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Editorial

As limitações impostas pela terrível pandemia que afectou o mundo todo, alterando comportamentos, procedimentos e perspectivas de futuro, com consequências ainda não completamente previsíveis, dificultaram a elaboração deste número da nossa revista, porquanto as habituais reuniões de trabalho tiveram de ser canceladas e mesmo os contactos pessoais necessários só puderam realizar-se à distância, com recurso aos novos instrumentos e sistemas de comunicação que os avanços tecnológicos vão pondo mais e mais ao nosso alcance. Mesmo assim, foi possível respeitar os prazos fixados para a sua conclusão e distribuição, graças à sempre empenhada e qualificada coordenação assegurada pelo vicepresidente do IIM, José Lobo do Amaral, e à compreensão e capacidade de resposta dos nossos colaboradores, alguns dos quais têm mantido uma continuada presença que nos apraz louvar.

A qualidade e a diversidade têm constituído preocupação constante nossa, sempre que um número é fechado e damos os primeiros passos para outro arrancar. Foi assim desde que este projecto foi lançado, ganhando de imediato a desejada receptividade e um generalizado reconhecimento, o que nos estimulou a ir sempre mais longe e a querer fazer melhor.

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Quem folhear a revista e passar os olhos sobre o seu conteúdo voltará a encontrar variados trabalhos que versam temática identificada com os objectivos assumidos estatutariamente pelo IIM. Assim, continuam a ser prioritários os artigos sobre Macau, a sua memória e o seu futuro; a comunidade macaense e a sua diáspora; a inserção da RAEM nas ambiciosas iniciativas chinesas, algumas das quais de dimensão universal; as relações lusochinesas, na história e no presente; o desenvolvimento da China nas suas variadas vertentes; as formas de expressão artística e cultural da população de Macau; e o ensino e uso das línguas oficiais da RAEM.

Também temos incluído, em cada novo número, uma resenha ilustrada das principais actividades levadas a efeito pelo IIM e uma apresentação das nossas novas edições, cuja produção tem constituído motivo de justificado orgulho. Aos autores e a quantos intervêm na sua concretização e divulgação deixamos aqui o nosso agradecimento. Aproveitamos, igualmente, para divulgar um dos muitos parceiros que nos permitem ampliar a nossa intervenção, especialmente no exterior. Cabe agora a vez ao Centro Chinês de Estudos dos Países de Língua Portuguesa, que tem sede em Pequim, no campus da prestigiada Universidade de Economia e Negócios Internacionais. Ainda antes de termos um protocolo firmado, o que foi formalmente assumido em 2019, já mantínhamos uma útil cooperação na realização de seminários e encontros e na permuta de publicações.

A RAEM comemorou, jubilosamente, o seu 20.o aniversário em Dezembro passado. O IIM tem a mesma idade. Parafraseando um propósito que resume a missão que abraçámos, podemos reafirmar, com convicção e frontalidade, que, comprometidos com Macau e as suas comunidades, pulsando solidariamente com as suas aspirações de desenvolvimento e de sucesso, abrimo-nos ao mundo para melhor servirmos esta terra e as suas gentes. Foi este o propósito que deu corpo e sentido ao nosso trabalho. É ainda este o propósito que nos fará prosseguir.

Jorge A. H. Rangel

Presidente do Instituto Internacional de Macau

ECONOMIA AZUL: Evolução do conceito e da consciência internacional

A importância do mar na economia e na política das civilizações

Desde tempos ancestrais que o mar representava o limite da humanidade, o inalcançável, quiçá um dos grandes fatores de terror pelos perigos nele contidos, tremendo pavor da queda no vazio por embarcações que, num avanço destemido, mas inglório, olvidavam que “o mundo era plano”. Havia, portanto, dois tipos de mar: o mar explorável, suscetível de ser desafiado, o mar costeiro, o mar da pesca e da navegação à vista; e o outro, o mar inóspito, mítico, gerador de sonhos, mas também de receios profundos. Quem ousasse desafiar este mar ou era um louco, um caso perdido de insanidade, um suicida em potencial, ou era um herói, com novas histórias para contar sobre as tempestades vencidas, os enjoos ultrapassados, as batalhas havidas, as terras avistadas. Com sorte, uns artigos inovadores, uns escravos de cara nunca vista, atestariam a condição de triunfador. O mar determinava muito a vantagem competitiva de alguns povos ou Estados. Aqueles que aprendessem novas rotas de navegação, com o domínio das técnicas de construção naval e o conhecimento de ventos e marés, teriam uma vantagem competitiva, militar e comercial, que lhes permitiria a acumulação de riqueza, sustentar exércitos mais poMário Rui Martinho

Economista, Administrador e Consultor de Empresas derosos, crescer os seus Estados e áreas de influência. Neste contexto, podemos relembrar a importância que o mar teve para a afirmação de muitas civilizações e impérios, tais como a civilização fenícia e o seu comércio em todo o Mar Mediterrâneo; os gregos, com as suas colónias pelo Mar Mediterrâneo; os cartagineses que, com a sua grande capacidade na construção naval, o conhecimento dos mares e a tradição comercial fenícia, dominaram o Mar Mediterrâneo, controlaram o Estreito de Gibraltar e fizeram périplos para terras longínquas; o império romano que, após o declínio de Cartago, apropriou muito do know-how desta para dominar o Mar Mediterrâneo; a civilização dos povos vikings, séculos depois da queda do império romano do ocidente, com os seus dracares que os levaram a Constantinopla, ao território continental da atual Rússia, à Islândia, Groelândia, Ilhas britânicas, Normandia e outros destinos; e, séculos depois, os chineses, os portugueses e os espanhóis, mais tarde seguidos por franceses, ingleses e holandeses.

O mar era a garantia de comunicação rápida com outros impérios longínquos e de trocas comerciais, em que cada parte trocava o que valorizava pouco, por ter em abundância, por algo que valorizava muito, por ser um bem escasso ou, até, exótico. As investidas dos marinheiros temerários iam deixando de ser fruto do impulso louco e aventureiro para, com as recompensas materiais e as experiências (e know-how) obtidas em cada viagem, passarem a ser campanhas organizadas e rigorosamente planeadas. À medida do sucesso obtido e da caminhada na curva de experiência, a qual permitia que com riscos e custos decrescentes se fossem obtendo resultados ampliados, estas aventuras coletivas foram passando de ações privadas ou promovidas por senhores feudais em interesse exclusivo para rotinas periódicas enquadradas em verdadeiros planos estratégicos nacionais.

O amiúde cruzamento de determinadas águas por uma civilização, nação ou Estado parecia conceder-lhe a propriedade desse mar, a qual seria assegurada pela via militar ou por uma espécie de “usucapião em estado líquido”. Os gregos foram dos primeiros a ter a noção de “mar territorial”, embora sem legislar diretamente sobre o assunto. Essa noção estava subjacente nas relações entre os membros das anfictionias (uma espécie de confederação de povos ou cidades), os quais se comprometiam a não se atacar e respeitar as respetivas águas. Os romanos, sem preocupação de legislar, consideravam o Mediterrâneo como o “Mare Nostrum” (o nosso mar). No tempo dos descobrimentos portu-

gueses, os portugueses e castelhanos disputavam o trono de Castela e territórios e rotas marítimas. Em 1479, foi assinado o Tratado das Alcáçovas-Toledo, o qual consubstanciou a desistência do rei português D. Afonso V ao trono de Castela, bem como definiu territórios marítimos para portugueses e espanhóis, entre outros ditames. Foi reconhecido a Portugal o domínio sobre a ilha da Madeira, os Açores e o arquipélago de Cabo Verde, deixando as Canárias para Castela e definindo-lhe um limite (o paralelo 27) para as suas incursões marítimas no Atlântico. Existiu, então, pioneirismo na regulamentação de terras ainda não descobertas e na partição dos mares. 15 anos depois, em 1494, após a viagem de Cristóvão Colombo ao “Novo Mundo”, foi assinado o Tratado de Tordesilhas, o qual, na época, dividia o mundo desconhecido em duas partes. Passavam a ser propriedade de Portugal as terras descobertas a leste do meridiano traçado a 370 léguas do arquipélago de Cabo Verde. Idem para terras conquistadas a povos não cristãos. 115 anos depois, em 1609, este conceito de Mare Clausum que assegurava aos portugueses o monopólio do comércio naval no Oriente é questionado pelo Mare Liberum (tratado do jurista holandês Hugo Grotius), o qual arrogava a livre circulação marítima como aspeto fundamental da comunicação entre povos e nações, portanto, “um direito natural”. O Mar Liberum foi uma fórmula de os holandeses quebrarem os monopólios comerciais existentes e de, com base no seu poderio naval exercido através da Companhia Holandesa das Índias Orientais, estabelecerem o seu próprio monopólio e a colónia das Índias Orientais Neerlandesas, hoje, o país Indonésia.

Negócios do ouro, especiarias, tecidos, madeira e escravos tiveram como palco o Mar Mediterrâneo, o Mar do Norte, os oceanos Atlântico, Índico e Pacífico, bem como importantes rios como o Volga (o mais extenso da Europa, com 3.688 km). Os mares e oceanos eram, desde a antiga Grécia, até à era moderna, os salvo-condutos para a riqueza e crescimento de grandes impérios militares e comerciais. Mas, eram, igualmente, a “fibra ótica” e os “satélites” por onde a informação, o intercâmbio cultural e o conhecimento fluíam a velocidades muito superiores às das grandes viagens terrestres (e.g. a rota da seda). Os “novos mundos”, países como o Canadá, os EUA, o Brasil, países da América Latina, os países africanos de língua portuguesa, só são hoje a realidade política que encaramos porque os oceanos permitiram a aventura. Os fenómenos comerciais, culturais e de aculturação, bem como as iniciativas diplomáticas e militares (estas maioritariamente dramáticas) levaram a que, em grande parte de África e nas Américas, nações pacíficas ou guerreiras, amigas ou inimigas entre si, etnias com línguas, expressões culturais e organizações políticas, religiosas e sociais diferen-

tes, se tenham em grande parte unificado e sejam hoje países de enorme importância e potencial global ou regional.

O que distingue, então, esta economia que existe há, pelo menos, dois mil anos, potenciada pelo domínio de rotas marítimas, daquilo que hoje se denomina de Economia do Mar ou dos Oceanos? Dantes, o mar era uma via de transporte. Rotas oceânicas, marítimas e cursos de alguns rios correspondiam às redes internacionais de autoestradas de hoje. O mar permitia que uma grande quantidade de pessoas e grandes volumes de mercadorias chegassem a um determinado local. Tirando o fenómeno da pesca costeira, o mar não oferecia muito mais que meios de transporte e de comunicação. A Economia do Mar acrescenta novos mundos ao Mundo: a profundidade dos oceanos é acrescentada, em todas as suas virtudes e potencial, à superfície marítima. Quando comparada com a economia do mar das eras anteriores, emerge uma nova perspetiva sobre o mar e o oceano, dos quais brota um elevado potencial para novas indústrias e atividades económicas.

A Economia dos Oceanos em 2030

Em finais de 2016, a OCDE publicou um relatório abrangente sobre a economia dos oceanos, denominado A Economia dos Oceanos em 2030. Com este relatório, a OCDE forneceu uma antevisão do que poderá ser a economia dos oceanos em 2030; de como poderão evoluir as indústrias oceânicas estabelecidas e as indústrias emergentes; e abordou as questões ambientais e de gestão dos oceanos.

Segundo a OCDE, estima-se que, em 2010, a economia dos oceanos representasse 2,5% do valor acrescentado bruto (VAB) mundial, ou seja, 1.535 mil milhões de USD. Extrapolando este peso da economia do mar para 2018, chega-se a um valor para o seu VAB de 1.837 mil milhões de USD1. As atividades com maior peso eram as atividades offshore do Petróleo e gás (Offshore Oil & Gas), o Turismo costeiro e marítimo e a Atividade portuária, respetivamente com 33,6%, 26,0% e 12,9% do VAB da economia dos oceanos. As atividades relativas a Equipamento marítimo, Transporte de mercadorias e Indústria do pescado representavam, respetivamente, 11,2%, 5,5% e 5,2%.

Estima-se que, em 2010, a economia dos oceanos contribuísse para cerca de 1% a 1,5% do emprego mundial. O emprego direto a tempo inteiro na economia do mar era de cerca de 31 milhões de postos de trabalho, sendo que os maiores empregadores eram as empresas de pesca marítima industrial, com 31,5% do total do emprego e o turismo marítimo e costeiro, com 22,3%.

A Europa e a Ásia são as regiões com maior peso nesta economia, representando, em conjunto, cerca de dois terços do VAB mundial da Economia dos Oceanos (a Europa representava cerca de 32,5%; já a União Europeia representava 14,2%). Se, nas atividades de Offshore Oil & Gas, as principais regiões são a Europa, a América do Norte/NAFTA e a América Latina, respetivamente com 28,1%, 18,6% e 17,2% do VAB do setor, já nas atividades de Turismo costeiro e marítimo e Atividade portuária a Ásia é um ator importante, conjuntamente com a Europa. No VAB mundial da atividade de Turismo costeiro e marítimo, o peso da Europa e da Ásia estima-se, respetivamente, em 35,4% e 30,0%, enquanto que, na Atividade portuária, a Europa e a Ásia representam 23,0% e 53,0% do VAB deste setor, respetivamente (vd. Fig. 1).

O peso da Ásia na economia do mar tem vindo a aumentar, nos últimos anos, principalmente nos setores tradicionais e “estabelecidos”. De facto, os 10 maiores portos de contentores estão na Ásia, dos quais 7 se encontram na China. Em 2014, a China representava 14% das pescas mundiais e 61,7% da aquicultura mundial, sendo que, neste caso, muitas das unidades produtivas se encontram no interior do território continental chinês (o peso da Ásia na atividade de aquicultura era de 84% da atividade mundial do setor). No transporte marítimo de carga, é ainda mais evidente a deslocação do peso das economias desenvolvidas para as economias em desenvolvimento. Em 2006, o peso das economias desenvolvidas naquele setor era de 53%, enquanto que, em 2015, 62% do valor da atividade advinha de economias em desenvolvimento.

Segundo a UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development), em 2016, os países que lideravam a propriedade de navios eram Grécia, Japão, China e Alemanha, sendo que a Grécia representava a maior tonelagem peso-morto (293.087 DWT) e a China o maior número de navios (4.960). Segundo o relatório SEA Market Monitoring and Trade da associação Sea Europe, a qual congrega associações de Portugal e de outros países europeus, em 2016, China, Coreia do Sul e o Japão dominavam as encomendas mundiais de novos navios, respetivamente com 35,6%, 23,0% e 21,6%.

Extrapolação do autor. Segundo o Banco Mundial, o VAB mundial, em 2018, foi de 73.495 mil milhões de USD.

Igualmente naquele ano, aqueles três países dominaram a produção completa de novos navios com, respetivamente, 32,1%, 33,1% e 19,6% do total da produção mundial.

Atendendo ao elevado número de atos de pirataria no mar, com ataques a navios mercantes, a presença de frotas de marinha de guerra no patrulhamento e segurança dos oceanos é muito necessária. Em 2017, considerando os navios de grande porte, nomeadamente portaaviões, fragatas, destroyers, corvetas e submarinos, a China liderava com 190 unidades, seguida da Rússia com 166 navios e dos EUA com 160. A presença de frotas de guerra têm tido um efeito positivo na redução do número de ataques de pirataria, os quais desceram de 445, em 2010, para 191, em 2016.

Importa, também, distinguir, na economia dos oceanos, os setores quanto ao seu contributo histórico e potencial para a economia. É comum distinguir-se os setores estabelecidos dos setores emergentes (nestes muitas indústrias e atividades estão já na esfera da “Economia Azul”). Os primeiros são setores com contributo importante e de há muito tempo para a economia mundial. Os segundos são setores que demonstram um elevado potencial para o futuro da economia. Segundo a União Europeia, tem-se, para a economia dos oceanos: A – Setores estabelecidos • Aquicultura; • Pescas; • Indústria de processamento de pescado; • Portos, armazenamento e projetos de água; • Construção e reparação naval; • Turismo costeiro; • Offshore (extração marinha) de petróleo e gás; • Transporte marítimo.

B – Setores emergentes • Bio economia azul e biotecnologia; • Dessalinização; • Energia dos oceanos; • Energia eólica offshore; • Proteção costeira e ambiental.

Embora a Ásia esteja a aumentar o seu peso nas atividades estabelecidas da economia dos oceanos, a Europa tem a liderança de projetos nas atividades emergentes. Por exemplo, Reino Unido, Alemanha, Dinamarca e Holanda representam, conjuntamente, 81% da capacidade mundial das energias renováveis offshore. Por sua vez, no turismo, as Caraíbas são o destino com maior quota de mercado dos Cruzeiros, seguida do Mediterrâneo e de outros destinos na Europa não mediterrânicos, sendo que os principais consumidores daquela atividade turística são a América do Norte, a Alemanha e o Reino Unido. Quanto a desportos náuticos, marinas e navegação de recreio, o peso maior advém dos EUA, Austrália, Nova Zelândia, França, Itália e Reino Unido.

A escassez de recursos e a economia sustentável leva a que se perspetive um aumento da importância relativa da Economia Azul (é a economia dos

oceanos sustentável) na economia mundial. A OCDE estima que haja um forte crescimento da economia dos oceanos, em termos de emprego e de VAB, projetando um valor mínimo para o VAB de 3.000 mil milhões de USD em 2030. Prevê-se um aumento forte na aquicultura, uma vez que a atividade de pesca está ameaçada com a enorme pressão da pesca excessiva e insustentável (“sobrepesca”) nos stocks de peixe. De igual modo, se antecipa um aumento forte das atividades de produção de energia eólica offshore, de transformação e processamento de pescado e da construção e reparação navais. Prevê-se, também, que o turismo possa ser uma área de grande crescimento. Por outro lado, antecipa-se que, em 2030, possam estar empregadas na Economia Azul, em atividades a tempo integral, cerca de 40 milhões de pessoas.

