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As iniciativas de diplomacia desportiva na (re)entrada da China no sistema internacional

Jorge Tavares da Silva Docente convidado na Universidade de Aveiro/Mestrado em Estudos Chineses e Mestrado em Ciência Política Investigador associado na Unidade de Investigação em Governança, Competitividade e Políticas Públicas (GOVCOPP)

“Ganhar ou perder é temporário; a amizade é eterna” Ditado chinês moderno

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Introdução

Muitos autores têm olhado para o desporto como um importante meio para a compreensão entre os povos e mesmo um instrumento de paz. No entanto, não deixam de existir também múltiplos exemplos de eventos desportivos como manifestação de poder das nações, instrumentos de propagação política ao serviço de poderosas ditaduras. Os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 são o exemplo desta realidade. Entre os críticos, encontramos George Orwell, não tendo contemplações ao afirmar a competição desportiva como estando ligada ao “ódio, ciúme, vaidade”, testemunho de violência, uma “guerra sem tiros”1 . A verdade é que múltiplos são os exemplos que nos mostram como o desporto pode abrir barreiras políticas entre governos, levando a que povos desavindos interajam pacificamente entre si. Já na antiguidade clássica os eventos desportivos, par-

A visita da equipa de Ténis de Mesa (PinguePongue) americana à Grande muralha, capa da revista Time (26 de abril de 1971, Vol. 97 No. 17).

ticularmente os Jogos Olímpicos, serviram como fator de socialização e “transcenderam” as divisões políticas entre as cidades-estado. Muitas vezes foram usados como instrumentos diplomáticos na tentativa de aproximação de povos. Estamos aqui perante o que se considera de diplomacia informal, não governamental (embora, por vezes, gerido indiretamente por governos), também designada de track two2 , peopleto-people, citizens diplomacy, etc. Dificuldades de conceptualização levaram Louise Diamond e John W. McDonald a alargar as dinâmicas diplomáticas a um sistema multitrack (multinível)3 onde naturalmente se enquadram as dinâmicas desportivas, cujos objetivos vão muito “para além do jogo”4. A desconfiança, a falta de comunicação, a hostilidade das opiniões públicas e as barreiras criadas são muitas vezes quase intransponíveis5. Os governos não conseguem diretamente superar estas dificuldades, recorrendo a formas alternativas (informais) para estabelecer contactos. Neste sentido, a cultura ou o desporto podem dar um importante contributo.

Assim aconteceu na República Popular da China (RPC), quando o desporto serviu para abrir diálogos com o mundo do “bloco ocidental”, no contexto da guerra fria. Após a implantação da RPC, em 1949, os Estados Unidos abriram uma frente de não reconhecimento deste país, ficando os seus 800 milhões de habi-

ORWELL, George (1945), “The Sporting Spirit”, Tribune, 14 de dezembro, p. 10. Expressão inspirada nas primeiras conferências de Citizen Diplomacy (1981-1987), organizadas por James Hickman e Jim Garrison Cf. GARRISON, Jim et al (1989), The New Diplomats – Citizens as Ambassadors for Peace. Devon: Green Books. Cf. DIAMOND, Louise; MCDONALD, John W. (1996), Multi-Track Diplomacy: A Systems Approach to Peace. West Hartford: Kumarian Press. MURRAY, Stuart (2018), Sports Diplomacy, p. 1. BERRIDGE, G. R. (1994), Talking to the Enemy, p. 13.

tantes fora do sistema das Nações Unidas. A China comunista não tinha relações diplomáticas formais com a maior parte dos países aliados dos EUA, incluindo Portugal. Por outras palavras, em termos reais, a RPC não existia como entidade política para uma maioria de sujeitos do sistema internacional. Embora possuindo basilarmente um território, um povo e um governo soberano, faltava-lhe o reconhecimento formal6 . Os Estados Unidos tinham apenas um consulado em Hong Kong mais para assegurar interesses económicos7. Ainda assim, são possíveis de estabelecer – por vezes com a ajuda de terceiros (mediadores) – contactos ditos informais entre partes que não se reconhecem. Foi o que aconteceu entre a RPC e os Estados Unidos, iniciados secretamente em Genebra, em 1954, depois em Varsóvia, em 1958, e finalmente em Paris, em 19718. A embaixada de Varsóvia vai servir para os contactos entre as partes, interessadas em estabelecer diálogos concretos entre

