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Quando os extremos se tocam: Portugal na Faixa e Rota chinesa

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Editorial

Editorial

Paulo Duarte1 Professor Auxiliar na Universidade Lusófona do Porto e Professor Auxiliar Convidado na Universidade do Minho. Especialista na Belt and Road Initiative (Faixa e Rota chinesa)

Fonte: https://jtm.com.mo/local/acentuar-de-uma-logica-comercial/

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Introdução

Falar da China em Portugal deixou de ser exceção à regra para se converter, cada vez mais, numa regra sem exceção. Na verdade, longe vão os tempos em que os jornalistas estrangeiros me surpreendiam com os seus telefonemas ou e-mails, desejosos de saber o que pretende a China em Estremoz, ou em qualquer outro ponto relativamente recôndito de Portugal (pelo menos no entendimento de um português). Por um lado, procurei habituar-me a olhar para Portugal como um chinês. Com efeito, na perspetiva de um chinês, não existem lugares remotos num pequeno país como o nosso, considerando que uma cidade chinesa, como Wuhan, possui mais habitantes que Portugal inteiro. Tudo é perto em Portugal para um chinês, de tal modo que investir em Sines, em Bragança, em Alcoutim, Lisboa, Porto ou em muitos outros locais, é mera questão de ângulo porque, ao fim ao cabo, se trata de um território minúsculo quando comparado a uma China demográfica, territorial, económica, cultural e socialmente incomensurável

O autor agradece ao Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho e à Professora Doutora Laura Ferreira-Pereira o apoio no seu percurso académico.

(se não nos resignarmos apenas à classificação de gigantesca). Voltando ainda às razões do não me surpreender mais com os telefonemas de jornalistas estrangeiros sobre o que quer a China em Portugal, tal devese ao novo normal a que nos habituaram, afinal, os chineses. Dito de outra maneira, inusitado seria a China manifestar indiferença face a Portugal. Nos próximos anos e décadas, Portugal será parte integral da Pax Sinica, ao nível logístico, económico (onde o turismo está incluído), cultural e linguístico, mas também social, geopolítico e geoestratégico.

Não há vazios na natureza, tãopouco na Pax Sinica. A disciplina de Relações Internacionais (durante muito tempo ora eurocêntrica, ora focada nos Estados Unidos) tem, desde os seus primórdios, colocado a ênfase nas instituições do pós-Segunda Guerra Mundial, o chamado sistema de Bretton Woods. No entanto, este está obsoleto, na medida em que já não reflete a existência de uma superpotência intocável. A este respeito, o 11 de setembro, as revelações de Edward Snowden e de Julian Assange, bem como os milhares de mortes causadas pelo COVID19, demonstram que não há sistemas perfeitos, seja do ponto de vista da segurança física, cibernética ou de saúde pública, entre outros. Pese embora permaneçam a primeira economia mundial, o país mais forte ao nível militar, e liderem ainda (a par com a União Europeia) em termos de soft power, a História é cíclica. Por conseguinte, não existem poderes ou impérios que permaneçam eternamente no topo. Esta é uma tese defendida por Paul Kennedy (1989), segundo o qual o destino dos Estados Unidos não é muito dife-

Fonte: https://www.washingtonpost.com/pbox.php?url=http://www.washingtonpost.com/news/world/wpcontent/uploads/sites/7/2017/12/71128_2380.jpg&w=1484&op=resize&opt=1&filter=antialias&t=20170517

rente daquele que foi o dos impérios português, espanhol, francês ou inglês. A questão não é, pois, a de se os Estados Unidos vão declinar, mas antes a de quem os vai substituir e em quanto tempo tal ocorrerá.

O debate sobre o candidato a hegemon não é consensual, pese embora eu acredite que a China é a potencial superpotência em gestação. Mera questão de tempo até a Pax Americana ser substituída pela Pax Sinica em construção. Não arrisco nem ouso estimar se serão necessárias duas décadas ou mais, até a China ultrapassar económica e militarmente os Estados Unidos. Não obstante, a componente em que me parece ser mais difícil (se não impossível) a China igualar ou superar os Estados Unidos é a do soft power. Inspirado no conceito de soft power americano (cujo mentor é Joseph Nye 1990), a verdade é que o soft power chinês (sobretudo desde a presidência de Hu Jintao) é, contrariamente ao que sucede nos Estados Unidos e na Europa, desenvolvido de forma top-down. Ou seja, a capacidade de seduzir (no fundo, a essência do soft power) é imposta literalmente pelos responsáveis políticos chineses aos meios de comunicação e aos Institutos Confúcio. Assim sendo, contrariamente ao soft power americano (que nasce do talento e do sonho de cada indivíduo que, em conjunto com outros indivíduos, formam o Sonho Americano), o Sonho Chinês é, por sua vez, ditado pela propaganda do Governo que, qual Grande Olho Orwelliano, tudo vê. Ora, a comunidade internacional suspeita de uma China que preconiza a globalização, bem como a criação de uma Comunidade de Destino Comum, quando, na prática, essa mesma China constrói ilhas artificiais e fecha o seu mercado doméstico a empresas ocidentais.