A Economia Azul e os seus desafios

Com nova consciência, a consciência sobre o valor económico do mar e dos oceanos, passámos do impacto do mar na economia para uma “Economia do Mar”. Contudo, novas questões se colocam. Se, por um lado, a economia dos oceanos é fundamental para o crescimento futuro da economia mundial, por outro, qualquer vetor de crescimento económico terá forçosamente de passar pelo respeito pelo ambiente e sustentabilidade das atividades económicas. E, assim, “nasce” a Economia Azul. Esta tem implícito um equilíbrio entre a economia e o ambiente, entre o desenvolvimento e a sustentabilidade. Não pode haver dicotomia entre crescimento e sustentabilidade. Pelo contrário, o que se procura é o crescimento sustentável. Esta consciência na exploração dos novos recursos implica investimentos elevados e apostas estratégicas que apenas grandes corporações multinacionais e os estados estão em condições de assegurar. A criação de condições de atratividade para que as empresas e empreendedores apostem na Economia Azul sustentável é uma tendência deste século, com muitos governos a explicitarem políticas para a economia do mar, por vezes, acompanhadas do simbolismo desta opção estratégica com a criação de um “Ministério do Mar” ou “Azul”.

A importância dos oceanos decorre de fatores diversos: • Os oceanos são o pulmão azul.

Cobrindo mais de 70% da superfície terrestre, é dos oceanos que vem a maior parte do oxigénio que respiramos (produzido pelas algas marinhas); • Os oceanos transportam energia.

O seu papel é também absorver energia (calor) atenuando as oscilações de temperatura e mantendo a estabilidade da composição da atmosfera; • O oceano absorve dióxido de carbono da atmosfera sempre que o ar encontra a água. O CO2 acaba por ir penetrando em águas mais profundas e ser absorvido pelos plânctons2, através da fotossíntese. Cerca de ¼ do CO2 3 que emitimos é absorvido pelo oceano; Espera-se que a população mundial seja de 9.700 milhões de pessoas, em 2050, o que significará muitas pessoas para alimentar. Atualmente, o oceano apenas contribui para 3% da alimentação mundial. A pressão do aumento populacional sobre as outras espécies, na cadeia alimentar, obrigará a retirar do oceano todo o seu potencial alimentar; O solo do fundo marinho constitui uma fonte alternativa e, pratica-

Os plânctons, cujo nome deriva do grego “planktos” que significa “vaguear”, constituem um grupo de organismos aquáticos flutuantes, animais e vegetais, que se deslocam ao sabor dos ventos, ondas e marés. Os seus sistemas permitem-lhe flutuabilidade, mas não têm força para vencer as correntezas. A absorção do CO2 faz-se pelos plânctons vegetais. Para além desta função, os plânctons são importantes porque estão na base da cadeia alimentar, sendo um componente fundamental para o equilíbrio dos ecossistemas aquáticos. O CO2 é responsável por 55% do agravamento do efeito de estufa na atmosfera. O efeito de estuda é fundamental para a humanidade, até certos limites, na medida em que modera a variabilidade das temperaturas na Terra (entre -50ºC e + 50ºC), permitindo a vida tal como hoje a vemos, do ser humano e dos milhões de espécies de outros seres vivos. Mas, o seu agravamento provoca a retenção de calor em excesso na atmosfera e o aquecimento global, estrutural, com consequências graves ao nível da extinção de muitas espécies, nível das águas do mar, degelo glaciar e mortalidade de milhões de seres humanos que vivem nas zonas mais quentes do globo.

mente, inexplorada de minerais necessários à Humanidade. Até para o progresso tecnológico, são necessários minerais e metais. Os recursos minerais marinhos serão uma fonte para suprir as necessidades mundiais4; Para além do transporte e absorção de energia (calor), o oceano também é fonte de produção de energia, seja pela atividade tradicional de exploração de Petróleo e Gás Offshore, mas sobretudo pelo enorme potencial de produção energética a partir da Energia Renovável Marinha (ERM)5;

É do oceano que provém, indiretamente através das chuvas, a maior parte da água doce.

Em suma, os oceanos são importantes porque regulam a temperatura na terra, fornecem alimentos e medicamentos, provêm energia e a maior parte da água doce e do oxigénio, são fonte de recursos minerais, apoiam a economia e dão emprego a milhões de pessoas, são vias de transporte de mercadorias e fazem parte da vivência da grande maioria da população humana, pois a maioria desta vive em zonas costeiras. Os oceanos fazem a história e transportam a herança de muitas culturas.

Assim, o Oceano tem de ser defendido dos excessos da atividade humana, a qual, em exercícios de “autofagia”, fruto do egoísmo ou da ignorância, destrói os ecossistemas e equilíbrios ambientais marinhos, colocando em causa a sustentabilidade da própria espécie. A sobrepesca, a destruição de habitats, a poluição e lixo marinho e o impacto das alterações climáticas colocam em causa a “saúde” dos rios, mares e oceanos. Havendo a necessidade de equilibrar a atividade económica, atual e futura, com o equilíbrio ambiental, apenas uma “Consciência Azul” permitirá aos Estados, empresas, instituições e pessoas adotar as leis, regulamentações, ações, investimentos, atitudes e comportamentos que garantam esse equilíbrio e a sustentabilidade económica, biológica, social e ambiental.

A “industrialização” do oceano deve fomentar processos que apoiem a transformação e adaptação das indústrias marinhas tradicionais, bem

como o desenvolvimento sustentável das indústrias emergentes (e.g. as energias renováveis offshore; a aquicultura; a extração mineira do fundo do oceano; a biotecnologia marinha6). Para tal, há que pesquisar o oceano e todos os seus recursos, para o que é fundamental uma aposta em pessoas, tecnologia e séries temporais de dados e informação marinha. Estas atividades sustentáveis têm impacto positivo noutras atividades da economia do oceano como o turismo costeiro e a reabilitação das infraestruturas costeiras.

Tudo isto requer muito investimento, o qual apenas será possível através do envolvimento dos Estados, acompanhado de um quadro regulatório e de previsibilidade que potencie a atração de stakeholders privados com capacidade financeira e objetivos de investimento. As opor-

No entanto, a extração de recursos minerais marinhos, no fundo do oceano, levanta enormes preocupações ambientais, pois ainda é pouco o que se sabe sobre o impacto das atividades extrativas na biodiversidade e ecossistemas marinhos. A Autoridade Internacional do Fundo Marinho (International Seabed Authority - ISA), estabelecida sob a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) e organicamente autónoma desde 1996, é a instituição que organiza e controla as atividades relacionadas com os recursos minerais existentes no fundo dos mares e oceanos e no subsolo destes, em águas marinhas fora das jurisdições nacionais. Os estados subscritores da UNCLOS são, por inerência, membros da ISA. Atualmente, a ISA tem como membros 167 estados e a UE. A Energia Renovável Marinha (ERM) abrange as energias eólicas (geradores eólicos flutuantes, tanto longe como perto da costa), das ondas, das correntes de maré, do gradiente de salinidade e a energia gerada pelas diferenças de temperatura. Há atividades que poderão contribuir para restaurar a saúde dos oceanos, como as pescas sustentáveis, as atividades de Inovação, Pesquisa & Desenvolvimento, o “carbono azul” (construção de habitats com vegetação costeira), as atividades de proteção e restauração de habitats e a da assimilação de nutrientes e de desperdícios sólidos.

tunidades de investimento na Economia Azul são de três tipos: •

Investimentos relacionados com a gestão de riscos económicos, ambientais, sociais e de governação no sentido da criação de sustentabilidade ambiental e de negócios rentáveis;

Investimentos que, tendo um forte

“business case”, têm externalidades positivas para o ambiente do oceano;

Investimentos exclusivamente focados no bom estado dos oceanos e dos seus ecossistemas7 .

Tem-se assistido a um aumento da consciência empresarial e dos investidores privados com a Economia Azul, impelidos por razões regulató-

rias, visão de sustentabilidade e reputacionais. As indústrias estabelecidas, os fundos de private equity as associações empresariais e muitos gestores de topo e homens de negócio têm liderado esse processo, apostando em soluções económicas que respondam à necessidade de outputs sustentáveis, em financiamentos de negócios tecnológicos para a gestão dos oceanos, em definição das melhores práticas de cada atividade e em regulação setorial.

Por sua vez, os Estados e a comunidade internacional (e.g. ONU e UNESCO), conscientes do problema da sustentabilidade, da necessidade de governação dos oceanos e da exploração sustentável dos seus recursos e do impacto da economia do Oceano no crescimento da economia global e do emprego, têm atuado crescentemente em defesa da Economia Azul. No entanto, ainda se está numa fase de progresso do enquadramento regulatório que leve cada Estado com zonas costeiras a fazer uma gestão integrada da sua zona económica exclusiva (ZEE)8 . De facto, mesmo os Estados “bem-intencionados”, tendo a consciência da necessidade de sustentabilidade da economia do oceano e de um oceano saudável, apresentam algumas dificuldades de implementação intersectorial de políticas e medidas “sustentáveis”.

Em suma, a cooperação internacional é muito importante para uma

São exemplos os investimentos em atividades de vigilância e monitorização dos oceanos; gestão da poluição dos nutrientes no Oceano e das águas residuais; infraestruturas e serviços de proteção marinha; e em mitigação dos efeitos das alterações climáticas. Zona Económica Exclusiva (ZEE) é a área do mar ou oceano, na qual um país tem direito a explorar (e o dever de proteger) os recursos marinhos. A ZEE ultrapassa as 12 milhas náuticas a partir da costa, faixa que corresponde a “águas territoriais”, indo até 200 milhas náuticas. Esta área é garantida pela Convenção sobre a Lei do Mar das Nações Unidas (UN Convention on the Law of the Sea - UNCLOS). A ZEE confere o direito a explorar os recursos marinhos, mas as águas da superfície são “águas internacionais”.

gestão efetiva sustentável do oceano e o progresso da Economia Azul. A ONU, através das suas Metas de Desenvolvimento Sustentável 2030, nomeadamente a meta 14 relativa aos oceanos, bem como pela convenção UNCLOS, tem indicado o caminho e contribuído para um espírito de governação e de cooperação internacional. Os Estados têm, em muitos casos, concebido planos para a exploração sustentável das suas ZEE’s, fomentado fóruns de debate e parcerias internacionais, regulamentado, bem como investido e financiado atividades sustentáveis e de recuperação de áreas costeiras. Importantes instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial (BM), o Banco Europeu de Investimento (BEI) e o Bando Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD), têm financiado atividades da Economia Azul e assumido políticas de reorientação dos seus financiamentos para atividades da economia do oceano sustentáveis. Têm sido criados internacionalmente institutos e observatórios de pesquisa e inovação para a Economia Azul, a par das atividades “azuis” de inúmeras ONG’s e de think tanks com vista ao intercâmbio de ideias, dados, informações e aumento da “literacia azul”. Dados, Ciência, Inovação, Tecnologia, Investimento, Financiamento, Qualificações “Azuis”, Governação, Regulamentação e Sustentabilidade, tudo isto faz parte do contexto da Economia Azul. Com a certeza de que o futuro terá de passar por um “mundo azul e sustentável”, realça-se a importância da cooperação entre empresas privadas, institutos públicos, Estados, investigadores e cientistas, bem como a aposta de investidores nacionais e estrangeiros. É este movimento “azul”, lento mas inabalável, que se irá abordar de seguida.

A economia do mar e a Consciência Azul

Os principais blocos económicos têm prestado crescente atenção à economia dos oceanos e ao desenvolvimento sustentável dessa economia.

Os EUA e uma responsabilidade global De acordo com a National Oceanic and Atmospheric Administration –NOAA9, em 2018, a economia do oceano nos EUA contribuiu para o PIB com USD 373 mil milhões, tendo registado um crescimento económico superior à média da economia como um todo. A maior economia do mundo apresenta valores impactantes no que respeita à economia do oceano: um volume de negócios de USD 617 mil milhões10, que representou um crescimento anual de 7,5%; e 2,3 milhões de empregados. Os EUA, sendo a maior economia global é também um forte poluidor. Tem, por isso, uma dupla responsabilidade mundial perante a sustentabilidade da economia do oceano.

Em Outubro de 1970, foi criada nos EUA uma agência para a gestão oceânica e atmosférica, a NOAA. Começava a visão governamental americana sobre o impacto do ambiente na qualidade de vida das pessoas e no futuro da humanidade. O Presidente Nixon diria, então, “(…) Nós também enfrentamos uma necessidade de pesquisa e desenvolvimento que leve ao uso inteligente dos nossos recursos marinhos. Devemos entender a natureza desses recursos e garantir o seu desenvolvimento sem contaminar o meio marinho ou prejudicar o seu equilíbrio.” Em 1999, foi inaugurado o National Ocean Economics Program – NOEP, por iniciativa da Drª Judith T. Kildow (à época era Professora no MIT) e com o suporte do Presidente Clinton e da NOAA. Aquela iniciativa visava fornecer dados fiáveis e consistentes sobre o valor dos oceanos e das áreas costeiras dos EUA. Hoje, a NOEP está acolhida no centro de pesquisa para a economia azul (Center for the Blue Economy – CBE) do Instituto de Middlebury para os Estudos Internacionais.

O CBE tem um âmbito mais vasto que o NOEP, assumindo como missão promover uma economia dos oceanos e costeira sustentável, através da liderança nas atividades de pesquisa, análise e ensino. A Economia Azul é, para o CBE, o conjunto de “atividades económicas que criam riqueza sustentável a partir dos oceanos e das áreas costeiras do planeta”. Em 2019, o CBE promoveu a iniciativa de juntar especialistas, cientistas e académicos para produzir um conjunto de recomendações aos políticos americanos para a década de 2021 a 2030. Muitas das recomendações têm tido acolhimento por parte dos dois principais partidos americanos. O plano de ação para os oceanos e o clima está sintetizado num relatório de Julho de 2020 (The Ocean Climate Action Plan – OCAP). Partindo dos objetivos finais de usar os recursos oceânicos e costeiros para mitigar as emissões de gases de efeito estufa e de apoiar as comunidades costeiras a se adaptarem equitativa-

10 A NOAA é uma agência governamental dos EUA, pertencente ao Departamento do Comércio do governo central. Foi criada em 1970. Em 2018, os três setores da economia do oceano dos EUA que apresentaram vendas maiores foram o do Turismo e Recreio, Defesa e Petróleo e Gás Offshore, respetivamente com USD 227 mil milhões, USD 190 mil milhões e USD 80 mil milhões.

mente aos impactos das mudanças climáticas, o OCAP emana recomendações para os seguintes domínios: • Financiamento e adaptação costeira, num contexto de justiça social; • Energias renováveis offshore; • Setores dos portos e das indústrias marítimas; • Pescas, aquicultura e conservação da biodiversidade marinha (soluções adaptativas com impacto no clima).

Sendo a economia americana a maior do mundo, com todo o potencial construtivo para o presente da humanidade, mas destrutivo para o planeta e, portanto, comprometendo o futuro daquela, a administração americana tem dado passos no sentido da economia dos oceanos sustentável. Segundo a NOAA, a Economia Azul pesava, em 2016, 1,6% do PIB dos EUA, ou seja, o equivalente a USD 304 mil milhões11 . Conforme já referido, em 2018, o seu contributo para o PIB americano foi de USD 373 mil milhões, o que representa um crescimento de 22,7% em dois anos. O simples facto de a NOOA produzir um relatório sobre a economia americana dos oceanos é revelador da importância crescente que os dados rigorosos sobre a economia do mar e os recursos marinhos suscitam ao governo americano, acompanhando o interesse e iniciativas de inúmeras ONG’s. Os dados são processados por um departamento da NOOA (Economics: National Ocean Watch – ENOW) e cruzam dados estatísticos do emprego e VAB de outras fontes. O ENOW fornece, para a economia americana do oceano e dos Grandes Lagos12, séries temporais de dados para 6 setores de atividade “estabelecidos” e são essencialmente dados de mercado13, ou seja, relativos a bens e serviços cuja valorização se faz a partir de preços apurados pela dinâmica entre a procura e a oferta. Para a resposta aos desafios lançados no plano OCAP, tem a palavra o governo Americano. Em 2014, os EUA lançaram a conferência internacional Our Ocean Conference14 , destinada a encontros de alto nível, envolvendo representantes de governos e stakeholders privados para identificarem soluções para melhorar a produtividade, a prosperidade e a segurança dos oceanos. Em Outubro de 2019, na sexta edição daquela conferência anual, realizada na Noruega, o governo americano anunciou os 23 novos compromissos dos EUA, os quais irão sendo implementados até 2030, para promover a pesca sustentável; combater o lixo marinho; e apoiar a ciência, observação e exploração marinha, os quais são avaliados em USD 1,21 mil milhões15 .

O Dragão Azul Por sua vez, o governo Chinês tem evoluído na forma como encara a importância da economia dos oceanos e, mais recentemente, a Economia Azul. Em 1964, criou uma agência para administração e supervisão dos oceanos, a State Oceanic Administration (SOA). Hoje, esta é a agência chinesa para a política de desenvolvimento da Economia Azul. Em 1987, a SOA criou um think-tank para funcionar como um centro de pesquisa e promoção de estratégias de desenvolvimento dos oceanos, o China Institute for Marine Affairs (CIMA), como prenúncio da maior atenção política à economia dos oceanos que passaria a ser dada a partir dos anos 90. Em 1991, a SOA emitiu o “Plano Nacional para o Desenvolvimento dos Oceanos”, processo que envolveu dezenas de entidades ligadas ao governo central, aos governos e cidades das províncias costeiras e especialistas na temática dos oceanos. Em 1996, a China ratificou o tratado das Nações Unidas para o direito sobre os Oceanos que havia entrado em vigor dois anos antes (The United Nations Convention on the Law of the Sea - UNCLOS). No mesmo ano, a SOA desenhou para o século XXI a agenda da China para o ambiente e o desenvolvimento sustentável, incluindo os oceanos, a Ocean Agenda 21. Em Maio de 2003, o Conselho de Estado emitiu um plano nacional para o desenvolvimento económico dos oceanos, no qual se refere o potencial económico dos oceanos (e.g. recursos minerais, hidrocarbonetos)

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15 Vd. NOAA Report on the U.S. Ocean and Great Lakes Economy – 2019.