Capa da revista The American Legion (outubro de 1971), numa análise à diplomacia de pingue-pongue, motivações e consequências.

os dois governos9 . Do ponto de vista governamental, até ao início da década de 1970 a China estava isolada do resto do mundo, incluindo a União Soviética. Estava fisicamente cercada por inimigos e muitos dos seus parceiros comunistas não tomam partido na cisão que se tinha aberto com Moscovo (conflito sino-soviético). O isolacionismo deveu-se, por um lado, ao contexto ideológico e revolucionário alimentado por Mao no seu território; por outro, ao ostracismo votado pelas potências ditas ocidentais ao gigante comunista10 .

A década de setenta do século passado vai trazer um novo contexto de aproximação da China aos Estados Unidos e, por sequência, aos seus aliados. Inicia-se uma vaga de iniciativas informais de reaproximação aos “velhos inimigos”, particularmente através de diplomacia desportiva. Por outras palavras, a China procurou criar um ambiente harmonioso que facilitasse os processos políticos. Na linguagem de Joseph Nye, estas não foram mais do que dinâmicas de soft power11, a capa-

MACHADO, Jónatas E.M. (2013), Direito Internacional, pp. 248-254. .MACMILLAN, Nixon and Mao, p. 105.

BERRIGE, G.R. (1994), Talking to the Enemy, pp. 79-94 .MACMILLAN, Nixon and Mao, pp. 162-174. 10. VAISSE, Maurice (1997), As Relações Internacionais desde 1945, p. 117.

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12 NYE, Joseph (2004), Soft Power, p. x. NIXON, Richard (1967), “Asia after Viet Nam”, p. 121. cidade em conseguir o que deseja – perspetiva tradicional de poder –pela via da atração, em vez da coerção. O desporto facilita os processos de socialização, eliminação de barreiras psicológicas e ajuda na representação da ideia si no outro de forma positiva.

O presente texto visa demostrar como o desporto foi um dos instrumentos utilizados informalmente pelo governo chinês para uma entrada progressiva no sistema internacional. Destacamos três casos representativos de diplomacia desportiva usados pela China, ocorridas na década de 1970. Trata-se de uma ilustração de como o desporto serviu para abrir o caminho da comunicação e contribuiu para o apaziguamento de tensões.

A Diplomacia Ping-Pong nas Relações Sino-Americanas

Um dos exemplos de diplomacia track two mais conhecidos é precisamente a “diplomacia de pingpong”, que visou uma melhoria nas relações de Pequim com Washington. No início da década de 1970 estava em andamento a fase do desanuviamento (1962-1975), que trouxe medidas de apaziguamento pelas duas partes. Em outubro de 1967, Richard M. Nixon já tinha dado também um sinal de abertura quando escreveu na revista Foreign Affairs que a China não poderia ficar de fora da família das nações para sempre, nem a sua população ficar sujeita a um “isolamento de raiva”12 .

Os jogadores Glenn Cowan (à direita) e Zhuang Zedong (à esquerda) à saída do autocarro da equipa chinesa, em Nagoya, Japão, em 6 de abril de 1971. O jogador americano tinha entrado por engano na comitiva estrangeira, incidente que se reverteu numa oportunidade para o estabelecimento de laços de amizade, que se estendeu à troca de presentes. Fonte: Xinhua.

Estava empenhado, juntamente com Kissinger, a terminar a guerra do Vietname, conflito que era considerado “uma espinha na garganta da nação”13. Assim, em 1969 dá-se uma retirada significativa de tropas americanas do Vietname e a 7ª esquadra abandona o estreito de Taiwan. Do lado chinês, os discursos de Mao Tsé-tung travam nas investidas contra os Estados Unidos, tirando proveito de entrevistas com o jornalista Edgar Snow para promover a sua imagem e pensamento nos Estados Unidos14. Em 1969, Mao convida este jornalista para assistir ao seu lado à grande parada militar do 1 de outubro, em Pequim, mais um importante sinal dado aos americanos.

A política de intransigência no contacto com americanos seria alterada. Ambos os lados pretendiam elevar os diálogos para um patamar mais elevado, mas a falta de relações políticas diretas e a insegurança face ao contexto de guerra fria dificultava as ações. O desbloqueio teria de ser dado de forma gradual, com pequenos sinais e iniciativas oferecidas ao outro interlocutor. O risco era elevado, qualquer mal-entendido poderia reverter o processo e ter custos políticos.