Na Pax Sinica nada existe de novo (Duarte, 2017). Apenas um atraso substancial. Com efeito, a China está a fazer, na prática, o que os Estados Unidos realizaram há várias décadas: consolidar uma moeda e uma economia, abrir mercados, inaugurar bases militares gradualmente um pouco por todo o mundo, comprar o que a comunidade internacional aceita vender. A disputa por influência também é notória, assim como a ação-reação pavloviana2 que rege

Como exemplos de ação-reação que se faz sentir hoje nas relações internacionais, mencionemos o interesse da China na Gronelândia e a consequente reação de Donald Trump em anunciar a intenção de os Estados Unidos comprarem a ilha. Ou, ainda, algo mais recente, como o telefonema de Donald Trump a Marcelo Rebelo de Sousa, ao qual se seguiu (alguns dias depois) um telefonema de Xi Jinping também a Marcelo Rebelo de Sousa.

Fonte: https://www.mundolusiada.com.br/box2/presidente-visita-a-china-em-abril-e-anuncia-memorando-sobre-uma-faixa-uma-rota/

o comportamento do ainda hegemon e aquele da superpotência em devir. A armadilha de Tucídides não é quimera, pois a guerra comercial sinoamericana atesta tudo menos uma transição pacífica para a nova ordem que lentamente se produz. O que parece complicar ainda mais a equação é o facto de a questão não se confinar apenas à economia. O Choque de Civilizações de Samuel Huntington (1993) não poderia ser mais atual: o Islão e a China versus o Ocidente. Se, quanto ao Islão, tem sobretudo sido uma fação terrorista deste a causar o terror no Ocidente, já quanto à China, a guerra comercial oculta um je ne sais quoi de ideológico: os valores do Ocidente versus o novo paradigma da sociedade orwelliana de caraterísticas chinesas suscetível de colidir, como de facto antevia Huntington (1993), com a visão ocidental dos direitos humanos e, em sentido lato, das relações internacionais. Ferida pelo século de humilhações e mais pragmática que nunca, a China já não quer ser relegada a ator secundário da política internacional. Ela constrói lenta e subtilmente novas instituições, de que é exemplo o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas (BAII), que acaba por desempenhar, na prática, um papel assaz semelhante ao do Banco Mundial. O risco de o Ocidente continuar a marginalizar a China, negando-lhe um maior estatuto e reconhecimento na cena e instituições ocidentais, culminou no nascimento do BAII. Contudo, tal marginalização pode, ainda, pressagiar a construção de mais instituições made-in-China, redundantes e perigosas eventualmente, por inaugurarem uma ordem paralela e alternativa das relações internacionais, na medida em que as existentes se revelam arcaicas. Face a esta conjuntura de desocidentalização da política internacional (cara a Huntington) analisarei, em específico neste artigo, o caso da China em Portugal. Procurarei dar a conhecer ao leitor os contornos da Faixa e Rota chinesa (do inglês Belt and Road Initiative) num pequeno país do ponto de vista territorial, mas que já deu, outrora, novos mundos ao mundo.

O fruto proibido: a ‘excessiva’ abertura de Portugal face à China?

Portugal e China celebraram 40 anos de laços diplomáticos em 2019 (Duarte, 2019). Muitos argumentam que as relações entre os dois países estão hoje no seu auge. A 9 de dezembro de 2005 foi estabelecida uma Parceria Estratégica Global entre Portugal e China, com vista ao reforço da cooperação em áreas fundamentais, de entre as quais merecem destaque a cultura e educação, a ciência, a tecnologia, a língua, a saúde, a justiça além, naturalmente, do diálogo político. Este foi um passo importante no upgrade das relações entre os dois estados.