Os Grandes Lagos são cinco lagos que se encontram entre o território dos EUA e do Canadá, os quais totalizam cerca de 244 km2 de extensão. Para a correta valorização dos oceanos, há que adicionar o valor das atividades não pagas diretamente pelo consumidor mas que ele valoriza e até estaria disponível para pagar alguma coisa pelos benefícios associados (Non-Market value). Praias, pesca recreativa, observação da vida selvagem costeira e marítima, mergulho e snorkeling e serviços ambientais são exemplos que contemplam atividades que as pessoas consumidoras/utilizadoras valorizam, mas em que, geralmente, nada pagam diretamente para delas usufruir. A valorização destas atividades é mais complexa, havendo várias metodologias aplicáveis (e.g. https://www.oceaneconomics.org/nonmarket/methodologies.asp). De 2014 a 2019, realizaram-se 6 conferências internacionais O Nosso Oceano, sucessivamente nos EUA, Chile, EUA, UE, Indonésia e Noruega. Um dos compromissos dos EUA é investir, até 2030, USD 1.000 milhões no esforço global de mapeamento do solo de todos os mares e oceanos, para contribuir para o objetivo do projeto Seabed 2030. Este projeto visa o mapeamento de todo o solo marinho do planeta até 2030 e resulta de uma parceria entre The Nippon Foundation (fundação do Japão) e a General Bathymetric Chart of the Oceans (GEBCO), uma organização que trabalha sob o patrocínio da International Hydrographic Organization e da Intergovernmental Oceanographic Commission (UNESCO).

e a importância daquele para um rápido crescimento económico da China. A atenção política dada à economia dos oceanos galopou, desde então. Desde 2006, o CIMA tem emitido um relatório anual para o desenvolvimento do oceano, o qual detalha a estratégia de desenvolvimento chinesa quanto aos aspetos legais, económicos, comerciais, científicos e tecnológicos relativos aos oceanos. Em 2007, a SOA realçava a importância dos seguintes recursos naturais, nomeadamente atendendo às necessidades do país: energia; organismos vivos e segurança alimentar; recursos minerais; e água de nascente. Em Outubro mesmo ano, foi consagrado no relatório do 17º congresso nacional do Partido Comunista Chinês (PCC) o objetivo nacional de “desenvolver a indústria marinha”. Em Novembro de 2012, no 18º Congresso do PCC, houve a assunção do objetivo nacional de tornar a China um “país marítimo forte”, com o Presidente Hu Jintao (cessante) a declarar “Nós deveríamos melhorar a nossa capacidade de exploração dos recursos marinhos, desenvolver a economia marinha, proteger o ambiente ecológico marinho, salvaguardar resolutamente os direitos e interesses marítimos da China e tornar a China numa potência marítima”. Por sua vez, no 19º Congresso, em 2017, o Presidente Xi declarou que, em 2050, a China “será líder global no compósito poder nacional e influência internacional”, sendo que o congresso reportou que “as políticas marítimas são parte das ambições de liderança global da China”.

Os meios académicos e intelectuais chineses têm afirmado a existência dos ciclos de três décadas na China comunista, cada um com a sua marca: • As três décadas de Mao, identificadas com a “recuperação da soberania”; • As três décadas de Deng e dos seus seguidores, marcadas pelo

“aumento de riqueza”;

16 National Development and Reform Commission (NDRC). • As três décadas iniciadas por Xi, que serão a da marca do “poder e influência da China no palco internacional”.

Há, pois, na China, um enquadramento político de topo em que a economia do oceano é uma prioridade da estratégia de desenvolvimento. A SOA refere que “o século XXI é o século do oceano” e essa ambição tem sido um paradigma das agências governamentais e dos seus planos quinquenais. O 11º plano quinquenal, de 2006, tem um capítulo importante dedicado à proteção e desenvolvimento dos recursos marinhos, no qual apela ao aumento do conhecimento sobre o oceano, à sua proteção ecológica, ao desenvolvimento económico dos seus recursos, através de medidas abrangentes de gestão do oceano. O 12º plano quinquenal, de 2011, contém um capítulo denominado “Promoção do Desenvolvimento Económico do Oceano”, com mais detalhe face aos planos quinquenais anteriores, muito assente na economia do mar, mas já com aspetos específicos da Economia Azul, como a gestão, pesquisa e investigação científica dos oceanos. Dois anos depois, o Conselho de Estado emitiu um plano nacional marítimo, quinquenal, para implementação conjunta pela SOA, o Ministério do Território e Recursos e a Comissão nacional para a reforma e desenvolvimento16 (NDRC).

A Estratégia “Uma Faixa Uma Rota” – Um impulso para a economia do oceano

Se a economia do oceano já estava como prioridade nacional para o topo da estrutura política em 2012, depois, com o início da governação

do Presidente Xi e do Primeiro-Ministro Li, ela ganha um aliado estratégico: – a Estratégia “Uma Faixa Uma Rota”17, hoje denominada como “Iniciativa Faixa e Rota” (BRI), na sua componente marítima: a Rota da Seda Marítima do século 21 (ou século XXI), anunciada em Outubro de 2013, na Indonésia, pelo Presidente Xi (vd. Fig. 3).

Já em Julho de 2013, numa reunião do Politburo, o Presidente Xi anunciara a sua visão, reconhecendo a importância do oceano para a salvaguarda da soberania, da segurança e dos interesses nacionais, bem como a crescente atenção da humanidade para esta temática. E realçou que o caminho teria de passar pelo desenvolvimento dos recursos marinhos, a proteção do ambiente marinho, a promoção da ciência e tecnologia marinha e a proteção dos direitos marinhos da China. Há, pois, na subsequente Rota da Seda Marítima do século 21 (RSMS21), uma comunhão de interesses entre a estratégia de desenvolvimento de uma economia do oceano e uma estratégia de desenvolvimento mais global.

Muito se tem escrito e analisado sobre a BRI e sobre a sua componente marítima, nomeadamente sobre as reais intenções da China com esta estratégia. A BRI tem uma componente de poder geoestratégico da China, de segurança no acesso a recursos (e.g. energia e alimentares) e tem uma razão de ser económica. Quanto a esta última, o modelo de desenvolvimento da China estava totalmente vocacionado para a exportação, sendo que, já no século XXI, essa aposta se fez muito através de grandes empresas estatais chinesas, subsidiadas pelo Estado e financiadas pela banca chinesa. A produção em grande escala e virada para os mercados externos foi a estratégia seguida após a entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC), em Dezembro de 2001. A mesma permitiu a acumulação espetacular de reservas cambiais que foram sendo reinvestidas em mais financiamentos a empresas estatais e a outros estados (e.g. fortes investimentos e financiamentos a países africanos). Já antes de 2012, a China tinha concluído que a rentabilidade da maioria dos investimentos em Africa era reduzida ou mesmo negativa, bem como que os financiamentos concedidos a países africanos eram de difícil cobrança. Este facto, levou a forte abrandamento desta aposta, mantendo-se a aposta na exportação para os EUA e a Europa. A crise financeira mundial que se iniciou em 2008, estendeu-se para a Europa e, nesta, gerou posteriormente uma crise económica e uma crise de endividamento público por alguns anos. Tal facto, levou a um abrandamento das importações europeias à China. Igualmente, a política económica e monetária americana levou a uma valorização do Renminbi face ao USD, o que também passou a dificultar as exportações para os EUA.

O modelo de crescimento chinês estava suportado em forte crescimento da produção e do emprego, bem como em empresas de grande escala produtiva (para obtenção de economias de escala). Taxas de crescimento do PIB mínimas de 10% eram uma necessidade para absorver o desemprego e sustentar um modelo de desenvolvimento baseado em estratégias de forte endividamento das empresas, principalmente das estatais e dos grandes grupos económicos privados, bem como para compensar as assimetrias socioeconómicas internas18. A crise económica e financeira que atingiu a Europa, a par da política monetária expansionista dos EUA, veio pôr em causa o modelo de desenvolvimento económico da China, fazendo com que muitas grandes empresas chinesas se encontrassem simultaneamente com excesso de capacidade produtiva e sobre-endividamento. Esta realidade levou o Presidente Hu Jintao, primeiro, e o Presidente Xi, depois, a reverem o modelo de crescimento, até então baseado apenas nas exportações, para um modelo que desse muito maior importância ao consumo interno. Com esta consciência e objetivo estratégico, mas

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18 One Belt One Road Strategy (OBOR), mais tarde redenominada por Belt and Road Initiative (BRI). A BRI é uma estratégia de desenvolvimento de infraestruturas, promovida pelo governo do Presidente Xi Jinping e lançada no final de 2013, envolvendo muitos países da Ásia, Africa e Europa. A China é o seu grande impulsionador e maior financiador. Tem uma componente terrestre, denominada de Faixa Económica da Rota da Seda, e uma componente marítima e portuária, identificada como a Rota da Seda Marítima do Século XXI. A primeira prevê a criação de um corredor económico terrestre que ligará a China à Europa ocidental, através da Ásia Ocidental (províncias do Tibete e de Xinjiang) e Ásia Central e mediante um conjunto de investimentos rodoviários e ferroviários. A segunda consistirá na criação de um corredor económico marítimo que ligará a China a países do Sudoeste Asiático, da África oriental e da Europa, através de investimentos, essencialmente, em portos e infraestruturas conexas. A industrialização da China deu-se muito nas províncias costeiras, de Xangai a Cantão, com enorme concentração de emprego, indústrias e riqueza nessas zonas, por contraponto a outras províncias com paupérrimos indicadores de desenvolvimento económico e forte pobreza, levando a grandes migrações internas à procura de emprego nas províncias mais desenvolvidas. Por decisão do governo central e de forma a fixar as populações nas províncias mais pobres, cada uma das províncias mais desenvolvidas tem de “adotar” uma província pobre e apoiála em investimento infraestrutural (e.g. estradas; hospitais).

com a necessidade de evitar uma mudança disruptiva de paradigma do seu modelo de crescimento, a qual levaria no curto prazo a um forte abrandamento da produção e a um acentuado aumento do desemprego, o governo do Presidente Xi lançou a BRI, a qual permitiria continuar a absorver o excesso de capacidade que a Europa não estava em condições de consumir e, também, ganhar tempo para preparar uma oferta produtiva igualmente virada para as necessidades do consumo interno.

A RSMS21, componente marítima da BRI, tem, pois, também a ver com

um sustentáculo a uma mudança a longo prazo de paradigma para o crescimento económico chinês, menos dependente do consumo externo, sendo que, igualmente, potencia, a afirmação internacional do Renminbi como moeda de referência internacional, a par do USD e do Euro, bem como o comércio marítimo e a Economia Azul. A par destes objetivos económicos, a BRI tem igualmente como objetivos de longo prazo dotar o país de um forte poder naval e de uma grande influência internacional (“o poder do discurso” e o soft power19). É fácil intuir esses objetivos, conjugando os objetivos expressos pelo Presidente Xi para 2050, com as ações de diplomacia económica e de presença naval no palco internacional. Em 2017, o CIMA20 indicava as características que um país marítimo forte deve ter: a) Uma Economia Azul desenvolvida; b) Forte capacidade de inovação na ciência e tecnologia marítimas; c) Sucesso na proteção do ambiente marítimo; d) E uma marinha poderosa.

O impacto da RSMS21 e do forte crescimento da economia do oceano

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20 Soft Power significa “a capacidade de um Estado de conseguir o que ele quer pela atratividade da sua cultura, das suas ideias, da sua política interna e da diplomacia”. Foi um termo desenvolvido por Joseph Nye, o qual defende que um Estado internacionalmente bem-sucedido necessita deter em simultâneo hard power (poder coercivo sobre outros estados) e uma capacidade de formatar a longo prazo as atitudes e preferências daqueles estados (soft power). Por exemplo, a China consegue exercer soft power nos países do Sudoeste Asiático, fruto da residência de muitos chineses naqueles países. China Institute for Marine Affairs.

chinesa, a par da crescente presença naval nos oceanos Pacífico e Índico, tem gerado resistências e críticas por parte de alguns países do sudoeste asiático, da União Europeia, dos EUA e de outros países ocidentais. De facto, o investimento e financiamento da construção de cinco importantes portos noutros países21 22, com subsequente concessão de exploração, a par de algumas importantes aquisições de capital23, o forte crescimento das encomendas de navios e da construção naval chinesa, a crescente frota militar naval (mais moderna e tecnológica), com presença mais marcante em águas internacionais24 e os acentuados investimentos com parceiros internacionais europeus para o desenvolvimento de navios de cruzeiro e outros produtos de grande componente de inovação e de tecnologia, levam a enormes receios e medidas estratégicas reativas por parte de outras potências regionais e internacionais. São exemplos de reações o Diálogo de Segurança Quadrilateral (QUAD25), um fórum informal que promove o diálogo estratégico e exercícios militares conjuntos entre os EUA, Japão, Austrália e Índia; a recusa da França e do Reino Unido em assinarem com a China MoU’s relativos à BRI, aquando das suas visitas ao país asiático, em 201826 e a resposta da UE ao BRI, com a sua Estratégia de Conectividade para a Europa e Ásia27, em Setembro do mesmo ano; o acordo entre a UE e o Japão para iniciarem uma “parceria em conetividade sustentável e infraestrutura de qualidade”, em Setembro de 201928; e a parceria Índia-Japão para a construção, no Bangladesh, do porto de Matarbari e de uma fábrica termoelétrica a carvão, com financiamento concedido pela Agência de Cooperação Internacional do Japão.

A China tem desenvolvido a sua economia do oceano com recurso a muita análise e discussão interna. Neste contexto, a SOA e o NDRC identificam as indústrias e setores estratégicos com os objetivos de fazer o upgrade das indústrias marinhas tradicionais, de apoiar as indústrias emergentes29 e de desenvolver uma indústria de serviços marinhos30. Tem consciência do seu peso internacional na economia do mar, em todas as suas componentes, incluindo a da exploração dos recursos minerais no fundo mar, onde tem cerca de 163 mil km2 de áreas de exploração atribuídas pela autoridade internacional do fundo marinho (ISA31), mas também do impacto fortemente negativo no ambiente marinho e costeiro de fenómenos como a sobrepesca, a poluição marinha de plásticos, a

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31 No âmbito da RSMS21, a China acordou até ao presente o investimento e financiamento de construção e/ou ampliação e modernização de um conjunto de portos marítimos: Piraeus (Grécia); Hambantota e Colombo (Sri Lanka); Gwadar (Paquistão); e porto de Doraleh, uma extensão do porto de Djibuti (Djibouti). Para além destes investimentos em infraestruturas portuárias, prevêem-se investimentos adicionais no setor dos transportes (e.g. ferrovias, aeroportos, estradas). A China acredita que, a longo prazo, o negócio da gestão portuária é mais rentável que o do transporte marítimo, podendo proporcionar taxas fixas de rentabilidade mínimas de 8% a 10% e dependendo menos das flutuações dos preços dos combustíveis. A chinesa COSCO fez, em 2016 e 2017, quatro aquisições de participações importantes em empresas gestoras de infraestruturas portuárias/terminal de contentores, em Espanha, Holanda, Abu Dhabi e Itália. A par da maior presença naval nos oceanos Índico e pacífico, a China estabeleceu a sua primeira base militar em África no Djibouti, através de um acordo assinado em meados de 2017 que permitirá à China estabelecer naquela base até 10 mil militares. Em 2007, os Estados Unidos promoveram uma iniciativa de segurança naval entre os Estados Unidos, a Índia, o Japão e a Austrália («Quad»), focada em assegurar as linhas de comunicação entre o mar do Japão e o golfo Pérsico, cruciais para a segurança energética regional. Este fórum foi reiterado em 2017 pelos signatários originais, como resposta à China e aos interesses das partes no Mar do Sul da China. A Alemanha também publicamente criticou o BRI, através do seu ministro dos negócios estrangeiros Sigmar Gabriel, no mesmo ano. A Estratégia de Conetividade da EU para a Europa e Ásia (“Connecting Europe and Asia - Building blocks for an EU Strategy”) foi uma comunicação conjunta dos Altos Representantes da EU para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, de 19 de Setembro de 2018, visando responder ao BRI com uma estratégia alternativa à chinesa. O documento refere a China, como potencial parceiro da UE em projetos de infraestruturas e de conetividade na Ásia, mas não refere o BRI. Segundo o documento, a abordagem da UE deve ser sustentável (sustentabilidade económica, fiscal, ambiental e social no longo prazo), abrangente (contemplar ligações de transporte aéreo, terrestre e marítimo; redes digitais; e redes de energia, tradicional e renovável) e regulamentada (obedecer às regras e regulamentações internacionais). A estratégia prevê o estabelecimento de corredores de transporte, ligações digitais e cooperação no setor da energia com os parceiros asiáticos da UE, fomentando parcerias e prevendo um importante contributo da União no financiamento dos projetos. Na sequência da sua Estratégia de Conetividade da EU para a Europa e Ásia, a UE promoveu o 1º Fórum de Conetividade da Europa, em 27 de Setembro de 2019, uma conferência internacional que visou promover o diálogo e fortalecer os laços entre governos, instituições financeiras e atores do setor privado, na Europa e junto dos seus parceiros da Ásia-Pacífico. À margem do evento, a UE assinou um importante acordo com o Japão. Por exemplo, engenharia marítima; biologia farmacêutica marítima; energias renováveis, dessalinização. Entre outras atividades, o turismo de mar e costeiro; transportes públicos; financiamento de projetos marítimos. International Seabed Authority.

aquicultura não sustentável e a destruição de recifes de coral no Mar do Sul da China. Igualmente, a construção de ilhas artificiais na zona das Ilhas Spratly tem destruído o ecossistema marinho.

Contudo, o que aqui importa relevar é a dinâmica no crescimento da Economia Azul na China e as zonas de cooperação que esta abre entre a China, a UE, os EUA e alguns países africanos. Com a consciência da importância da sustentabilidade da economia do oceano, a China tem dados passos importantes na Economia Azul, com reflexos na cooperação internacional: • Em 2017, a SOA e a NDRC emitiram um documento (“Visão para a Cooperação Marítima sob a

BRI”), no qual descreve como áreas-chave para a cooperação internacional a conservação ecológica marinha, o carbono azul, a cooperação alfandegária e a infraestrutura de pesquisa marinha; • Os navios de alta tecnologia do futuro deverão incorporar novas tecnologias de informação e um sistema de propulsão que emitirá menos carbono; • Embora a Europa lidere neste campo, a China também está a intensificar o desenvolvimento de novas tecnologias mais amigas do ambiente para a exploração offshore de petróleo e gás, bem como

de energias renováveis e limpas a partir do oceano; • A China tem promovido conferências internacionais e está a promover a disseminação interna de uma

“cultura de economia do oceano” com preocupações de sustentabilidade; • A China pretende implementar medidas para atingir em 2030 a 14ª meta das Nações Unidas para um desenvolvimento sustentável (“Life Below Water”); • Assinatura com a UE, em meados de 2018, de uma Parceria para o

Oceano.