É neste quadro que surge a diplomacia desportiva chinesa, um “passo de desbloqueio” capaz de dar engrenagem de comunicação informal e sinais de confiança ao outro interlocutor. Assim, em 6 de abril de 1971, surge o convite de uma equipa de pingue-pongue chinesa à seleção de pingue-pongue

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16 HERRING, George C. (2010), A Guerra do Vietname, pp. 305-310. SNOW, Edgar (1971), “A Conversation with Mao Tse-Tung”, pp. 48-49. TUCKER, Nancy Bernkopf (2009), Strait Talk. p. 39. CHEN, Jian (2001), Maoss China and Cold War, pp. 259. americana para fazer uma visita à China. O cenário foi o World Table Championship, que decorreu em Nagoya, no Japão, e onde as equipas dos dois países tiveram oportunidade de se conhecerem, trocar impressões e presentes15. No início daquele ano, Koji Goto, presidente da Associação de Ténis de Mesa japonesa tinha estado na China a convidar os chineses a participar no campeonato de Nagoya. A participação da equipa chinesa tinha efeitos políticos e tinha de ser avaliado, tendo em conta que nenhuma equipa desportiva chinesa até ao momento tinha participado num grande evento internacional. Embora não houvesse unanimidade interna no PCC, Mao e Zhou decidiram que a equipa deveria participar. O pingue-pongue era o desporto mais popular no país e não tinha ainda havido a possibilidade de integrar grandes eventos internacionais. Esta participação provocou uma euforia nacional, raro de assistir quando o país vivia ainda no tempo da Revolução Cultural16 .

O treinador da equipa americana, Graham Steenhoven, perguntou a um delegado da equipa chinesa, Song Zhong, se era possível visitar a China para aprender com os jogadores chineses. Esta informação foi reportada à China que analisou aquela possibilidade. Entretanto, a entrada por engano de um jogador americano, Glenn Cowen, no autocarro da equipa chinesa, seria de feliz consequência. A imagem do americano a ser transportado com a equipa chinesa passou para a imprensa,

criando um impacto positivo na opinião pública.

Os sinais positivos vindos de Nagoya talvez tenham ajudado Mao a decidir pelo consentimento para a visita da equipa americana à China, sendo a mensagem enviada para o Japão.

A Casa Branca informada do sucedido, deu imediatamente aprovação para se fazer a visita, que recebeu forte cobertura mediática. O governo americano aceitou e a 14 de abril o primeiro ministro Zhou Enlai dava as boas vindas à equipa americana, amplamente noticiado nos meios de comunicação social internacionais. Segundo Zhou, a visita abriu uma “nova página” nas relações sinoamericanas. Esta iniciativa contribui quase imediatamente para o derrube de barreiras políticas entre a China e Washington, incluindo o fim do embargo comercial que tinha durado vinte e dois anos. Este novo contexto abriu as portas para a visita de Nixon à China em 1972, preparada com todo o cuidado por Henry Kissinger. O responsável pela segurança americana faz uma visita secreta em outubro de 1971 para preparar os contactos com os responsáveis políticos chineses. Neste mesmo ano a Assembleia Geral da ONU aprova o reconhecimento da RPC, em detrimento da República da China (Taiwan), que terá de “ser expulsa” da organização, segundo uma proposta da Albânia. No final da década os EUA e a RPC estabelecem relações formais, tendo a China consolidado a sua participação na comunidade internacional.

A equipa de futebol do Cosmos de Nova Iorque realiza um jogo amigável em Pequim, em 1977. Faziam parte da equipa americana Pelé, Carlos Alberto e Beckenbauer.

