem-se brindes individuais e em grupo.

Aos professores, os alunos brindamnos individualmente e há o dever de retribuir o brinde o que, normalmente, os professores portugueses fazem-no por mesa. Para o brinde, o povo chinês prefere o baijiu – literalmente, podemos traduzir para “vinho branco”. Embora se diz “vinho”, baijiu é, na verdade, uma aguardente. É um produto destilado a partir de sorgo, um cereal comum em terras da Ásia. O teor alcoólico varia entre os 38% e os 52%, sendo que se consideram de qualidade de topo as marcas e produções com maior teor alcoólico. Apesar de, nem toda a gente aceita brindar com esse líquido espirituoso de elevado índice alcoólico, na China, brinda-se com qualquer bebida e sem preconceitos, até se faz com água. É a harmonia e o tilintar sucessivo das taças que contam para a história de um evento que se quer jovial e aprazível.

Também é verdade que na China, onde há alegria, há karaoke. Esses jantares fazem-se sempre em salas privadas dos restaurantes que normalmente equipam-se de sistemas de som e de televisão para permitir o canto dos convivas. Quando isso não acontece, no final da refeição, seguem-se em grupos para um estabelecimento de karaoke onde o convívio prossegue.

Trabalho de dissertação de doutoramento

Não obstante toda a parte letiva dos programas académicos ser feita na China, todos os alunos vão a Lisboa em pelo menos dois momentos. No final do primeiro ano do seu curso, os alunos deslocam-se a Lisboa para a apresentação do projeto de investigação doutoral perante um painel especialmente formado para o efeito e, no términus da elaboração da dissertação, terão de ir defender o seu trabalho em prova pública nas instalações do ISCTE.

Todos os alunos chineses têm um mentor do ISCTE que os acompanha ao longo dos três a cinco anos de elaboração da dissertação, com muito trabalho de tradução, correspondências eletrónicas e reuniões em videoconferência pelo meio. Esta parte do programa doutoral é a parte mais exigente para os professores portugueses por vários motivos. Em primeiro lugar, por o orientador e o orientando não falarem a mesma língua o que envolve forçosamente o concurso de um intérprete-tradutor. Por conseguinte, as reuniões de trabalho são mais prolongadas e mais cuidadas no sentido de que ambas as partes necessitam de assegurar que o seu interlocutor terá compreendido bem os seus pontos de vistas ou explanações. Em segundo lugar, a diferença cultural cria perspetivas distintas sobre os mesmos factos nem sempre harmonizáveis e facilmente compreendidas pelas partes. Em terceiro lugar, é necessário garantir um nível de realização da dissertação que cumpra os requisitos nacionais e internacionais. A comunicação à distância com intermediação de intérprete-tradutor é em si é um processo complexo e mais delicado se torna quando existe um coorientador chinês que possui uma cultura de investigação diversa da nossa.

Síntese

Por fim, é deveras gratificante ensinar. E, ensinar fora de portas é ainda mais gratificante. Viajar até a China e trabalhar com alunos chineses, pessoas dedicadas e empenhadas, traz uma satisfação acrescida. É uma outra forma de viajar e de conhecer a China. Ensinar na China permite conhecer de perto outras gentes, privilegiar o relacionamento humano, a socialização multicultural e a vivência de práticas quotidianas distintas ao invés do panorama paisagístico e da fotografia. Retêm-se na memória filmes de atividades com pessoas e conversas (com mais ou menos cores) e não apenas ícones ou os sons das cidades.

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