A União Europeia – Economia do Oceano e a Consciência Azul Para além da estratégia de conetividade da UE para a Europa e Ásia já referida (vd. nota 27), pela qual a União dá uma resposta alternativa à BRI da China, outras iniciativas e planos de cooperação têm sido tomadas com este país asiático com impacto na economia do oceano e na Economia Azul. Fruto de iniciativas bilaterais para um diálogo de alto nível sobre a governação do oceano e o crescimento azul, os dois blocos económicos denominaram 2017 como o ano azul32. Acordaram, então, a realização nesse ano de um conjunto de eventos bilaterais ligados aos temas “Governação do Oceano”, “Economia Azul”, “Conservação Marinha” e “Monitorização Marinha”. Assim, realizaram-se simpósios, conferências, exposições, encontros de alto nível e planos de partilha de dados sobre pesquisas sobre o oceano. No decurso deste clima de cooperação, a UE e a China assinaram, em 16 de Julho de 2018, uma Parceria Azul para os Oceanos33 que visava melhorar a governação dos oceanos e a coordenação política entre os dois blocos económicos, nomeadamente definindo áreas futuras de cooperação34: • Conservação e o uso sustentável da biodiversidade marinha em alto mar; • Poluição marinha, incluindo lixo plástico marinho e microplásticos;

Mitigação e adaptação aos impactos das mudanças climáticas nos oceanos, incluindo o oceano Ártico;

Conservação dos recursos marinhos vivos na Antártica;

Governação das pescas e prevenção da pesca ilegal, não declarada e não regulamentada;

Progressão no trabalho da Organização Marítima Internacional35 (OMI) para a implementação da estratégia da OMI para a redução dos gases de efeito estufa (GEE) dos navios.

Em Abril de 2019, líderes políticos da UE e da China reafirmaram o seu compromisso para uma implementação eficaz da Parceria Azul para os Oceanos e, em 5 de Setembro do mesmo ano, realizou-se o 1º Fórum

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35 “2017 EU-China Blue Year”. A parceria “Blue Partnership for the Oceans: towards better ocean governance, sustainable fisheries and a thriving maritime economy” foi assinada em Beijing, na 20ª Cimeira UE-China. No âmbito da Parceria Azul para os Oceanos, a UE e a China também acordaram cooperar no sentido de uma melhor governação dos oceanos, visando a sua conservação e sustentabilidade. Comprometeram-se, ainda, em implementar os compromissos assumidos no Acordo de Paris; elaborar o texto para um instrumento internacional juridicamente vinculativo, previsto na convenção das Nações Unidas para a lei dos mares (UNCLOS) sobre a conservação e uso sustentável da biodiversidade marinha em áreas fora das jurisdições nacionais; promover a economia circular na economia azul; bem como em melhorar a literacia sobre o oceano, a sua observação científica e a partilha da ciência e dos dados recolhidos. Criada em 1948, a Organização Marítima Internacional é a agência da ONU responsável por criar uma estrutura regulatória para a indústria naval que seja universalmente adotada e implementada, no que concerne à segurança e proteção dos navios, bem como ao desempenho ambiental do transporte marítimo internacional.

Parceria Azul para os Oceanos, um evento em que as partes juntaram cerca de 150 stakeholders europeus e chineses (e.g. representantes dos estados membros; setor empresarial; académicos; think tanks e ONG’s) para discutir e identificar possíveis áreas de atuação conjunta na Economia Azul. Nesse evento, os stakeholders acordaram direcionar mais investimento direto para os setores sustentáveis da economia do oceano e para a restauração dos ecossistemas, reconhecendo a importância das instituições financeiras no suporte a esse investimento e aceitando os Princípios Financeiros para a Economia Azul36 da UE, para além de acordarem numa cooperação internacional para pesca sustentável e para o combate à pesca ilegal. É objetivo que estas cimeiras bilaterais e os fóruns congregadores de stakeholders em redor da Economia Azul se realizem anualmente.

Com a maior zona económica exclusiva do mundo, cobrindo mais de 20 milhões de km2 e uma presença na economia do oceano, em 2018, que se manifesta em mais de 5 milhões de trabalhadores a full-time, um volume de negócios de € 749,7 mil milhões, um valor acrescentado bruto (VAB) de € 218,3 mil milhões e uma margem bruta operacional de € 94,5 mil milhões37, a UE representa um bloco político e económico demasiado importante (e complexo) na economia do oceano e na sua sustentabilidade para se poder eximir às suas responsabilidades internas e globais no âmbito da Economia Azul. A necessidade de coordenar o uso dos oceanos e do mar na sua ZEE, para melhor gestão dos conflitos de interesses entre EstadosMembros e maior eficácia das atividades económicas sustentáveis, a par do objetivo de afirmação à escala global, levaram a UE a prosseguir uma série de iniciativas institucionais, neste milénio, cujas principais aqui se abordarão.

Em 2007, a UE estabeleceu um enquadramento para uma “Política Marítima Integrada” (PMI) com o objetivo do desenvolvimento de políticas transparentes e integradas entre os seus Estados-Membros no que concerne aos oceanos, mares, ilhas, regiões costeiras e ultraperiféricas e aos setores marítimos. A PMI visava gerir eventuais conflitos de uso do oceano e seus recursos, bem como encarar o problema das alterações climáticas. Segundo a Comissão Europeia, uma PMI melhoraria “a capacidade de a Europa encarar os desafios da globalização e competitividade, alterações climáticas, degradação do ambiente marinho, segurança e proteção, segurança energética e sustentabilidade”. Com a PMI, a UE reconheceu a necessidade de ferramentas de planeamento horizontal das diversas políticas setoriais relacionadas com o mar e destacou a importância de três: a vigilância marítima, o planeamento espacial marítimo e uma fonte de dados abrangente e acessível. Em 2012, a Comissão Europeia lançou a Estratégia de Crescimento Azul38, que é hoje o enquadramento de longo prazo para o crescimento da Economia Azul na UE. Seguiu-selhe uma comunicação em 2014 (“Plano de Inovação para a Economia Azul”39) e um documento de trabalho em 201740. A estratégia sublinha a importância do oceano e da sua economia para a economia como um todo, mas que a economia do oceano tem de ser sustentável e respeitar o ambiente. Foca, essencialmente, em 5 setores que denotam potencial para crescimento económico e emprego sustentáveis: • Aquicultura; • Turismo costeiro; • Biotecnologia marinha; • Energia dos oceanos (energia azul ou energia renovável marinha); e • Exploração mineira dos fundos marinhos.

A Estratégia de Crescimento Azul apoia-se mais em “ativadores de mercado” do que em regulamentação, nomeadamente em ordenamento do espacial marítimo, recolha de dados, pesquisa e inovação, vigilância marítima e na melhoria das competências dos trabalhadores para a economia do oceano sustentável. Pretende-se eliminar barreiras e criar incentivos para que os stakeholders invistam e a inovação aconteça na Economia Azul. Neste contexto, realça-se o papel do programa “Horizon 2020” para a inovação e de alguns fundos estruturais para

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40 Em 2017, uma parceria entre a Comissão Europeia, o Fundo Mundial para a Natureza (ONG), a Unidade para Sustentabilidade Internacional (Príncipe de Gales) e o Banco Europeu de Investimento (BEI) desenvolveu um conjunto de Princípios Financeiros da Economia Azul Sustentável, os quais visam promover a implementação das metas da ONU para o desenvolvimento sustentável, responder à especificidade do oceano e estar conforme os princípios ambientais e sociais do BEI e da IFC (instituição do Grupo Banco Mundial). Fonte: The EU Blue Economy Report 2020. The Blue Growth. Em Maio de 2014, a Comissão Europeia fez a comunicação “Innovation in the Blue Economy: realising the potential of our seas and oceans for jobs and growth”, reforçando o tema da inovação na Economia Azul. “Report on the Blue Growth Strategy Towards more sustainable growth and jobs in the blue economy”, de Março de 2017.

“pilotar” o investimento na economia do oceano sustentável. A estratégia reforça, ainda, o papel das parcerias nalgumas bacias marítimas, entre Estados-Membros e também com partes terceiras e a iniciativa privada.

Como complemento a esta “estratégia económica sustentável para o oceano”, a UE lançou, em Maio de 2020, a sua estratégia ambiental para 2030, a Estratégia de Biodiversidade da UE para 2030. Tendo um âmbito mais alargado que a Economia Azul, importa realçar o que esta estratégia traz de sustentabilidade para os rios, mares e oceanos. Assim, são estes os principais compromissos com a biodiversidade marinha, até 2030: •

Na UE, 30% dos mares deverão ser protegidos41;

Um Plano da UE de Restauração da Natureza, o qual contemplará também a recuperação dos ecossistemas no mar;

A UE dará prioridade a soluções de Energia Azul, como a energia oceânica e a energia eólica marítima, que também favorece a regeneração de unidades populacionais de peixes;

Restabelecer o bom estado ambiental dos ecossistemas marinhos, nomeadamente a restauração de ecossistemas ricos em carbono. As capturas de recursos marinhos devem ser sustentáveis e não haverá tolerância para práticas ilegais42-43; Restauração dos ecossistemas de água doce, a fim de alcançar os objetivos da Diretiva-Quadro da Água. Para tornar isto uma realidade, será restabelecido o curso natural de rios, numa extensão de, pelo menos, 25 mil km44 .

Para facilitar a concretização destas metas, a UE propõe-se promover programas de financiamento e outros apoios, para além de incentivos fiscais às indústrias e empresas que adotem as práticas defensoras da biodiversidade e do ambiente marinho. Igualmente, suportará a formação necessária à requalificação dos trabalhadores para a reconversão dos métodos de trabalho e para as indústrias emergentes sustentáveis. A UE assume-se como líder nesta área e pretende contribuir, no quadro internacional, para a implementação de medidas de desenvolvimento sustentável com metas globais para 2050, visando a biodiversidade, a governação do oceano, o combate à pesca ilegal e o ordenamento da atividade da exploração mineira no fundo do oceano.

Não pretendendo ser exaustivos quanto aos aspetos de desenvolvimento da Economia Azul na UE, sublinha-se os esforços da União no que concerne a: • Regulamentação; • Pesquisa, Inovação e Dados; • Formação e requalificação de trabalhadores da economia do oceano; • Financiamento; • Cooperação internacional.

Quanto à regulamentação, após os fundamentos para o ordenamento espacial marítimo constantes da Política Marítima Integrada de 2007 e o Roteiro para o Ordenamento do Espacial Marítimo, de 2008, seguiram-se discussões e debates que levaram à Diretiva para o Ordenamento do Espaço Marítimo (DOEM), em 2014. A diretiva visa reduzir os conflitos intersectoriais, encorajar o investimento através da previsibilidade e transparência das regras, aumentar a cooperação entre os Estados-Membros (a cooperação permitirá desenvolver redes coerentes de “áreas protegidas”, redes de energia, rotas marítimas, pipelines, cabos submarinos e outras atividades transfronteiriças) e proteger o ambiente marinho. Os Estados-Membros têm 2021 como prazo limite para o estabelecimento dos planos de ordenamento do seu espaço marítimo (OEM). Em complemento desta diretiva, a UE tem promovido conferências, o financiamento de projetos transnacionais e contribuído para o ordenamento do espaço marítimo internacional45 .

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45 O alargamento das áreas protegidas é também um imperativo económico. Os estudos sobre os sistemas marinhos estimam que cada euro investido em áreas marinhas protegidas geraria um retorno de, pelo menos, € 3. Vd. Brander et al., «The global costs and benefits of expanding Marine Protected Areas», Marine Policy, vol. 116, junho de 2015, art. 103953. Segundo a Comissão Europeia, é essencial a plena aplicação da política comum das pescas da UE, a Diretiva-Quadro Estratégia Marinha. A Comissão irá propor, até 2021, um plano de ação para a conservação dos recursos pesqueiros e a proteção dos ecossistemas marinhos, introduzindo medidas para limitar a utilização das artes de pesca mais nocivas para a biodiversidade, incluindo no fundo do mar. O Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e das Pescas deve igualmente apoiar a transição para técnicas de pesca mais seletivas e menos prejudiciais. A restauração de rios e planícies aluviais pode, igualmente, dar um impulso económico importante ao setor da regeneração ambiental e às atividades socioeconómicas locais, como o turismo e o lazer. Para isto, serão incentivados os investimentos necessários. Em cooperação com a Comissão Oceanográfica Intergovernamental da UNESCO (IOC-UNESCO), a UE tem contribuído para o estudo e desenvolvimento das melhores práticas no OEM internacional. Igualmente tem participado nas conferências internacionais para o OEM e nos Fóruns Internacionais sobre o OEM, realizados a partir de 2018, os quais visam o intercâmbio de boas práticas, com o objetivo da elaboração de orientações internacionais sobre o OEM transnacional.

Para além da DOEM, que é o pilar económico da política marítima da UE, há o pilar ambiental: a DiretivaQuadro Estratégia Marinha (DQEM), de 2008, revista em 2017 no sentido de aumentar a componente de sustentabilidade. O objetivo da diretiva é proteger de forma mais eficaz o ambiente marinho em toda a Europa e visava, na génese, atingir bons estados ambientais46 para 2020, nas águas marinhas da UE, de forma a proteger os recursos bases de que dependem muitas atividades económicas e sociais. As diretivas DQEM e a DOEM, acabam por estar interligadas, na medida em que, se uma visa desenvolver atividades que geram emprego num quadro de sustentabilidade, a outra visa proteger os recursos marinhos base para o desenvolvimento da economia do oceano.

O problema ambiental da UE não é de regulamentação, a qual é robusta, mas sim de implementação dessa regulamentação nos Estados-Membros, a qual se encontra com assinalável atraso. Várias outras diretivas importantes existem com impacto horizontal na Economia Azul, como, por exemplo, a diretiva 2019/904, de 5 de junho de 2019, relativa à redução do impacto de determinados produtos de plástico no ambiente (a Single-use Plastics Directive), promovendo a economia circular.

A nível de pesquisa, inovação e dados, a UE lançou, em 2008, a sua estratégia para a pesquisa e inovação, no quadro da Política Marítima Integrada (PMI), a qual visava harmonizar linguagem, partilhar práticas e potenciar sinergias entre os Estados-Membros, através de integração de políticas e recursos. Desde então, muitos projetos de ambiente marinho têm beneficiado de financiamento de programas da UE, embora maioritariamente o financiamento se continue a fazer no quadro de iniciativas individuais dos Estados-Membros. A UE tem, também, apoiado a pesquisa e inovação em áreas de mares regionais, como o Mediterrâneo (iniciativa Bluemed), o Báltico (iniciativa BONUS) e o Mar Negro, para alem de promover estas atividades sobre o Atlântico, através de outras parcerias internacionais. Cabe ao Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia (IEIT47) um papel importante no reforço da capacidade inovadora dos Estados-Membros, através de parcerias pan-europeias entre as grandes empresas e os centros e institutos de investigação48 .

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48 Good Environmental Status (GES). O IEIT é um organismo da União Europeia criado em 2008 para reforçar a capacidade de inovação da Europa. Faz parte do Horizon 2020, programa-quadro de investigação e inovação da UE. Os resultados atingidos, desde o seu estabelecimento, permitiram criar diversas parcerias, polos de inovação e milhares de postos de trabalho, centenas de produtos e serviços, bem como mobilizar € 1,5 mil milhões para a pesquisa e inovação e apoiar milhares de mestrados e doutoramentos. Estas parcerias são designadas por “Comunidades de Investigação e Inovação”.

Por sua vez, a Economia Azul necessita da recolha e integração de dados marinhos. Os dados marinhos são cruciais para avaliar o estado dos recursos e do ambiente marinho, contribuindo para desenvolver novos serviços relacionados e alimentando o processo de inovação. Existem três iniciativas de relevo, no âmbito da estratégia da UE «Conhecimento do meio marinho 202049», a qual pretende reunir dados sobre o meio marinho provenientes de diferentes fontes com o objetivo de suportar as atividades de stakeholders, públicos e privados, tendo em vista o desenvolvimento de novos produtos e serviços e a uma melhor compreensão dos mares e oceanos: • 10 Estados-Membros recolhem, gerem e disponibilizam uma vasta gama de dados sobre pesca e aquicultura50. Após serem analisados, os dados permitirão mais cabalmente à UE regular a atividade das pescas e promover a Economia Azul;

Recorrendo ao programa Copernicus51, há um serviço de monitorização do ambiente marinho, que fornece informações sobre o estado físico e a dinâmica dos oceanos e dos ecossistemas marinhos.

Rede Europeia de Observação e de

Dados do Meio Marinho (EMODnet). Criado em 2009, o EMODnet é um observatório marinho europeu (sobe a forma de um portal Web) que recolhe, processa e disponibiliza abertamente todo o tipo de dados marinhos. Os dados são agrupados por 7 disciplinas marinhas: batimetria52; geologia; física; química; biologia; habitats do fundo do mar; e atividades humanas.

Quanto à Formação e requalificação de trabalhadores, ela é muito necessária para a renovação de alguns setores tradicionais, como as pescas, bem como para a atividade profissional em tecnologias inovadoras (e.g. biotecnologia marinha). Neste contexto, realçam-se dois projetos que recebem fundos comunitários: o consórcio “MATES53”, direcionado para a qualificação de trabalhadores para as indústrias da construção naval e da energia renovável offshore; e o projeto “SKILLSEA”, o qual visa dotar a Europa de profissionais, num mercado marítimo em mudança, capacitados com competências digitais, ambientais e socio-emocionais, com vista à mobilidade e empregabilidade numa economia do oceano sustentável.