A visita do Cosmos à China em 1977

Depois do sucesso da “diplomacia de pingue-pongue”, a China desenvolve intercâmbio desportivo com maior intensidade com muitos países. Em 1972, equipas de pinguepongue da Tailândia, malásia e Filipinas visitaram o país, abrindo novas relações diplomáticas com o sudeste asiático. Em 1973, uma equipa de futebol do Líbano competiu na China e em 1974 uma equipa do Uganda, incluindo uma gestão cuidada de resultados para não ofender a equipa visitante. A China inicia também nesta altura um conjunto de apoios à construção de infraestruturas desportivas em países pobres, particularmente em África17 . Entre os convites a equipas estrangeiras para visitar a China, destacase a equipa americana do Cosmos, em 1977. Fazia parte do plantel o mais famoso jogador de futebol de todos os tempos, Edson do Nascimento, conhecido por Pelé. A visita serviu de despedida do jogador da atividade profissional, sendo acompanhado por outras lendas do futebol, tais como Carlos Alberto e Franz Beckenbauer. Foram organizados jogos amigáveis com uma equipa de Xangai e de Pequim18. A China estava a dar os primeiros passos nas competições internacionais. A China tinha sido retirada da FIFA e do COI na década de 1950, ficando a atividade desportiva limitada ao “bloco soviético”. A nova conjuntura trouxe integração da China na Confederação Asiática de Futebol (AFC), em inglês Asian Football Confederation. Em 1976, participa pela primeira vez na Taça AFC, o primeiro torneio internacional desde 1949.

Há uma clara transformação da política externa chinesa, frutos de todas as dinâmicas de aproximação do país ao mundo não soviético. Contribuíram também o aparecimento de novas lideranças políticas.

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18 WANG, Guanghua (2003), “Frindship First”, pp. 147-148. ROSS, Daniel (2017a), “The first western club to tour China”.

Desde o início de 1977 que os Estados Unidos eram governados pelo Presidente Jimmy Carter, empenhado no reforço da cooperação com a RPC19.Os destinos políticos da China passariam em pouco tempo para as mãos de Deng Xiaoping, igualmente empenhado no bom relacionamento com os americanos. Deng era também um apreciador de futebol, desde que assistira à final de futebol nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1924, quando residiu em França20. Para os jogadores do Cosmos, a entrada na China criou um forte impacto, revestia-se de mistério e surpresa. Era, na altura, o “país das bicicletas”, com as pessoas todas vestidas de igual, sem luxos para oferecer aos jogadores da elite mundial. As bancadas do Estádio dos Trabalhadores (Gongti), em Pequim, repletas, com 80 000 pessoas, no mais absoluto silêncio, foi um dos aspetos que mais impressionou os jogadores. Quando o altifalante dava a “ordem”, soltava-se um aplauso efusivo e sincronizado. Ainda imperava o ambiente herdado da Revolução Cultural, e do culto do desporto de massas, uma importante estratégia do governo de promoção da cultura nacional21. Do ponto de vista desportivo, o futebol chinês era amador, composto por operários, imbuído ainda no espírito revolucionário. Num modelo que lembraria a Roma Imperial, a mulher de Mao, Jiang Qing mobilizava batalhões de jovens para encher o Estádio dos Operários como se fosse um circus maximus. De forma a preservar o misticismo da sua imagem, não era Mao mas era Jiang que aparecia nas sessões de massas. Era frequentemente acompanhada por convidados estrangeiros, normalmente diplomatas22. O desporto de massas ganharia ainda maior expressão após a morte de Mao e a prisão do “gangue dos quatro”23. O jogo acabaria num empate, visto por alguns críticos da altura como um “empate diplomático”, embora Beckenbauer tenha feitos rasgados elogios à condição física e entrega do adversário. Em Xangai, a equipa americana perderia o encontro por 2-1. Esta fase de “degelo”, das relações políticas internacionais, após a turné do Cosmos, equipas da Itália (Inter de Milão) França e Inglaterra, como, por exemplo, West Bromwich Albion, deslocaram-se a este país do oriental24. Neste quadro de diplomacia desportiva, inclui-se também uma deslocação de uma equipa portuguesa, concretamente o Sporting Clube de Portugal (SCP).

O Sporting na China em 1978

Mao Tsé-tung terá dito um dia que Portugal “foi o único país da Europa que permaneceu na China sem lhe ter feito guerra”25. Pese as relações relativamente cordiais entre os dois países, o governo português não reconheceria a RPC até ao final da década de 1970. O advento da Revolução dos Cravos trouxe um novo clima para o estabelecimento de cooperação, motivado por múltiplos fatores internacionais, particularmente a aproximação entre Pequim e Washington. Em 27 de março de 1975 encerra a embaixada da ROC em Portugal, um elemento decisivo para o avançar dos diálogos. Seguindo a lógica da “diplomacia de Ping-Pong”, também a reaproximação sino-portuguesa passou por um conjunto de iniciativas simultâneas.