Além da geografia terrestre e marítima de Portugal, a China interessase também pela dupla costela europeia e lusófona do nosso país, que é suscetível de ajudar as empresas chinesas a melhor aceder aos mercados falantes do português. A este respeito, o presidente da Liga dos Chineses em Portugal, Y Ping Chow,

reconheceu em tempos que, de facto, “as empresas chinesas olham não apenas para o território português, mas também para a capacidade de influência que Portugal tem nos países africanos de língua portuguesa”. Mas tão ou mais pragmática foi a constatação de Y Ping Chow de que “Portugal é importante, mas a CPLP é ainda mais" (Aicep Portugal Global, 2019: para.7).

Outra ocasião digna de registo nas relações entre Pequim e Lisboa, consistiu na visita do anterior Presidente Cavaco Silva, em 2014, à China, no âmbito da qual a parceria estratégica Portugal-China foi elevada ao estatuto de Parceria Estratégica Global. Aquando do 10.º aniversário da parceria estratégica luso-chinesa, o então embaixador da China em Portugal, Huang Songfu declarara perante a Assembleia da República portuguesa que “Acreditamos que Portugal, posicionado no Centro da Rota Marítima do Atlântico, poderá ter um papel imprescindível na realização da Faixa e Rota na Europa” (cit. por ANRS, 2017: 4). Esta posição foi, por sua vez, reiterada pelo atual embaixador chinês em Portugal, Cai Run, em junho de 2019, segundo o qual “sendo um ponto de encontro importante das rotas da seda terrestre e marítima, Portugal é um parceiro natural na construção da Faixa e Rota” (cit. por Diário de Notícias, 2019a: para.7).

Por ocasião da visita do Presidente chinês Xi Jinping a Portugal, em dezembro de 2018, os dois países assinaram um memorando de entendimento no sentido de promover a cooperação logística, aérea, terrestre e marítima no âmbito da Faixa e Rota chinesa. Ao todo, foram assinados 17 acordos bilaterais que abarcam diversos setores, como cita o Jornal Económico (2018). 1.

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7. 8. 9. Memorando de entendimento para cooperação no quadro da nova rota da seda marítima –Uma Faixa, uma Rota; Memorando de entendimento de cooperação em matéria de comércio e serviços (como transportes, turismo e tecnologia); Memorando de entendimento para a partilha de programação de festivais culturais; Memorando de entendimento para a implementação da parceria em matéria de Ciência e Tecnologia; Memorando de entendimento para a implementação do STARLAB, um programa que visa o estabelecimento, em Portugal, de um Laboratório de Pesquisa de Tecnologia Avançada nos domínios do Mar e do Espaço; Memorando de entendimento para a cooperação no domínio da água; Memorando de entendimento entre a COFCO International e a AICEP para a criação de um serviço global da COFCO em Matosinhos, com a criação de 150

postos de trabalho; Memorando de entendimento entre a EDP e a China Three Gorges para a cooperação ao nível da responsabilidade social das empresas, designadamente no domínio da cultura, desenvolvimento

sustentável, inovação e R&D;

Memorando de entendimento entre a State Grid e a REN, para reforço da cooperação entre ambos; 10.Memorando entre a MEO e a

Huawei, sobre o desenvolvimento da tecnologia 5G; 11.Protocolo relativo aos requisitos fitossanitários para a exportação

de uva de mesa portuguesa para a China; 12.Carta de intenções sobre cooperação entre as câmaras municipais de Tianjin e Setúbal; 13.Acordo entre o BCP e a Union

Pay, para a emissão de cartões de crédito da empresa chinesa de serviços financeiros que lidera os pagamentos eletrónicos na China; 14.Acordo entre o Grupo Media da

China e a RTP para a produção conjunta de documentários; 15.Acordo para o estabelecimento do Instituto Confúcio na Universidade do Porto; 16.Acordo para a criação de um centro de estudos chineses na

Universidade de Coimbra; 17.Protocolo para a implementação do memorando de entendimento entre a CGD e o Bank of

China para a emissão de Panda

Bonds, referente à emissão da dívida pública em Renminbi (a moeda chinesa). De entre os tópicos mais sensíveis abrangidos pelos acordos, vale a