No que concerne a financiamento de projetos de Economia Azul, a UE tem um dos seus 5 fundos estruturais direcionados para apoiar a política marítima e das pescas: – o Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos e das Pescas (FEAMP). O FEAMP visa, essencialmente, apoiar os pescadores na transição para uma pesca sustentável e ajudar as comunidades costeiras a diversificarem as suas economias, através de cofinanciamentos com os Estados-Membros. A dotação do atual FEAMP (20142020) é de € 6,4 mil milhões. Para o período 2021-2027, a Comissão Europeia está a propor um novo FEAMP com a mesma dotação nominal do anterior, o que, tendo em conta a inflação, representará uma redução real de cerca de 13%. O novo fundo focará no financiamento dos pequenos pescadores e de atividades azuis com impacto nas comunidades costeiras, bem como visará fortalecer a governação internacional dos oceanos, proteger os ecossistemas marinhos e mitigar os efeitos das alterações climáticas, conforme os compromissos do Acordo de Paris. Em termos de concretização, os fundos estruturais têm sido importantes no financiamento da Economia Azul (e.g. até 2019, tinham contribuído com € 1,4 mil milhões para o financiamento de projetos de energia eólica offshore, cujo investimento global ascendeu a cerca de € 8 mil milhões), nomeadamente alavancando o acesso de PME’s a financiamento de projetos sustentáveis.

Por sua vez, o Banco Europeu de Investimento54 (BEI) tem financiado o setor privado em projetos importantes em setores da Economia Azul, capital-intensivos (e.g. projetos de reabilitação de infraestruturas portuárias e de energia eólica offshore)55. O seu compromisso com a Economia Azul tem sido ampliado

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55 A marine knowledge 2020 strategy.9. Os dados incluem dados biológicos, estatísticas das pescas, dados económicos e sociais. São compilados pelo Centro de Pesquisa Conjunta, para depois serem analisados e reportados pela UE. Copernicus é como se denomina o programa da EU de observação da Terra por satélite. Batimetria ou batometria é a medição da profundidade dos oceanos, lagos e rios. A batimetria expressa-se cartograficamente por curvas batimétricas que unem pontos da mesma profundidade com equidistâncias verticais, tal como as curvas de nível topográficas. A palavra batimetria é originada do grego, onde “Bathus” significa profundo e “Metron” medida. O MATES é um consórcio com 17 parceiros de 8 países europeus: – Portugal; Espanha; Grécia, Itália, Bélgica, Países Baixos, Escócia e República da Irlanda. O Banco Europeu de Investimento (BEI) é detido conjuntamente pelos países da UE. Os níveis de investimento privado na Economia Azul são ainda baixos, atendendo ao elevado risco e longos períodos de payback que lhes são associados.

acentuadamente desde 2018. O seu Programa Oceano Limpo e Sustentável (Clean and Sustainable Ocean Programme) visa aumentar a atratividade dos projetos oceânicos limpos e sustentáveis para investimento e tem duas componentes: •

A Iniciativa Oceanos Limpos (The

Clean Oceans Initiative56), de Outubro de 2018, a qual apoia a implementação de projetos sustentáveis que reduzam a poluição nos rios, mares e oceanos (principalmente a poluição por plásticos).

O objetivo é financiar projetos dos setores público e privado, num montante que poderá ascender a € 2 mil milhões até 2023;

A Estratégia do Oceano Azul Sustentável (The Blue Sustainable

Ocean Strategy - Blue SOS), de

Outubro de 2019, visa financiar projetos que contribuam para a

“saúde” dos oceanos, ambientes costeiros mais fortes e sustentabilidade das atividades económicas marinhas. Pretende financiar € 2,5 mil milhões, até 2024, em projetos de desenvolvimento costeiro sustentável; produção sustentável de alimentos marinhos; navegação

“verde”; e biotecnologia marinha.

A par do financiamento direto, o BEI apoia a Economia Azul através de outras instituições do seu grupo. O Fundo Europeu de Investimento (FEI), detido maioritariamente pelo BEI e com participação importante da UE57 , é o veículo da União para o apoio às PME’s, microempresas e empresas sociais. Em Fevereiro de 2020, o FEI lançou o BlueInvest Fund58 , com € 75 milhões, para indiretamente investir em PME’s com projetos na Economia Azul.

Em 14 de Novembro de 2019, o BEI deliberou e comunicou uma nova estratégia climática e nova política de financiamento ao setor energético. Esta nova ambição de sustentabilidade ambiental afetará também a economia do oceano, nomeadamente: • O BEI deixará de financiar projetos de energia de combustíveis fósseis a partir do final de 2021; • O financiamento futuro irá acelerar a inovação em energia limpa, a eficiência energética e as energias renováveis;

Na década de 2021 até 2030, o

Grupo BEI disponibilizará financiamentos até um bilião de Euros59 em ações climáticas e investimentos ambientais sustentáveis. O objetivo do banco é que o financiamento dedicado à ação climática e à sustentabilidade ambiental atinja 50% das suas operações, em 202560;

O Grupo BEI alinhará todas as atividades de financiamento com os objetivos do Acordo de Paris, a partir do final de 2020.

A nível de financiamento da Economia Azul na Europa, importa assinalar o contributo do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD61). O BERD tem um compromisso com a sustentabilidade ambiental, pelo que os seus financiamentos visam suportar regiões e economias a atingir os compromissos da agenda global de sustentabilidade. São exemplos de apoios o financiamento do novo terminal do porto de Gdansk, na Polónia; o projeto de reabilitação e construção nova de cerca de 100 km de tubagens de transporte de água, na Bulgária; e a tomada de uma participação minoritária no capital da empresa que gere o porto de Talin, na Estónia, para suporte financeiro.

A nível da cooperação internacional, para além da Parceria Azul para os Oceanos, assinada em Julho de 2018 com a China, a UE tem manifestado esforços de cooperação internacional ao nível do estudo dos recursos, da segurança, da governação e da sustentabilidade económica e ambiental dos oceanos. A UE tem promovido o desenvolvimento dos Princípios Financeiros de Economia Azul Sustentável, cujo objetivo é a adoção voluntária dos mesmos por uma rede importante de instituições financeiras internacionais, e tem reforçado o seu compromisso com as Metas de Desenvolvimento Sustentável para 203062 estabelecidas pelas Nações Unidas. Neste sentido, em Novembro de 2016, a UE lançou a Agenda para a Governação Internacional dos Oceanos63 .

O Oceano Atlântico, o segundo maior do planeta, assume uma importância acrescida para a UE, em

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63 A iniciativa é uma parceria entre o BEI, a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) e o banco alemão KfW. Após a última subscrição de capital, em Março de 2020, as participações do BEI e da UE no FEI ficaram, respetivamente, em 59,1% e 29,7%. É um fundo para participar noutros fundos de investimento cujos alvos de investimento se insiram na Economia Azul. € 1.000.000.000.000. Vd. Relatório da Economia Azul da UE 2020. O BERD foi fundado em 1991 para ajudar a transição para economias de mercado e democracias em 27 países da Europa Central à Ásia Central, após o colapso do comunismo soviético. A UE e o BEI são dois dos seus principais doadores. A meta 14 “Life Below Water” diz respeito aos oceanos. Comunicação conjunta da Comissão Europeia e dos Altos Representantes dos Negócios Estrangeiros e da Política de Segurança, denominada International ocean governance: an agenda for the future of our oceans.

virtude de 5 países da União terem costa Atlântica, bem como pela responsabilidade global pela situação ambiental deste importante recurso natural. Neste contexto, em 2011, a UE lançou a sua “Estratégia Atlântica”, com o objetivo de partilhar entre os Estados-Membros oportunidades e responsabilidades. Lançada esta base, a UE promoveu e comprometeu-se com algumas iniciativas importantes a nível de cooperação internacional no Oceano Atlântico:

Em 2013, em cooperação com os referidos 5 Estados-Membros64 , lançou o Plano de Ação da UE para uma Estratégia Marítima na

Área do Atlântico, através do qual pretendeu uma cooperação efetiva dos Estados-Membros no sentido de um Atlântico sustentável.

Três ativadores importantes foram identificados: 1) Investimento em inovação e capacidades tecnológicas; 2) Pesquisa, pois os dados, o conhecimento sobre o oceano e a capacidade para modelar e prever são muito importantes para uma boa governação do oceano; e 3) melhoria da qualificação da força de trabalho;

Também em 2013, a UE, os EUA e o Canadá assinaram a Declaração de Galway sobre a Cooperação no

Oceano Atlântico, que levou ao estabelecimento, em 2015, da

Atlantic Ocean Research Alliance (AORA). A aliança AORA desenvolve pesquisa nas seguintes áreas:

Mapeamento do fundo do oceano;

Observação do oceano (importante para prever a evolução das alterações climáticas e o seu impacto no ambiente); Investigação para fornecer “alimentação para o mundo” a partir do oceano65; Estudo dos ecossistemas marinhos para se poder avaliar a “saúde” do Atlântico; e Melhoramento da “literacia oceânica”, sensibilizando os cidadãos para a importância do oceano para o presente e o futuro da Humanidade; Em 2017, a UE, o Brasil e a África do Sul assinaram, em Lisboa, a Declaração de Belém sobre a Cooperação Atlântica em Pesquisa e Inovação, a qual visa o intercâmbio de dados e a cooperação científica e tecnológica, com especial impacto no Oceano Atlântico Sul e Tropical e Austral. Para implementar estas intenções, as partes criaram, em 2018, a All Atlantic Ocean Initiative66, que visa criar uma comunidade de atores relevantes em redor do Atântico para identificar e colaborar em pesquisas concretas e atividades de inovação; Em 2018, a UE e a Argentina rubricaram um acordo de cooperação em pesquisa, ciência e inovação marinha, com o qual visam, tendo o Atlântico como base, colher benefícios conjuntos aos níveis da abordagem alteração climática / ecossistemas marinhos, observação oceânica, segurança alimentar – pescas sustentáveis –aquicultura e biodiversidade, tecnologia oceânica e pesquisa polar;

Também em 2018, em 22 de Novembro, a UE e Cabo Verde rubricaram o Acordo de Mindelo de Cooperação em Pesquisa Marinha e Inovação, o qual tem um objeto muito semelhante ao acordo rubricado com a Argentina. As Nações Unidas, os líderes mundiais, o Banco Mundial e a Economia Azul Aquando da realização, no Rio de Janeiro, em Junho de 2012, da Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável (UNCSD)67 , o foco era o desenvolvimento sustentável e a Economia Verde. Enfatizava-se o papel desta economia na irradicação da pobreza e no desenvolvimento sustentável. Muitos países costeiros pressionaram, então, para que uma maior atenção fosse dada aos oceanos, no sentido de se verem mais identificados com a temática do desenvolvimento sustentável. E, assim, desta conferência e da atenção que se lhe seguiu, nasceu o conceito de Economia Azul.

Para a ONU, a Economia Azul é uma economia do oceano que visa “a melhoria do bem-estar e a igualdade social, enquanto reduz significativamente os riscos ambientais e a escassez ecológica”. Por sua vez, o Banco Mundial definiu, em 2017, a Economia Azul como “o uso sustentável dos recursos oceânicos para o crescimento económico, a melhoria do nível de vida e o emprego, preservando a saúde do ecossistema do Oceano”.

Mais que fazer, o papel da ONU é o de “fazer acontecer”, através de ações de sensibilização dos EstadosMembros e da comunidade internacional. Na sequência da conferência de 2012, no Rio de Janeiro, e de um movimento crescente para compatibilizar o crescimento económico com o ambiente e a igualdade social (o desenvolvimento sustentável), a ONU lançou, em 2015, 17 Metas

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67 Portugal, Espanha, França, Irlanda e Reino Unido. Na alimentação humana, apenas 3% vem do mar e, em 2050, estima-se uma população mundial de 9.700 milhões de pessoas, o que pressiona para se encontrarem alternativas sustentáveis de alimentação do mundo. https://www.allatlanticocean.org/main Rio+20 – a Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável – realizada em junho de 2012, no Rio de Janeiro, Brasil.

para o Desenvolvimento Sustentável 2030. Estas metas, subscritas por todos os Estados-Membros, resultaram de discussões múltiplas entre os Estados e a sociedade civil (larga gama de stakeholders).

Das 17 metas, a meta 14 é a que assume maior importância para a Economia Azul: “14. VIDA NA ÁGUA”68 . Esta meta visa a “a conservação e o uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável” e estabelece resultados parcelares para serem atingidos de 2020 a 2030. Os mesmos têm a ver, entre outros aspetos, com a redução da poluição marinha; a proteção dos ecossistemas marinhos e costeiros; a mitigação dos efeitos da acidificação dos oceanos; o fim da sobrepesca, pesca ilegal e práticas de pesca lesivas e destrutivas; a conservação de zonas marinhas e costeiras; o apoio ao desenvolvimento económico dos pequenos Estados insulares; o aumento do conhecimento científico e das capacidades de pesquisa, visando a transferência de tecnologia; o apoio aos pescadores artesanais no acesso aos recursos marinhos e mercados; e a governação dos oceanos de acordo com a UNCLOS.

No final de 2015, foi produzido o 1º relatório de avaliação do estado dos oceanos (World Ocean Assessment I), com o intuito de aferir os aspetos ambientais, económicos e sociais dos oceanos69. O relatório concluiu que a capacidade de o oceano continuar a suportar os impactos destrutivos da atividade humana estava no limite e que se impunha, com urgência, inverter a situação e proteger o que de bom ainda existia. Atendendo às falhas de integração da pesquisa oceanográfica e dos dados científicos marinhos na gestão das atividades marinhas e costeiras, em todo o mundo, a Assembleia Geral da ONU declarou, em 5 de Dezembro de 2017, a década de 2021 a 2030 como sendo a Década da Ciência do Oceano para o Desenvolvimento Sustentável (“Towards The Ocean We Need For The Future We Want”) e encarregou a Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI) da UNESCO de desenvolver o seu plano de implementação (A / RES / 72/73). O objetivo principal dessa iniciativa é estabelecer um quadro de coordenação internacional das atividades científicas e de pesquisa sobre o oceano e de integração dos seus resultados na gestão das atividades marinhas70, com vista a se atingir os alvos da meta 14 das Metas de Desenvolvimento Sustentável 2030 (MDS2030). A década do oceano deverá, também, apoiar a educação e criar a sensibilidade para o desenvolvimento sustentável.

A ONU, através das suas agências e iniciativas, tem apoiado ou promovido conferências internacionais sobre a economia azul ou sobre o oceano. Em 2017, a ONU promoveu a 1ª Conferência dos Oceanos, em Nova Iorque, a qual celebrou igualmente o Dia Mundial dos Oceanos71 (8 de Junho). O evento contou com a presença dos principais chefes de Estado e de Governo do mundo, bem como representantes de organizações relevantes, para apoiar a implementação da Meta de Desenvolvimento Sustentável 14, tendo resultado em mais de 1.400 compromissos. A 2ª Conferência72 dos Oceanos das Nações Unidas estava aprazada para 2020, mas foi, entretanto, adiada para 2021, devido à pandemia da Covid-19.

Estes movimentos de líderes mundiais em prol do oceano e da Economia Azul têm corporizado novas parcerias e associações, bem como conferências internacionais em países ou regiões menos desenvolvidas. Neste contexto, regista-se o envolvimento da ONU, em conjunto com 12 chefes de Estado e de Governo, no lançamento em 2018 do Painel do Oceano73 , um painel de alto nível para uma Economia do Oceano Sustentável. O Painel do Oceano (PO), composto por decisores com poder político, tem cooperado com governos, empresas, instituições financeiras, a comunidade científica e a sociedade civil com vista a promover a implementação de novas soluções em políticas, governação, tecnologia e financiamento para uma economia oceânica sustentável. Os Estados representados no

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73 United Nations’ “SDG nº 14: LIFE BELOW WATER”. Segundo a ONU, o processo de elaboração envolveu o contributo de centenas de relatórios nacionais e regionais, bem como mais de 600 especialistas indicados pelos seus Estados-Membros. A ciência marinha pode apoiar as indústrias estabelecidas (e.g. indústria naval, pesca e aquicultura), bem como atividades de conservação e gestão ou comunidades costeiras, prevendo perigos oceânicos ou prevenindo riscos de desastres. Em 5 de dezembro de 2008, foi proclamado o Dia Mundial dos Oceanos através da Resolução 63/111 adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas. A conferência será realizada em Lisboa, tendo como coorganizadores Portugal e o Quénia, sob o tema “Ampliando a ação do oceano com base na ciência e inovação para a implementação da Meta 14: balanço, parcerias e soluções”. O Painel de Alto Nível para a Economia do Oceano Sustentável (High-level Panel for a Sustainable Ocean Economy) é uma iniciativa de 14 líderes mundiais que visa trabalhar com os diversos stakeholders políticos, económicos e sociais, bem como com a comunidade científica, em prol da Economia Azul.

PO74 (Portugal é um dos membros) correspondem a cerca de um terço das áreas costeiras e a um terço das ZEE mundiais, bem como a 20% da pesca e 20% da frota marítima mundial. Outro acordo internacional importante é a Carta Azul (CA), assinado na Reunião dos Chefes de Governo da Commonwealth em Londres, em abril de 2018. Na CA, os países daquela Comunidade comprometem-se a cooperar no âmbito da Economia Azul, para o cumprimento da MDS203075 nº 14 da ONU, estabelecendo “grupos de ação” para o aprofundamento e medidas concretas em 10 temas76. Em 2019, a Commonwealth e a ONU assinaram um MoU77, em Londres, pelo qual se comprometem a cooperar para o cumprimento das metas MDS2030, ligando os objetivos da Carta Azul às referidas metas de desenvolvimento sustentável. Por fim, realça-se a primeira Conferência sobre a Economia Azul Sustentável Global, realizada em Novembro de 2018, em Nairobi, sob o tema “A Economia Azul e a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, coorganizada pelo Quénia, Canadá e Japão, a qual contou ainda com 34 sponsors, dos quais destacamos Portugal, Noruega, Reino Unido, China, União Europeia, União Africana, África do Sul, FAO78, PNUD79 e Banco Mundial. Cerca de 16.300 participantes de 184 países, entre os quais 7 Chefes de Estado e 84 ministros80, discutiram 9 subtemas sob dois pilares: a) crescimento económico, criação de emprego e redução da pobreza; b) sustentabilidade, alterações climáticas e controlo da poluição. Os trabalhos resultaram em compromissos voluntários, não monetários e monetários, nos vários setores da Economia Azul, num valor de cerca de USD 172 mil milhões, bem como na Declaração de Nairobi para o Avanço de uma Política Sustentável81 .