A Organização das Nações Unidas (ONU) foi uma das vias utilizadas nesta fase inicial, particularmente através de Veiga Simão, o embaixador de Portugal naquela organização (maio de 1974 a junho de 1975). Após contactos com o homólogo chinês Huanh Hua em 6 janeiro de 1975, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) emite uma nota diplomática onde consta que o governo da República Popular da China (RPC) é “o único representante legítimo do povo chinês”, Taiwan é “parte integral” do território chinês, e “Macau poderia ser objeto de negociações quando ambos os governos considerassem apropriado”26 .

Os contactos que Pequim tinham com Portugal eram através da única estrutura comunista que reconheciam em Portugal (não ligada ao comunismo soviético): Portuguese Comunist Party, Marxist-Leninist (PCP-ml). Os poucos portugueses que residiam nesta altura na China eram membros do PCP-ml, que davam apoio as edições da Foreign Language Press em língua portu-

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26 ROSS, Daniel (2017b), “China’s historic 1977 tour to the USA remembered”. BARTRAM, David (2012), “The Paper Tiger”, p. 119. Idem, ibidem. WITKE, Roxane (1977), Comrade Chiang Ch’ing, p. 451. HWANG, Dong-Jhy e Chang, Li-Ke (2008), “Sport, Maoism and the Beijing Olympics”, pp. 4-17. ROSS, Daniel (2017a), ibidem. LIMA, Fernando (2018), Macau, Um Diálogo de Sucesso, p. 77. FERNANDES, Moisés Silva (2000), “Portugal, Macau e a China”, pp. 371-372.

vância que a China tinha em Portugal era o secretário-geral do PCP-ml Heduíno Gomes (também conhecido pelo pseudónimo de “Vilar”). Heduíno, adepto do radicalismo chinês, era o facilitador nos contactos com a estrutura superior do PCC. Foi por intermédio deste “facilitador” de contactos com membros do poder político português, informal, que a China procurou o reatamento de relações diplomáticas. A embaixada chinesa em França era uma das bases para os contactos com a estrutura do PCP-ml, da mesma forma que a embaixada de Varsóvia serviu para contactos informais entre americanos e chineses. Foi por seu intermédio que se vai abrir a possibilidade de um intercâmbio de natureza desportiva. Tinha sido criada destinada a estabelecer contactos informais entre os dois lados: a Associação Democrática de Amizade Portugal-China (ADAPC). Esta associação foi discretamente criada pelo PCP-ml, sob orientação de Pequim. Carlos Ricardo, primeiro dirigente da ADAPC, deslocou-se mais do que uma vez à China e terá sido nesses contactos, discretos, que terá nascido uma proposta inicial da deslocação de uma equipa de futebol porAinda em 1976, o governador de Macau, Garcia Leandro, tinha sido informado por um “intermediário” da RPC que “Pequim estaria eventualmente recetivo a uma proposta de Lisboa para um intercâmbio desportivo”29. Esta informação foi enviada para Lisboa, concretamente para o general Ramalho Eanes30, em 7 de dezembro de 1976. Algum tempo depois, Heduíno Gomes foi contactado por um camarada do PCP-ml que colaborava com o Jornal do clube desportivo Sporting Clube de Portugal (SCP)31. Informou o líder do PCP-ml que o presidente do clube, João Rocha, pretendia falar com ele. O objetivo era preparar

A equipa de futebol do Cosmos em visita à Cidade Proibida, durante a digressão de 1977.

guesa27. O contacto de maior releuma associação da sociedade civil tuguesa ao país.28

uma viagem do SCP à China. Ainda em 1977, Heduíno Gomes leva a mensagem a Hua Guofeng, que seria de confirmação face às propostas iniciais. Estava declarada a vontade das autoridades portuguesas em avançar para o estabelecimento de relações diplomáticas. Sendo o “Vilar” um conhecido adepto sportinguista, o processo ainda ficou mais facilitado. Importa notar que desde 1976 estavam a ser encetados trabalhos para a criação de uma Câmara de Comércio e Indústria Luso Chinesa (CCILC), formalizada em abril de 1978. A CCILC estabelecia contactos com a China através da ADAPC. Várias empresas portuguesas estavam interessadas nesta abertura e muitos empresários participavam nos eventos da CCILC.