Igualmente, menção de relevo merece o Grupo Banco Mundial pela sua ação no desenvolvimento da Economia Azul, com um portfólio de projetos ativos de cerca de USD 5 mil milhões e USD 1,65 mil milhões de projetos em avaliação de candidatura, à data de 22 de Junho de 2020. O Grupo Banco Mundial tem na sua estratégia corporativa a defesa da sustentabilidade, procurando que o desenvolvimento se faça de acordo com as MDS2030 da ONU, através de projetos que consigam o triplo “Bottom line” (resultados): resultados económicos, ambientais e sociais positivos. Em 2018, lançou um fundo fiduciário multi doadores82, o PROBLUE, o qual atualmente está dotado de USD 150 milhões, cujo objeto é apoiar a Economia Azul, através de apoio a países em projetos sustentáveis nas áreas das pescas, aquicultura e outros setores da economia do oceano, no combate à poluição marinha, na gestão integrada dos recursos marinhos e costeiros, etc.

Em 2017, o Grupo Banco Mundial elaborou, conjuntamente com o Departamento de Assuntos Económicos e Sociais das Nações Unidas (UN DESA), um relatório sobre a Economia Azul, “The Potential of the Blue Economy Increasing Long-term Benefits of the Sustainable Use of Marine Resources for Small Island Developing States and Coastal Least Developed Countries”. O relatório apresenta recomendações para a ação, gerais e dirigidas aos pequenos países insulares em desenvolvimento (SIDS) e aos países costeiros menos desenvolvidos (CLDC): •

Recomendações aplicáveis a todos os países: devem levar em conta nas suas tomadas de decisão a contribuição do capital oceânico natural83

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83 Os membros do Painel do Oceano são a Austrália, Canada, Chile, Fiji, Gana, Indonésia, Jamaica, Japão, Quénia, México, Namíbia, Noruega, Palau e Portugal, para além do enviado especial do secretário-geral da ONU para os Oceanos. Metas de Desenvolvimento Sustentável 2030. Os temas são: Commonwealth Clean Ocean Alliance (aliança lançada em Abril de 2018 por 5 países desta comunidade para combater a poluição marinha, fundamentalmente a derivada dos plásticos); Proteção e restauração de recifes de coral; Meios de subsistência e ecossistemas de manguezais; Áreas marinhas protegidas; Acidificação dos oceanos; Mudanças climáticas e oceânicas; Observação do oceano; Aquicultura sustentável; Economia azul sustentável; e Pesca costeira sustentável. Memorandum of Understanding (Memo de Entendimento). Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, agência que visa combater a fome e erradicar a pobreza no mundo. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), da ONU, o qual visa o desenvolvimento e a erradicação da pobreza no mundo. Vd. “Report On The Global Sustainable Blue Economy Conference, 26Th – 28th November 2018, Nairobi, Kenya”.

A Nairobi Statement of Intent on Advancing a Sustainable Blue Economy contém declarações políticas visando: promover estratégias globais viradas para a ação; parcerias em projetos sustentáveis nos setores da Economia Azul; financiamento, acesso a tecnologias, inovação, partilha das melhores práticas e qualificação de recursos humanos; integração da pesquisa e inovação na tomada de decisão política; e cooperação interministerial e internacional na área da governação dos oceanos e da Economia Azul. Atualmente, os doadores são o Canada, a Dinamarca, a União Europeia, a França, a Alemanha, Islândia, Noruega, Suécia e EUA. O capital oceânico natural ou capital natural azul é o stock de todos os ativos naturais marinhos e costeiros (praias, mares e oceanos) que proporcionam uma série de benefícios, denominados serviços dos ecossistemas marinhos e costeiros. Exemplos de serviços de ecossistemas marinhos e costeiros menos percetíveis são a produção de oxigénio, a moderação da temperatura e o sequestro de dióxido de carbono da atmosfera e a sua absorção pelos plânctons. Exemplos de benefícios mais percebidos são os alimentos marinhos, os recursos naturais renováveis para produção de energia, os combustíveis fósseis, os recursos farmacológicos, a possibilidade de realizar as atividades desportivas, turísticas ou de aventura (e.g. surf, vela, mergulho, jet sky, snorkeling, observação de aves marinhas) ou uma vista para o bater das ondas à beira-mar.

para o bem-estar; devem estabelecer prioridades nos investimentos em cada setor da Economia Azul, bem como investir em e fazer uso da ciência, dos dados e da tecnologia; a cooperação internacional, global e regional, é muito importante para a antecipação das alterações climáticas, da governação dos oceanos e para a aplicação da UNCLOS; e o setor privado deve estar envolvido na Economia Azul, a par de novos instrumentos financeiros especialmente vocacionados para apoiar projetos estruturantes de elevados montantes de investimento (e.g. as “obrigações azuis84”); Recomendações mais estritamente dirigidas aos países SIDS e CLDC, os quais devem ainda: desenvolver um ordenamento espacial marinho e costeiro, para guiar a decisão política no que concerne à Economia Azul; prover a inclusão e participação ativa de todos os grupos sociais e aprender com as tradições e cultura das comunidades locais e povos indígenas; e desenvolver parcerias para apoiar os esforços nas indústrias emergentes.

Muitos países, nomeadamente os SIDS e CLDC, não sabem como atacar o problema de transformar uma economia do oceano insustentável numa Economia Azul inclusiva e participada. No início de 2019, a UE e o Banco Mundial lançaram o Quadro de Desenvolvimento da Economia Azul (BEDF85), o qual visa fornecer ferramentas e assistência técnica aos países em desenvolvimento, com vista a um diagnóstico ambiental, económico e social da Economia Azul que permita elaborar roteiros nacionais para o estabelecimento de economias do oceano sustentáveis. O BEDF começou com três projetospiloto, na Índia, Vietnam e Quiribati.

Conclusão

Em suma, uma economia do oceano que representa um VAB mundial de 1.837 mil milhões de USD86, a par de práticas e atividades humanas que deixam um lastro insustentável através de poluição marítima, destruição de ecossistemas, extinção potencial de espécies, destruição de recifes de coral, sobrepesca e pesca ilegal e não registada, do excesso de produção de gazes para a atmosfera que exacerbam o necessário efeito de estufa, levaram a consciência universal neste milénio para três realidades: 1. a importância da economia do oceano no crescimento económico e no emprego, hoje e no futuro; 2. a destruição do oceano e a necessidade de inverter ou acabar com as práticas insustentáveis; 3. a necessidade de compatibilizar economia e crescimento com o ambiente, praticando a Economia

Azul.

A ONU, UE, EUA, China, Canadá, Japão, Austrália, Noruega, Portugal e tantos outros países têm, na última década, promovido debates, encetado políticas e desencadeado a governação internacional dos oceanos. Com a sabedoria que não nos deixa adormecer, inúmeras ONG’s, associações, instituições, empresas e homens de negócio, cientistas, jornalistas e estudiosos têm continuamente alertado para a necessidade de fazer mais e no concreto pela Economia Azul. Na Década do Oceano que irá até 2030, a partilha da ciência e a sua integração nas atividades económicas será um must para a concretização da meta 14 das Metas de Desenvolvimento Sustentável 2030.

Aos Estados cabe a responsabilidade de gerir as suas zonas económicas exclusivas (ZEE) com afinco e responsabilidade, retirando delas todo o potencial sustentável, criando emprego e fomentando o crescimento. Às instituições financeiras incumbe assumir e cumprir os Princípios Financeiros de Economia Azul Sustentável, financiando os megaprojetos infraestruturais mais sustentáveis e eficientes, mas, também, os projetos na área da ciência e inovação, as start-ups das indústrias marinhas emergentes e as PME’s das indústrias tradicionais, no seu esforço de reconversão. Aos municípios e entidades públicas responsáveis pela gestão das áreas costeiras cabe reconstruir, zelar e proteger as áreas costeiras, fomentando a pequena pesca e a atividade recreativa e turística sustentável, sensibilizando as populações para o esforço coletivo necessário, com a convicção de que o que se der ao oceano, ele retribuirá em dobro. Às empresas dos setores da economia do oceano cabe introduzir no seu sistema de gestão e nos seus processos internos procedimentos e tecnologias condizentes com a sustentabilidade do oceano e das zonas costeiras. Às ONG’s, universidades, institutos, comunicação social, influenciadores nas redes sociais e a todas as pessoas em geral cabe atuar com a consciência de que “Desenvolver a Economia Azul é cuidar da sobrevivência da Humanidade”.

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86 The Blue Bonds. Blue Economy Development Framework (BEDF). Extrapolação do autor para 2018, atendendo ao peso da economia do oceano no total do VAB da economia, em 2010, que foi de 2,5%, segundo a OCDE.

Macau e Hong Kong – Terá futuro o “elevado grau de autonomia”?

Fernando Lima Autor de “Macau – Um Diálogo de Sucesso” – Edição do Instituto Internacional de Macau

O ritual da passagem de testemunho em Macau em 20 de Dezembro de 2019 manteve-se igual à solenidade que caracteriza estes momentos. O que poderia ser diferente eram as palavras. No discurso que pronunciou na ocasião, o Presidente Xi Jinping considerou Macau um exemplo de sucesso da aplicação do princípio “Um País, Dois Sistemas” mas, ao mesmo tempo, lembrou que “Um País” era a premissa e pré-condição para os “Dois Sistemas”. O Presidente chinês não queria que existissem dúvidas sobre o que “Um País” é e o que os “Dois Sistemas” deverão ser. Ao longo do seu discurso, percebeu-se que Macau não era o principal destinatário de algumas mensagens subliminares que tinha para transmitir.

Xi destacou especialmente que nos últimos 20 anos Macau tem conse-

O novo Chefe do Executivo de Macau, Ho Iat Seng, faz o juramento de posse perante o Presidente Xi Jinping. Foto: Gabinete de Comunicação Social de Macau.

guido estabelecer uma ordem constitucional sólida, baseada na Constituição da República e na Lei Básica, bem como um sistema de governação cada vez mais aperfeiçoado. Do mesmo modo, assinalou que o desenvolvimento da economia de Macau deu um enorme salto e a vida dos residentes registou melhorias sucessivas; a sociedade em Macau tem mantido a estabilidade e a harmonia como, também, as diferentes culturas se inspiram mutuamente. Incentivou assim o território a seguir na direcção correcta, a defender “esclarecidamente” a ordem constitucional e a garantir que a prática não seja adulterada ou desviada. Advertiu, porém, que o princípio vigente nos dois territórios “apenas pode ser duradouro quando garantimos que não é distorcido”.

Uma vez que a China sustenta que os protestos em Hong Kong eram fomentados por potências estrangeiras, Xi Jinping foi categórico ao afirmar que o tratamento dos assuntos das duas regiões administrativas especiais é de carácter interno da China. Por isso, disse ser intolerável qualquer interferência nos seus assuntos. E vincou de seguida: “O Governo e o Povo chineses estão firmes como uma rocha na sua determinação em defender a soberania, a segurança e os interesses do desenvolvimento do País”. Recorde-se que Pequim acusa os manifestantes de Hong Kong de questionarem a soberania chinesa no território.

Outra tecla que o Presidente chinês quis tocar foi a do patriotismo. Com efeito, muito preocupa a hierarquia chinesa o desapego de parte da população de Hong Kong em relação à Mãe-Pátria e, por isso, Macau foi apontado como exemplo. “Os compatriotas de Macau têm uma tradição de patriotismo. Têm considerado os temas na base do interesse da Nação e de Macau. As autoridades têm sido constituídas apenas por patriotas. A educação patriótica tem sido implementada nos vários tipos de escolas e o sentido de identidade nacional tem criado raízes nos corações dos jovens”, enfatizou Xi Jinping. Na véspera, num banquete com personalidades do território, já tinha sublinhado que “a unidade faz prosperar a família e a harmonia traz boa sorte”.

Novo Chefe do Executivo em Macau

A designação do novo Chefe do Executivo de Macau foi um processo que correu em paralelo com a crise de Hong Kong. O calendário político estava estabelecido e havia apenas que cumpri-lo, como veio a acontecer, sem o receio de contaminação provocada pela forte efervescência da região vizinha. Sem perda de tempo, as etapas seguintes de Ho Iat Seng, o líder escolhido, decorreram em Pequim, não só para oficialização da sua nomeação pelo poder central mas, também, para as audiências protocolares com o Presidente da República e o Primeiro-Ministro.

O Presidente Xi Jinping exortou Ho Iat Seng a liderar o Governo de Macau e a população da RAEM num esforço conjunto para, pensando no futuro, reformar e inovar a economia local. Simultaneamente, pediu-lhe que continue a pôr em prática, “de forma bem sucedida”, o princípio “Um País, Dois Sistemas”. Nesse sentido, afirmou que o sucesso do princípio “Um País, Dois Sistemas” em Macau tem mostrado que é exequível e popular junto da sociedade. De igual modo, o Primeiro-Ministro Li Keqiang destacou a harmonia social e a estabilidade em Macau, assim como o sentimento de confiança e de cooperação com o interior da China. Prometeu ainda que as pessoas de Macau e o respectivo Governo continuariam a beneficiar de todo o apoio das autoridades centrais e do País.

Das afirmações dos dois altos responsáveis chineses podia deduzir-se que, nos elogios a Macau, estava im-

Ho Iat Seng é cumprimentado por Xi Jinping, cumprida a formalidade da posse. Foto: Gabinete de Comunicação Social de Macau.

plícita a comparação com Hong Kong, onde a sociedade, no que considera ser a defesa da sua autonomia, tem resistido a tentativas de alteração orientadas por Pequim em áreas sensíveis, nomeadamente em matérias relacionadas com a segurança nacional e o ensino. Para acentuar o contraste entre as duas regiões, a agência noticiosa China News Service publicou, na ocasião, um artigo em que explicava as razões do sucesso da RAEM e o facto de se manter ali a tranquilidade. No mesmo texto, eram ainda recordadas declarações de um académico da Universidade de Macau, Eilo W. Y. Yu, em que sustentava que um forte sentimento pró-Pequim na RAEM tem contribuído para a harmonia das relações entre as duas partes.

Em idêntico contexto, Gao Zhikai, que serviu como intérprete de Deng Xiaoping e é actualmente um dos mais conhecidos comentadores da televisão chinesa, realçou à agência Lusa que, “para o Governo Central e para as 1,4 mil milhões de pessoas no continente chinês, Macau tem sido um exemplo de grande sucesso da fórmula ‘Um País, Dois Sistemas’”. Acrescentou ainda que a China vê como “positiva” a manutenção da herança portuguesa em Macau e recordou a diferença em relação à política da Índia para com a região de Goa, “onde a influência portuguesa foi eliminada após a integração”. “A China e o povo chinês não têm qualquer problema em manter a herança portuguesa em Macau”, sublinhou Gao Zhikai.

Tendo como base a nomeação do novo Chefe do Executivo Ho Iat Seng, esta avaliação da situação em Macau, justificada também por se iniciar um novo ciclo de dez anos sob a soberania chinesa, acabou por coincidir com os efeitos da crise de Hong Kong. Nessa medida, as notí-

Ho Iat Seng profere o seu primeiro discurso como Chefe do Executivo de Macau. Foto: Gabinete de Comunicação Social de Macau.

cias sobre Macau levaram inevitavelmente os analistas de Hong Kong a comparações. Na sua opinião, a boa vontade de Macau para se integrar na Mãe-Pátria tem obviamente mais valor para a China do que a desordem social e política que nessa altura afectava Hong Kong e desafiava a autoridade de Pequim. Macau constituía, pois, o modelo que Pequim gostaria que fosse seguido em Hong Kong.

Podemos encontrar uma explicação na demografia. Em 2016, 43,6% da população de Macau nasceu no continente, pelo que a relação com a China é um acto normal nas suas vidas. Com Hong Kong, a situação é bem diferente: cerca de 80% dos habitantes nasceu no território e a sua atitude para com a China tem sido pautada pelo imenso défice de identidade nacional. O solo é chinês mas o sentimento local é de grande apego ao que Hong Kong para eles sempre representou, valorizando assim o que o segundo sistema lhes tem proporcionado desde 1997: elevado grau de autonomia, em consonância com as regras definidas na Declaração Conjunta Sino-Britânica.

O impacto da crise de Hong Kong

No entanto, a crise em Hong Kong fez pensar que 2047, ano em que cessa o período de vigência da Declaração Conjunta Sino-Britânica, já não está tão distante como podia parecer. O que aconteceu com tão prolongada turbulência levou a que se colocassem imediatamente tantas interrogações sobre o futuro do território e da autonomia política, judicial e administrativa consagrada naquele compromisso entre a China e a Grã-Bretanha. Passaram praticamente 36 anos da sua assinatura em Pequim, mas têm perdurado questões que o tempo que resta para 2047 ajudará certamente a clarificar.

O comportamento da China em relação às regiões administrativas especiais de Hong Kong e Macau, duas realidades distintas, continuará sempre a ser a grande questão nesta equação. Como assimilar plena-

O Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, elogia Macau como exemplo de sucesso da aplicação do princípio “Um País, Dois Sistemas”. Foto: Gabinete de Comunicação Social de Macau.

mente no seu seio dois “corpos” que estiveram sob influência de administrações estrangeiras com valores, culturas e hábitos distintos tem constituído, objectivamente, um desafio permanente para a liderança chinesa em Pequim. Por isso, é caso para perguntar: o espírito “Um País, Dois Sistemas” sobreviverá aos cinquenta anos de vigência da Declaração Conjunta?

Quando a China iniciou negociações para a transferência dos dois territórios, primeiro, com a Grã-Bretanha e, depois, com Portugal, estava ciente que deveria transmitir confiança às gentes de Hong Kong e Macau. Recorde-se que, naquela altura, a colónia britânica representava à volta de 50% do PIB chinês. Assim, ficou estabelecido que gozariam de um alto grau de autonomia política, judicial e administrativa; seriam governados por habitantes locais e os sistemas social e económico permaneceriam inalterados, em conformidade com o princípio “Um País, Dois Sistemas”, bem como a respectiva maneira de viver. As leis em vigor manter-se-iam basicamente inalteradas.

Todavia, chegado o momento de se consumar a transferência de administração e cabendo à autoridade máxima do Estado chinês recebê-la, a partir daí ninguém ficou com dúvidas sobre onde residiria o poder. Ditas as palavras de circunstância com a pompa habitual, ficava para a posteridade a expectativa quanto ao modo como Pequim iria lidar com duas novas realidades moldadas em grande medida por leis que não eram as suas. Conforme estava estipulado na Declaração Conjunta, as relações externas e a defesa eram da competência do Governo central mas ninguém acreditaria que o principal foco da sua atenção não fosse a situação interna nas duas regiões administrativas especiais.

A verdade é que, sem a aprovação da liderança em Pequim, nenhuma importante decisão política pode ali ser tomada, nenhum chefe do Executivo pode ser escolhido, nenhuma mudança no dispositivo governamental pode efectuar-se. Eram as regras chinesas e, assim sendo, era preciso construir uma nova ordem política com a marca da China. Como a transferência da administração em Hong Kong ocorreu dois anos antes de Macau, obviamente a prioridade foi dada à antiga colónia britânica. No entanto, outras razões fortes justificavam que os dirigentes chineses se apressassem em relação a Hong Kong. Discordavam de reformas introduzidas pelo último governador Chris Patten, especialmente a democratização do processo eleitoral e a valorização das leis do Estado de Direito.

Os trágicos acontecimentos de 4 de Junho de 1989 na Praça de Tiananmen tiveram um grande impacto em Hong Kong, desencadeando a mobilização no território de um milhão de pessoas em solidariedade com as vítimas da intervenção militar. Com efeito, atónitas com o que se passara em Pequim, fez-lhes despertar o receio sobre o futuro. Tudo o que acontecera em Tiananmen era demasiado contundente para não deixar de lhes causar viva impressão. Na altura, os líderes em Pequim não disfarçaram inclusivamente a sua irritação com a reacção dos habitantes de Hong Kong e endureceram a sua posição nas negociações com o Governo britânico do território para conter as suas intenções, ao arrepio da vontade chinesa.

A oito anos do regresso de Hong Kong à soberania chinesa, ambas as partes tiveram, porém, de fazer um esforço de entendimento para que o período de transição pudesse readquirir a necessária normalidade. Num gesto de apaziguamento, o conselheiro político do Governo de Hong Kong, William Ehrman, escreveu em Outubro de 1989 uma carta à Agência Xinhua a dizer que “o Governo de Hong Kong não permitirá

que o território de Hong Kong seja utilizado como base para actividades subversivas contra a República Popular da China”. A causa próxima para o gesto daquele conselheiro fora o comportamento de um grupo radical trotskista anti-Pequim que acabou detido.

Em Fevereiro de 1990, a China conseguia, sem a oposição do Governo britânico, que fossem introduzidas duas novas cláusulas na Lei Básica da futura Região Administrativa Especial de Hong Kong relativamente à subversão e internacionalização. Uma das cláusulas (Artigo 23) requeria que se aprovasse legislação que proibisse actividades subversivas contra o Governo central. A par dessa, a outra estipulava a proibição de actividades políticas de organizações internacionais e grupos no território, bem como de grupos políticos locais de estabelecer ligações com organizações políticas internacionais ou grupos. Seis anos após a passagem da administração, ou seja em 2003, o novo Governo chinês de Hong Kong propunha uma lei anti-subversão intitulada “Artigo 23 da Lei Básica de Hong Kong”. A reacção no território não se fez esperar. Muitos recearam que a proposta limitasse a liberdade de imprensa, religião e associação e, como a iniciativa surgiu num momento de impopularidade do Chefe do Executivo Tung Chee-Hwa, devido à insatisfação motivada pela fortíssima recessão económica, um milhão de manifestantes mobilizouse no dia 1 de Julho de 2003 em protesto contra o Governo. A proposta viria a cair, depois de vários deputados pró-Governo terem retirado o seu apoio. Em 10 de Março de 2005, Tung Chee-Hwa resignava.

Voltaram os receios

Sabemos que na China, perante obstáculos ocasionais, nunca se desiste dos assuntos que são estruturantes na vida do país e, nesse sentido, a preservação da segurança nacional é um dos objectivos permanentes que, de acordo com o funcionamento do regime chinês, requer leis apropriadas e concentração de meios adequados. Por isso, dezasseis anos após a tentativa falhada de impor a lei anti-subversão, a Chefe do Executivo Carrie Lam avançou em Maio de 2019 com um projecto de lei de extradição para a China aplicável não apenas a fugitivos chineses do Continente, mas também a todos os cidadãos normais de Hong Kong, e ainda a estrangeiros residindo temporariamente na cidade ou que a visitem.

Voltaram os receios que fazem com que os cidadãos de Hong Kong se sintam vulneráveis em períodos críticos. Como habitualmente, a resposta foi ocupar o espaço público com gigantescas mobilizações. Assim sucedeu com um milhão de pes-

Cerimónia de posse do V Governo da Região Administrativa Especial de Macau e do renovado Conselho Executivo. Foto: Gabinete de Comunicação Social de Macau.

soas a 9 de Junho e dois milhões uma semana mais tarde. No auge da crise, não faltaram enfrentamentos violentos entre as forças policiais e manifestantes. Uma vez que a situação chegou a parecer estar fora de controlo, temeu-se que Pequim ordenasse a intervenção dos militares. Vários sinais foram emitidos nesse sentido, nomeadamente através de vídeos intimidantes com imagens de tropas em exercícios na zona de Shenzhen, mas tal nunca se concretizou.

A pressão popular adquirira dimensões tão inquietantes que a 15 de Junho Carrie Lam comunicava, depois de apresentar um pedido de desculpas, que o projecto de lei estava suspenso para, pouco depois, reiterar que “a lei estava morta” e que “todo o trabalho legislativo tinha parado completamente”. O recuo oficial não desmobilizou os que contestavam a medida. Pelo contrário, os manifestantes exigiam um cancelamento formal desta legislação, dado que temiam que o projeto de lei voltasse a ser recuperado e, como esse cancelamento não aconteceu, multiplicaram-se os confrontos com as forças policiais.

A inopinada ocupação do aeroporto internacional de Chek Lap Kok deu azo a cenas caóticas como nunca se tinha visto. A situação tornara-se muito perigosa e não havia volta a dar. Em 4 de Setembro, Carrie Lam anunciava que cancelara formalmente o projecto de lei de extradição, cedendo assim a uma das principais exigências dos manifestantes pró-democracia. Obviamente, só o fez após receber luz verde do poder central. O primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, declarou depois que Pequim apoiava os esforços do Governo de Hong Kong para pôr fim à violência e ao caos, de acordo com a lei. Quando os observadores procuraram tirar ilações, em cima dos acontecimentos, sobre os efeitos da crise no futuro de Hong Kong, uma questão destacava-se: com a erosão que estava a sofrer, como resistirá no tempo o princípio “Um País, Dois Sistemas”, tido por garante do “elevado grau de autonomia”? Muito provavelmente, em Pequim não se pensa o mesmo que em Hong Kong e daí os perceptíveis choques entre o modo de vida no território, que se identifica com os valores ocidentais, em que contam essencialmente os direitos, liberdades e garantias, e um sistema cujo poder é exercido de forma vertical, protegendo-se com a rigidez que se lhe conhece contra quem dele desconfia.

Ainda faltam mais de duas décadas para o fim do período de vigência da Declaração Conjunta Sino-Britânica, pelo que é impossível antecipar o que acontecerá até 2047.

Além do mais, os decisores em Pequim serão certamente outros nessa altura, o que não é despiciendo em relação às opções que vierem a ser tomadas. Veremos se a China saberá esperar pacientemente por 2047. Por agora, a sociedade de Hong Kong está fracturada e, neste contexto, importa referir que era jovem a grande maioria dos opositores ao projecto de lei. “São eles os mais preocupados com o que será do futuro de Hong Kong sob maior influência e poder da China”, comentava Alexandre Uehara, académico e colunista da imprensa asiática.

O problema das lideranças

Nas crises vividas por Hong Kong desde a sua passagem para a China, a actuação das lideranças do território tem estado sempre em causa. Começou com o primeiro Chefe do Executivo, Tung Chee-Hwa, um empresário da indústria naval. A incapacidade política para lidar com a recessão económica e a epidemia da chamada gripe das aves tornou-o uma figura impopular, situação ainda agravada pela tentativa falhada de implementação de uma lei anti-subversão. Demitiu-se dois anos antes de completar o segundo mandato. Sucedeu-lhe Donald Tsang, um burocrata da administração pública, que foi depois reconfirmado em 2007 para o mandato seguinte. Prometeu empenhar-se para que Hong Kong tivesse uma democracia plena mas Pequim não lhe permitiu a concretização desse intento. Saiu chamuscado por um processo movido pela Comissão Independente Contra a Corrupção (ICAC).

Leung Chun-Ying, quem lhe sucedeu, cumpriu o seu primeiro mandato de 2012-2017 mas não se recandidatou. Era visto como demasiado próximo de Pequim. As manifestações pró-democracia em 2014, maioritariamente de jovens e conhecidas por “Occupy Central” ou “Revolução dos Guarda-chuvas”, causaram a Leung CY enorme desgaste. Na origem da contestação esteve a decisão de limitar a um colégio eleitoral a escolha para o chefe do Executivo em 2017, em detrimento do sufrágio universal. Como Pequim não cedeu, deixou de ter condições para se manter no cargo. Alegou razões familiares para se afastar. Na altura, o colunista do South China Morning Post, Alex Lo, escreveu: “A luta pela democracia converteu-se num desafio directo à autoridade do Governo central. Isto coloca-nos ao mesmo tempo numa rota de colisão e perante uma situação de que resulta difícil adivinhar um final feliz”.

Carrie Lam, a Chefe do Executivo escolhida em 2017, também um alto

quadro da administração pública, não deu, por seu lado, qualquer sinal de estar receptiva aos anseios dos cidadãos de Hong Kong. Por isso, seria acusada de inépcia política na gestão da crise quando, em vez de seguir os procedimentos habituais, tentou apressar no órgão legislativo a aprovação do projecto de lei da extradição. Isso foi o suficiente para despoletar o sentido de urgência dos que queriam travar a sua concretização. Possivelmente, esperaria que, com uma resposta musculada das forças policiais, conseguiria controlar a situação e levar por diante os seus intentos. Assim não aconteceu e, com o endurecimento das acções dos que a contestavam, teve, no limite, de ceder e retirar formalmente a legislação.

O académico Steve Tsang escreveu, a propósito da crise, que “a China deveria reconhecer que o seu processo para a selecção do chefe do Executivo de Hong Kong é profundamente deficiente”. É uma interpretação plausível, quando se olha para os desfechos das prestações dos chefes do Executivo. A opção seguida tem sido a de privilegiar na escolha a fidelidade ao regime chinês para facilitar uma mais eficaz integração do território na Mãe-Pátria, dentro de um quadro bem definido e rígido. Mas as várias lutas da sociedade de Hong Kong já mostraram que é também necessária aptidão política para gerir as crises e restabelecer a confiança.

“Desafios e riscos”

Não obstante ter-se remetido a alguma contenção em plena crise da antiga colónia britânica, a liderança chinesa não evitou pronunciar-se sobre os “desafios e riscos” que a China terá de enfrentar. Nos primeiros dias de Setembro, Xi Jinping falou na Escola Central do Partido para futuros dirigentes. Depois de afirmar que “não faltarão grandes lutas”, apontou, entre muitas outras, “os assuntos de Macau, Hong Kong e Taiwan”. Ressaltando que “a luta é um tipo de arte” e que os dirigentes devem “saber como dominar bem a arte da luta”, Xi deixou a seguinte mensagem: “Em todas as grandes lutas devemos persistir no reforço da nossa preparação para os acontecimentos inesperados, mantendo um foco estratégico, a concentração e a união à volta das decisões tácticas e dos julgamentos estratégicos”.

Na verdade, nesta crise de Hong Kong a paciência de Pequim foi testada até ao limite. Porém, para que a sua atitude de contenção fosse entendida, avisou que a sua tolerância em relação aos protestos não devia ser vista como um sinal de fraqueza. Confiava, pois, que o governo local e a polícia fossem capazes de controlar a situação. Apesar de pressionada, Carrie Lam alegou, num primeiro momento, que evitou invocar os poderes de emergência não só para não causar mais estragos à reputação de Hong Kong mas, também, para não lançar mais achas para a fogueira. Havia que esperar que a intensidade da conflitualidade fosse diminuindo, mas tal não significava rendição.

Entretanto, ao regressar de Pequim, onde assistira no dia 1 de Outubro às cerimónias comemorativas do 70º aniversário da fundação da República Popular, deparou-se-lhe em Hong Kong uma conflitualidade agravada. Imediatamente cresceram as pressões dos elementos pró-Pequim para que declarasse o estado de emergência. Porém, apoiandose numa lei do tempo colonial britânico não aplicada há mais de 50 anos, Carrie Lam anunciou a proibição do uso de máscaras pelos manifestantes, utilizadas com a dupla função de se protegerem do gás lacrimogéneo lançado pela polícia e de evitarem ser identificados pelas autoridades. Em desobediência à decisão do Governo, horas depois a violência recrudesceu, gerando o caos no território. O elevado nível de desafectação local em relação ao regime chinês, sobretudo na camada jovem, foi determinante nas mobilizações.

Apelo ao reforço das “forças patrióticas”

Daí o Presidente Xi Jinping ter reconhecido, dez dias antes das comemorações do 70º aniversário, ser necessário o reforço das “forças patrióticas” nas regiões administrativas especiais no apoio aos seus Governos. Numa reunião da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), apelou aos representantes de Hong Kong e Macau nesse órgão para desenvolverem e intensificarem “as forças de amor à Pátria”. Assumindo de imediato que o impacto da questão de Hong Kong colocava grandes desafios à prática do princípio “Um País, Dois Sistemas”, Edmund Ho seguiu o apelo do Presidente chinês e considerou que era preciso fazer bem os trabalhos de sensibilização dos jovens para o patriotismo.

Se houve algo que a crise de Hong Kong também tornou evidente foi a falta de ligação entre governantes e a população, queixosa da lentidão na resposta às suas necessidades. À cabeça das dificuldades está a falta de habitação a preços acessíveis, sobretudo para os jovens. Curiosamente, na imprensa oficial de Pequim, chegou-se a admitir que a crise de habitação em Hong Kong podia constituir o principal motivo dos violentos protestos anti-governamentais. De qualquer modo, com

Foi uma cerimónia muito concorrida a posse do novo Governo de Macau e Conselho Executivo. Foto: Gabinete de Comunicação Social de Macau.

a situação social bloqueada, pela persistência das manifestações, restou a Carrie Lam, num aparente atitude de boa vontade, abrir o diálogo com a população para tentar acabar com a conflitualidade.

As suas explicações não conseguiram demover os que a contestavam. Depois de ter acedido a eliminar a lei da extradição, não estava em condições de ceder às outras quatro exigências dos contestatários, a saber: a instauração de um inquérito independente à acção policial nas manifestações, a libertação de activistas detidos, mais liberdades democráticas para Hong Kong e a demissão da própria Chefe do Executivo. Nos dias seguintes ao seu primeiro encontro com cidadãos, os tumultos continuaram e tudo se mantinha igual. O prometido diálogo não se repetiu.

O que começou como um protesto contra a proposta de lei da extradição transformou-se num movimento pela democracia contra o que tem sido encarado como o aumento da influência de Pequim em Hong Kong, com vista ao controlo de todas as actividades, à semelhança do que sucede no resto do território chinês. Os manifestantes sustentavam que o princípio “Um País, Dois Sistemas” não é cumprido e exigem liberdade de manifestação e eleições democráticas. O Governo de Pequim respondia dizendo que as acusações eram infundadas, ao mesmo tempo que acusava governos estrangeiros de estarem a alimentar o protesto e os sentimentos anti-China no território. Mais uma vez, a China nunca se desvia do que considera essencial no funcionamento do regime.

Sequelas que deixam marcas

A prolongada crise em Hong Kong deixou sequelas que não se repercutiram apenas no território. A leitura política em Taiwan relacionada com os acontecimentos de Hong Kong não foi certamente aquela que mais convinha a Pequim. A Presidente Tsai-Ing-wen foi taxativa na sua análise: “Taiwan não teria espaço para sobreviver se aceitasse a fórmula ‘Um País, Dois Sistemas’. Rejeitar a fórmula é o maior consenso entre os 23 milhões de habitantes de Taiwan, independentemente da filiação partidária ou posição política”. Enquanto a memória perdurar, vão manter-se as diferenças e as desconfianças.

Em Macau, assumiu-se logo uma atitude de precaução para prevenir qualquer contágio. Não foi por acaso que, no seguimento de uma deslocação a Pequim, o novo Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, divulgou no território uma nota oficial em que se afirmava que “Macau tem de ficar imune a perturbações por ser uma cidade turística e, como tem por principal fonte de receitas o sector do turismo e do jogo, é necessário

salvaguardar o bem-estar dos cidadãos”. Nesse sentido, agiu-se de imediato face a actos que as autoridades percepcionaram como ameaça. Houve quem visse nesse modo de agir uma “reacção exagerada”, contrária ao que estabelece a Lei Básica quanto a direitos, liberdades e garantias. No entanto, para os novos responsáveis, Macau deve iniciar a nova década numa linha de continuidade de manutenção da estabilidade social no território. Esta era também a garantia que davam ao Governo central.

As sequelas em Hong Kong são profundas e, possivelmente, irreparáveis. Os protestos continuados devoraram os seus jovens, como escreveu Yonden Lhatoo, colunista do South China Morning Post. “É o fim da inocência da nossa juventude”, ressaltou, acrescentando: “O que observamos é uma geração com o coração cheio de ódio, mente radicalizada e sangue nas mãos.“ Segundo foi revelado pelo Governo de Hong Kong, um terço dos manifestantes detidos em Junho de 2019 tinha menos de 18 anos. Na altura, estes dados foram considerados “chocantes” pelo porta-voz do Governo que pediu aos pais e professores que apelassem aos jovens “para que não participassem em nenhum acto ilegal ou violento”. Contudo, o apelo não foi seguido. Em declarações no início de Dezembro, o novo chefe da Polícia de Hong Kong, Chris Tang, dava a conhecer que, no total do número de manifestantes detidos desde Setembro do mesmo ano, 43% eram estudantes, comparado com os 25% entre Junho e Agosto.