Entre eles estava João Rocha, igualmente presidente do SCP32. Esta ligação foi determinante para se estabelecer um quadro de contactos empresariais, desportivos e políticos. Assim, em 25 de junho de 1978 dáse a partida da equipa portuguesa

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32 CAEIRO, António (2016), Peregrinação Vermelha, pp. 111-120. FERNANDES, Moisés da Silva (2000), “Portugal, Macau e a China”, pp. 410-411. Idem, ibidem. Presidente do Conselho da Revolução entre 14 de julho de 1976 e 30 de setembro de 1982 e Presidente da República entre 14 de julho de 1976 e 9 de março de 1986. Clube multidesportivo, fundado a 1 de julho de 1906, em Lisboa. Em Macau existia uma sede deste clube desde 1926. CCILC - Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa, “35 anos a promover as relações Económicas entre Portugal e a República Popular da China”, p. 4.

para a China. Estiveram presentes José Faleiro Baltazar, do ministério dos Negócios Estrangeiros, Hang Chang-kang, funcionário da delegação da agência Xinhua em Portugal e vários dirigentes do PCP-ml. Seguiram na comitiva Veiga Simão, João Rocha e Carlos Ricardo. A delegação do SCP foi recebida destacados dirigentes dos aparelhos do partido e do Estado chinês, incluindo o vice-primeiro-ministro da China e o governador militar da província de Pequim, marechal Ten Xie Lie. No discurso do tenente-general Chen Xilian [Ch’en Hsi-lien], foi salientado que: «A digressão do Sporting tinha um significado muito mais amplo do que aquele que se circunscrevia ao campo desportivo e constituía o passo mais decisivo empreendido até aquela altura nas relações entre os dois povos»33

O presidente da Associação Chinesa de Amizade com os Países Estrangeiros, Wang Bingnan, faz a seguinte declaração:

«A bola de pingue-pongue é muito pequena e é por isso que abrimos apenas uma janela para os Estados Unidos. Mas o futebol tanto vamos abrir bem a porta »34

A equipa de futebol do Sporting Clube de Portugal (SCP) no Estádio dos Trabalhadores, em Pequim, onde realizou um jogo amigável com uma seleção de jogadores chineses. Da equipa portuguesa faziam parte Inácio, Mota, Laranjeira (capitão), Manoel, Jordão e Manuel Fernandes. O clube português era presidido na altura por João Rocha.

usa uma bola muito grande, porA digressão do SCP, ocorrida entre os dias 27 de junho e 10 de julho de 1978, foi um dos “sinais políticos” mais evidentes estabelecidos entre os dois países para o estabelecimento de relações diplomáticas. Estava implícito também que a situação de Macau estava implicitamente acordada, tal como revelam as declarações dos membros do PCC. De acordo com notícias da altura, nesta viagem, o presidente João Rocha entregou uma mensagem do primeiro-mistro Mário Soares e transmitiu uma saudação do então presidente Ramalho Eanes35 . Por sua vez, Veiga Simão, numa missão semissecreta, também levou uma carta de Ramalho Eanes para os líderes Hua Guofeng ou Deng Xiaoping, abrindo as portas para um restabelecimento de relações diplomáticas36. A digressão revelou-se um sucesso, mas com a queda em Portugal do 2º governo constitucional acaba por ser exonerado a 27 de

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36 Hong Kong Standard, “But Opens Door to Portugal”, 4 de julho, p. 1, apud FERNANDES, Moisés da Silva “Contextualização das Negociações de Paris”, p. 100. CAEIRO, António (2016), Peregrinação Vermelha, p. 135. Diário de Notícias (1978) nº 40088, 3 de julho, p. 2 apud FERNANDES, Moisés da Silva “Contextualização das Negociações de Paris”, p. 101. ABREU, António Graça de (2016), “Diário (secreto) de Pequim, 1977-1983”, p. 15.