A par disso, acentuou-se, e de que maneira, a animosidade dos “Hongkongers” para com os “Mainlanders” que se fixaram em Hong Kong. Ela já era latente com o crescente fluxo, após 1997, de cidadãos chineses continentais, a quem res-

O Presidente Xi Jinping cumprimenta os membros empossados do Governo de Macau e do Conselho Executivo. Foto: Gabinete de Comunicação Social de Macau.

ponsabilizam pelo aumento do custo de vida, nomeadamente dos preços da habitação, que se tornaram proibitivos. Na crise gerada pela proposta de lei da extradição, o sentimento anti-China manifestou-se especialmente nas acções contra cidadãos que se exprimiam em mandarim, por suspeita da sua ligação à Mãe-Pátria. Também nos actos violentos ocorridos foram atacadas lojas de chineses supostamente originários da China Continental. A explicação para estas situações de confronto continuava a ser encontrada no insolúvel problema de identidade nacional de grande parte da população de Hong Kong desde longa data.

Resultado eleitoral histórico

O fim da crise tem sido o mais difícil de conseguir. E uma crise mal resolvida deixa sempre feridas. Na véspera de Carrie Lam fazer o discurso anual no Conselho Legislativo, em Outubro de 2019, o diário South China Morning Post alertou em editorial que, “sem uma solução política, é difícil ver como e quando as perturbações que afectam Hong Kong chegarão ao fim”. Boicotada pelos deputados pró-democracia, Carrie Lam viu-se forçada a abandonar o hemiciclo. Dirigiu-se depois àquele órgão por intermédio de um vídeo. Ignorando as reivindicações da rua, procurou impressionar a população prometendo a construção de 10 mil habitações sociais em três anos com o apoio de um novo fundo de 5 mil milhões dólares de Hong Kong. Ceder às exigências dos manifestantes seria impensável para ela quando se sabe que Pequim não abdica do controlo do território à sua maneira.

Tudo o que então disse Carrie Lam desapareceu rapidamente na voragem das manifestações que se mantiveram ainda mais violentas. Pensando que contribuía para uma qualquer solução da crise, assim não sucedeu. Optou por se apagar, assim como o Governo do território, deixando que as forças de segurança, com uma intervenção plenamente musculada, tomassem conta da situação. Ao chegar-se a este ponto, Pequim fez saber que não podia haver lugar a qualquer compromisso com os contestatários, como avisou em 18 de Novembro o Diário do Povo.

“O que estamos a assistir em Hong Kong é uma luta entre a preservação de “Um País, Dois Sistemas” e a tentativa de o destruir”, escreveu o jornal. A mensagem estava dada.

No entanto, a maior surpresa surgiria a seguir: a vitória arrebatadora do campo pró-democracia nas eleições de 24 de Novembro para os conselhos distritais de Hong Kong. Foi uma clara derrota de Carrie Lam, depois de ter reclamado que tinha o apoio de uma “maioria silenciosa”, por oposição à contestação social então ao rubro no território. Na maior participação eleitoral de sempre (71%), o campo pró-democracia conquistou 87% dos votos – 389 eleitos em 452, passando assim a dominar 17 dos 18 órgãos locais. Segundo fonte do Governo central citada pelo South China Morning Post, em Pequim não se esperava tão severa derrota. Também o embaraço de Carrie Lam não podia ser maior, restando-lhe apenas aceitar os resultados. “O Governo de Hong Kong vai ouvir as opiniões dos membros do público com humildade e seriedade”, afirmou em comunicado.

Ao sublinhar que a eleição tinha sido realizada de “maneira pacífica, segura e ordenada”, Carrie Lam quis dizer também que acreditava que a grande maioria dos cidadãos compartilhava o seu desejo de que “a situação pacífica, segura e ordenada continue”. A questão, porém, estava em saber se seria capaz de entender a verdadeira mensagem do acto eleitoral: os cidadãos de Hong Kong queriam reformas políticas. Ora, duvidava-se que isso viesse a acontecer. Na opinião de Joseph Cheng, professor de Ciência Política da Universidade de Hong Kong, em comentário para o jornal inglês The Guardian, “Pequim vai continuar a adoptar uma linha dura e não vai fazer concessões – sabe que o povo de Hong Kong quer democracia, em última instância, e não lha vai dar”.

Pequim nomeia figuras de primeira linha

De facto, Carrie Lam remeteu-se ao silêncio, não obstante os apelos na imprensa do território para dar um passo em frente no sentido da distensão política e social. Assim não sucedeu e o seu antecessor, CY Leung, confirmava a desconfiança dos observadores, ao referir que os protestos em massa não moveriam a China sobre as liberdades de Hong Kong. Oito dias após o sufrágio eleitoral, a que se seguira uma semana de relativa acalmia, assistia-se ao regresso em força das manifestações, com milhares nas ruas. A insatisfação mantinha-se e, aparentemente, tudo continuava na mesma.

No entanto, a reacção de Pequim não tardou. Dois dias depois dessas manifestações, o número três da hierarquia do Partido Comunista, Li Zhanshu, a pretexto da comemoração dos 20 anos da RAEM, que enalteceu como um exemplo de sucesso do princípio “Um País, Dois Sistemas”, avisou Hong Kong que os resultados eleitorais não alterariam os planos de Pequim para as duas regiões administrativas especiais. Por isso, conforme vincou, o melhor seria dar atenção às políticas do Governo central e à Constituição da China. “As exigências do Governo central são as mesmas para Hong Kong e Macau”, acrescentou. A ausência de gestos por parte de Carrie Lam tinha justificação. A sua atitude estava em consonância com as autoridades centrais.

Antes de empossar em Macau o novo Chefe do Executivo, Xi Jinping fez questão de receber Carrie Lam em Pequim para lhe reiterar apoio pela sua firmeza na defesa de “Um País, Dois Sistemas”. Voltou a recebê-la em Macau, quando aqui esteve para as comemorações do 20º aniversário da RAEM. Não obstante os vários elogios da hierarquia chinesa a Macau pela sua exemplaridade, elogios esses mal acolhidos em Hong Kong, o Presidente chinês, ao encontrar-se com Carrie Lam em duas ocasiões, conferindo-lhe desse modo destaque, quis transmitir a ideia de tratamento igual para as duas regiões administrativas especiais, ainda que, por razões do calendário de Macau, as circunstâncias fossem diferentes naquele momento para cada uma.

Se a Carrie Lam já fora pedido em Pequim para fazer muito mais para resolver a complexa crise em Hong Kong, alguma coisa mais teria de acontecer e a iniciativa só poderia partir da hierarquia chinesa. Assim, poucos dias após o regresso do Presidente Xi, Pequim surpreendia com a inesperada designação de Luo Huining para a sua representação em Hong Kong. Com provas dadas em gestão de crises, como sucedeu em Qinghai e Shanxi, a escolha do seu nome significava o reconhecimento de que a degradada situação no território requeria um alto responsável com perfil político, cortando deste modo com a tradição de escolher burocratas especializados nos assuntos das duas regiões administrativas especiais. Luo cedo mostrou que estava incumbido de uma missão política para intervir quando fosse necessário.

Em Fevereiro, Pequim voltava a surpreender com a nomeação de Xia Baolong, um aliado de longa data de Xi Jinping e conhecido por ser um hardliner, para director do Gabinete dos Assuntos de Hong Kong e Macau junto do Conselho de Estado. Dadas as suas características políticas, a nomeação foi conside-

As autoridades de Pequim reconhecem que a situação em Hong Kong comporta “desafios e riscos” para a China.

rada pelos analistas como uma indicação clara de que o poder em Pequim tencionava exercer maior escrutínio e controlo sobre todos os aspectos da vida de Hong Kong. Antigo secretário do Partido Comunista na província de Zhejiang, tornou-se em 2018 secretário-geral da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, o principal órgão consultivo do PCC, cargo que deixou em Maio de 2020.

Sob os efeitos do Coronavírus

Macau e Hong Kong não escaparam ao impacto do Coronavírus e cada administração teve de adoptar as medidas de prevenção que julgou mais adequadas às circunstâncias de cada território. Para Ho Iat Seng, acabado de iniciar funções, permitiu-lhe uma afirmação de liderança e, segundo a imprensa de Macau, fez-lhe granjear popularidade a forma eficiente como, com a sua equipa, procurou combater a epidemia. Em Hong Kong, após meses de encarniçada luta política contra o Governo local, colocava-se uma nova situação que obrigava a medidas de rigor das autoridades para travar a propagação do vírus com origem em Wuhan. Os problemas políticos ficavam suspensos e seguia-se outro desafio à população, o de acatar decisões de protecção à sua saúde.

A tensão entre Hong Kong e o Continente reacendeu-se quando Carrie Lam, perante os temores de contágio dos Hongkongers, se viu na contingência de não só fechar a maior parte dos checkpoints fronteiriços com a China mas, também, de impor um período de quarentena de 14 dias a quem daí chegasse. Seriam apenas deixados abertos os pontos que asseguravam a passagem de alimentos e outras mercadorias indispensáveis para abastecer o território. A dependência de Macau e Hong Kong dos abastecimentos chineses ainda é um elemento determinante na relação com a Mãe-Pátria.

Nas suas constantes dificuldades para lidar com a situação em Hong Kong, a avaliar pela imprensa local, Carrie Lam alimentava a esperança de que o aparecimento do vírus e as implicações locais a ajudassem a melhorar politicamente a sua posição junto do poder central. No entanto, a mesma imprensa deu também indicações de que Pequim não estava contente com o seu trabalho no combate à epidemia, nem no resto. Tammy Tam, uma prestigiada colunista do South China Morning Post, insistia, num texto publicado em 3 de Maio, que Hong Kong precisava, mais do que nunca, de uma liderança forte, quando a China já exerce, sem rodeios, um papel activo de supervi-

Com a introdução na região da lei de segurança nacional, aprovada pelo Congresso Nacional do Povo, Hong Kong entra numa nova fase da sua vida.

são sobre o território. Provavelmente, nas actuais circunstâncias, é a situação que mais lhe convém para afirmar o seu poder de intervenção.

Na verdade, Pequim não deixou passar a oportunidade de se ter gerado um sentimento de intranquilidade no território, devido à preocupação com o vírus, para retomar a questão da lei anti-subversão constante do Artigo 23 da Lei Básica. Aproveitando o Dia da Educação para a Segurança Nacional, a 15 de Abril, Luo Huining, seu alto representante em Hong Kong, manifestava numa comunicação pública o desejo de que aqueles que “amam a China e Hong Kong” sejam capazes de chegar a um consenso para que a referida legislação venha a ser aprovada e cumprida.

“Se o formigueiro que corrói o papel do Estado de direito não for removido, o dique da segurança nacional será destruído e o bem-estar de todos os residentes de Hong Kong ficará danificado”, sublinhou ainda Luo Huining. Embora em menor escala, durante as restrições impostas pelo vírus, a agitação manteve-se com acções que desafiaram as autoridades. As palavras de Luo Huining não foram, porém, em vão. Três dias depois, ou seja, a 18 de Abril, a polícia detinha 15 proeminentes activistas pró-democracia, sob a acusação de terem organizado e participado em assembleias consideradas ilegais em 18 de Agosto e em 1 e 20 de Outubro de 2019. Foi uma operação sem precedentes.

Lei de segurança aprovada em Pequim

Na linha do endurecimento prometido, a liderança chinesa chegou à conclusão que o que não se consegue resolver em Hong Kong, resolve-se em Pequim. Contornando o Conselho Legislativo do território, praticamente paralisado, a China aprovou no Congresso Nacional do Povo, reunido em Maio na capital chinesa, uma resolução que impõe a Hong Kong uma nova lei de segurança nacional. Assim, proíbe-se “qualquer acto de traição, secessão, sedição, subversão dos poderes do Estado, terrorismo ou interferência estrangeira contra o Governo central”. Também se estipula que órgãos relevantes da segurança nacional do Governo central podem estabelecer bases em Hong Kong. A resolução aprovada será incluída no Anexo III da Lei Básica, sem necessidade de ser acompanhada de legislação local.

Segundo explicou o primeiro-ministro Li Keqiang, é intenção da China estabelecer um sistema legal sólido e mecanismos de aplicação para salvaguardar a segurança nacional em Hong Kong e, por igual, em Macau, embora este território não constitua motivo de preocupação para as autoridades centrais. Perante as reacções de grande preocupação em Hong Kong e na comunidade internacional, Carrie Lam afirmou que a imposição da nova lei não irá afectar a independência judicial ou as entidades legais de Hong Kong, acrescentando ainda que o propósito da China é resolver questões relacionadas com actividades ilegais que o Governo acredita estarem a interferir na segurança nacional. Continua, no entanto, a ser uma questão muito sensível o exercício das liberdades e direitos dos cidadãos. Para tranquilizar receios generalizados, a China, por intermédio do ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, sentiu o dever de esclarecer que a legislação em causa “não teria impacto no elevado grau de autonomia de Hong

Kong, nem nos direitos e liberdades dos residentes em Hong Kong, nem nos legítimos direitos e interesses dos investidores estrangeiros em Hong Kong”. Obviamente, nem tudo ficará igual.

Antes desta decisão drástica, constituía outro motivo de especial atenção do Governo central as eleições para o Conselho Legislativo, previstas para 6 de Setembro e adiadas por um ano, quase em cima do acto eleitoral, por decisão do Governo de Hong Kong. Certamente, não estavam esquecidos os resultados desfavoráveis das eleições para os conselhos distritais em Novembro de 2019. Para justificar a decisão, Carrie Lam, invocando poderes de emergência, alegou os riscos do coronavírus que o território ainda enfrentava. Disse ter recebido o apoio do Conselho de Estado. No entanto, os seus argumentos não convenceram meios ligados à oposição. O impacto em Hong Kong da aplicação rápida da nova lei de segurança nacional gerou tais tensões que a decisão de adiamento das eleições tem sido interpretada como mais um passo no reforço do poder de Pequim em Hong Kong.

O que esperar do futuro?

Enfim, a coincidência, no tempo, da crise política de Hong Kong com a designação do novo Chefe do Executivo de Macau acabou por proporcionar um debate sobre os anos já vividos sob a soberania chinesa e o futuro que se perspectiva. Duas regiões diferentes pela dimensão territorial e populacional, pelo passado histórico, pelas matrizes culturais, pelo potencial económico e financeiro, pelo entendimento sobre o seu posicionamento na realidade chinesa, pela interpretação que em cada uma se faz da aplicação de “Um País, Dois Sistemas”, pelo modo como cada sociedade encara a relação com a Mãe-Pátria – são várias as razões para admitir que cada qual procurará seguir o seu caminho com a vantagem das características em que se distinguem. Sendo avesso a riscos, Macau é único e não se deve pedir-lhe o que não pode dar.

O projecto integrador da Grande Baía constitui a aposta de grande fôlego da China para a criação de uma metrópole mundial com base nos territórios de Hong Kong e Macau e nove cidades da província de Guangdong. Até 2035, o Governo central pretende concretizar a integração por intermédio de políticas de educação, saúde, emprego, segurança social e facilidades de mobilidade fronteiriças. Conforme foi definido por Pequim, a cada qual, com as suas características e vocação, está atribuída uma tarefa no plano de desenvolvimento do projecto, mas, na sua condução, caberá a Shenzhen o papel de locomotiva, ao ser-lhe concedido pelo Presidente Xi, em Julho de 2019, o estatuto especial de modelo de reformas ousadas com “características chinesas”.

Macau ficará responsável por se posicionar enquanto centro mundial de turismo e lazer, bem como enquanto plataforma de serviços para a cooperação comercial entre a China e os países de língua portuguesa. Ao nível oficial e empresarial, é grande a esperança que o projecto dê um importante impulso ao desenvolvimento da economia local. E o que pode não correr bem? Durante a realização do primeiro Congresso dos Advogados de Macau, em Setembro de 2019, o seu presidente, Jorge Neto Valente, deixou o alerta: “A cooperação não pode significar a diluição de Macau e do seu sistema jurídico na Grande Baía. Só faz sentido a cooperação se Macau mantiver a sua identidade”.

O que se promete, o que pode acontecer e o que se deseja que não aconteça fazem parte das dinâmicas da vida. O futuro de Macau, após 2049, tal como o de Hong Kong após 2047, não escapará a essa lógica, sabendose que o interesse nacional chinês suplanta o princípio “Um País, Dois Sistemas”, como se viu com a aplicação da nova lei de segurança às duas regiões. Até lá, ainda falta muito tempo mas a crise de Hong Kong permitiu tirar várias e importantes conclusões. A principal é que, antes que seja tarde, esta liderança em Pequim procura já contribuir com decisões e acções que tornem irreversível o cumprimento do objectivo final: a total absorção das duas regiões, de maneira a que a supremacia da China seja exercida segundo a sua plena vontade política. Daí a pergunta óbvia: em cada uma das regiões terá futuro o “elevado grau de autonomia”?

Os cidadãos de Macau, Hong Kong e da Mãe-Pátria têm modos de vida bem diferenciados e, por isso, tem sido reafirmado pela hierarquia chinesa que o princípio “Um País, Dois Sistemas” foi instituído para honrar e proteger essas diferenças. Olhando para o que aconteceu em Hong Kong desde Maio de 2019, há outra pergunta que, obedecendo à mesma lógica, deve ser feita: podem os dois sistemas coincidir pacificamente quando a China está na ofensiva em relação à antiga colónia britânica? Pequim já respondeu dizendo que “elevado grau de autonomia”, como estipula a Lei Básica, nunca significou “total autonomia”. Em relação a Macau, ninguém duvida que dependerá sempre do interesse do Governo central querer ou não manter o território com identidade própria.

Nota do editor: Este trabalho, produzido por um qualificado e conceituado analista, é um contributo sereno e sério para uma continuada reflexão e uma melhor compreensão duma questão muito relevante para o futuro das regiões administrativas especiais, em conformidade com o princípio “Um país, dois sistemas”.

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