Julho e o que fora alcançado por via da diplomacia informal e do desporto teve de ser adiado por mais alguns meses. Numa entrevista ao jornal Expresso37, o então jogador do Sporting, Augusto Inácio, recorda o mítico jogo entre a sua equipa e a seleção chinesa, realizado no Estádio dos Trabalhadores. Menos de uma hora antes da partida o recinto, com capacidade para 80 000 espetadores, estava completamente vazio. “Quando entrámos em campo, o estádio estava completamente cheio. Não sei como é que eles fizeram aquilo?!”, recordaria Inácio. O Sporting venceu a seleção chinesa por 2-0, mas como recorda um slogan político da altura: “amizade primeiro, competição em segundo”. Os jogadores chineses ficaram na memória dos jogadores portugueses. Embora com falta de rigor técnico, corriam muito e eram muito silenciosos. “Tínhamos por vezes a sensação de estar a jogar contra uma equipa de mudos”, refere Augusto Inácio38 .

António Graça de Abreu, que assistiu ao importante jogo em Pequim39 , tem escrito nas páginas do seu diário:

«No estádio dos operários toda a equipa do Sporting foi recebida e cumprimentada pelo general Chen Xilian (1915-1999), um velho combatente da guerra contra o Guomindang [Kuomintang] de Chiang Kai-shek (participou na Longa Marcha!) e contra os japoneses, hoje membro do Politburo do Partido Comunista da China, comandante militar de Pequim e um dos vice-primeiros ministros. Tudo isto é sinal da importância que os chineses deram à visita do Sporting, alargando a via que conduzirá em breve ao estabelecimento das relações diplomáticas».

A China é particularmente hábil na utilização de dinâmicas informais no processo de aproximação a Portugal, dando mais um sinal de cortesia. Tratou-se do convite informal ao governador de Macau, Garcia Leandro, para fazer uma “visita particular”, realizada entre 21 de abril e 8 de maio de 197840. Esta iniciativa, embora informal, revestiu-se de enorme importância política, pois tratou-se da primeira visita de um Governador de Macau ao país desde 194941 . As instituições informais que serviram de ligação para a iniciativa foram a Agência Noticiosa Portuguesa (ANOP) e a já tradicional agência Xinhua (Nova China). O jornalista Gonçalo César de Sá acompanhou a viagem e relatou mais tarde:

«Quando em novembro de 1978, como convidado da agência noticiosa Nova China, fui recebido em Pequim pelo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Yu Zhan, era-me dado o primeiro sinal público de que o estabelecimento das relações diplomáticas com Portugal estava iminente»42 .

Numa lógica alargada de interações e contactos informais entre portugueses e chineses, este evento desportivo foi mais um fator que acelerou a formalização das relações bilaterais. Assim aconteceu em 1979.

Considerações finais

A China na década de 1970 teve no desporto uma das suas vias de propagação de soft power, um canal relevante no desbloqueio político que pretendeu empreender com o mundo não soviético. A progressiva entrada no sistema internacional de nações estava em curso, era preciso criar condições de socialização para a sua consolidação. Os eventos desportivos –pingue-pongue ou de futebol, entre outros, tiveram aqui um papel fundamental no aproximar da China aos outros povos, particularmente os Estados Unidos. Os exemplos atrás mencionados testemunham o esforço do governo chinês na criação de laços de amizade, importantes no apaziguamento de tensões, mas também profícuos na obtenção de resultados políticos. Verificou-se que, de uma forma geral, os encontros desportivos realizados na China serviram de facilitadores para a passagem aos contactos formais entre a China e os respetivos países. Foi assim com os Estados Unidos e com Portugal. Seriam levantadas barreiras, estabeleceram-se diálogos políticos recorrentes, reduziram-se as perceções negativas do “outro”, particularmente na opinião pública. Não sendo universal, julgamos que ficou expresso que o desporto pode funcionar como um construtor de paz, eficiente em levar os países ao diálogo e não ao conflito.

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42 EXPRESSO (2010), “Sporting venceu seleção chinesa em Pequim há 32 anos”. CAEIRO, António (2016), Idem. Seriam disputados mais jogos, mas não com a importância do primeiro. As partidas seguintes realizaram-se em Xangai, Cantão, Macau e Hong Kong. LEANDRO, Garcia (2011), Macau nos Anos da Revolução Portuguesa, pp. 246-247. FERNANDES, Moisés da Silva (2000), “Portugal, Macau e a China – confluência de interesses”, pp. 435-436. Entrevista publicada na revista Nam Van, n.º 13, 1 de junho de 1985.

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