Fonte: https://twitter.com/Thom_astro/status/85676 6586820153344/photo/1

pena prestar atenção aos pontos 5, 10 e 17 acima mencionados. A ser implementado o STARLAB possibilitará a cooperação entre Portugal e a China em matéria de lançamento de microssatélites e de monitorização dos oceanos. Importa ter presente, a este respeito, que um dos motivos apontados pela UE para a suspensão da cooperação com a China no quadro do desenvolvimento do Programa Galileo (o sistema de navegação por satélite da UE) é justamente o receio de alegada espionagem e paridade estratégica (partilhado, aliás, pela americana NASA, que também se recusa a cooperar com a China em matéria espacial) que tal cooperação é suscetível de proporcionar a Pequim. Por conseguinte, Portugal será o primeiro país da UE a abrir um precedente numa matéria tão sensível, que, a juntar a outros aspetos a seguir mencionados, faz com ele seja visto com um case study no âmbito da Faixa e Rota na UE.

A monitorização dos Oceanos é, igualmente, sensível na cooperação Portugal-China perante o escrutínio dos parceiros europeus. Convém notar que Portugal possui a terceira maior Zona Económica Exclusiva (ZEE) da UE, podendo, inclusive, vir a duplicar o seu território marítimo caso as Nações Unidas considerem legítima a proposta de alargamento do fundo marítimo, apresentada por Lisboa em 2009 (Diário de Notícias, 2019). Ora, em caso de aprovação, uma maior área marítima pressupõe que haja, igualmente, uma maior alocação de meios navais e aéreos para vigiar uma vasta parte do Atlântico (tendo em conta que a dimensão da atual ZEE é já significativa para um país que dispõe de apenas dois submarinos). Uma maior área marítima significa também maior probabilidade de encontrar e extrair riquezas do fundo do oceano, algo que interessa à China no âmbito da sua Faixa e Rota. Conseguirá Portugal manter o difícil equilíbrio entre os seus interesses e soberania nacional, os compromissos estratégicos com a UE, a OTAN e, ao mesmo tempo colaborar com a China na monitorização do Atlântico Norte (espaço privilegiado da OTAN)? Esta interrogação retórica não pode ser dissociada do ponto 10 dos acordos bilaterais (que prevê o Memorando entre a MEO e a Huawei no que respeita ao desenvolvimento da tecnologia 5G), em resultado das tensões que se fazem sentir atualmente quer nos EUA, quer na UE e noutros países.

Em suma, Oceanos, Espaço e tecnologia 5G são precisamente o fruto proibido tal como a UE e os EUA (metaforicamente) o concebem. O que sucederá a quem dele comer? Será expulso do paraíso ou, no mínimo, terá de acarretar outro tipo de consequências por ser ousado? Mais uma vez, perguntas possíveis, respostas incertas, porque é tudo muito recente. Pese embora não diretamente contemplados nos acordos acima mencionados, os vistos Gold são, igualmente, um outro tema alvo de grande controvérsia e escrutínio pelos parceiros europeus, na medida em que abriram um precedente em matéria de segurança na UE, ao permitir a autorização de residência a estrangeiros que invistam 500 mil €, ou mais, no país. Ora, considerando que o passaporte português permite viajar para 186 países (além de ser um documento europeu), vários atores estatais e não-estatais têm vindo a solicitar ao governo português o cancelamento dos vistos Gold, invocando, para o efeito, razões securitárias.

Por fim, algumas notas relativamente ao ponto 17 da cooperação bilateral Portugal-China, acima mencionado. Desde 29 de maio de 2019 que Portugal contribui ativamente para a internacionalização da moeda chinesa (o Renminbi), convertendo-se, na prática, no primeiro país da zona euro a emitir dívida pública em Renminbi (os chamados Panda Bonds). De acordo com o Secretário de Estado das Finanças, Ricardo Félix, “o objetivo da emissão é estar num mercado de grande dimensão, com muita liquidez, com poupanças elevadas e alargar, assim, a base de investidores” (cit. por Jornal de Negócios, 2019: para.4). No entanto, trata-se de um otimismo que não agrada, uma vez mais, nem a Bruxelas nem a Washington. Vale a pena referir aqui o ponto 13 acima mencionado, na medida em que também ele é revelador da celeridade com que Portugal e a China têm coligido esforços com vista ao cumprimento das metas financeiras a que se propuseram. De facto, como vimos, não só Portugal é pioneiro na emissão de dívida pública em renminbi, como também, desde abril de 2019, o Millennium BCP se converteu no primeiro banco europeu a emitir cartões de crédito Union Pay (que é a empresa chinesa de serviços financeiros que lidera os pagamentos eletrónicos na China).

O potencial terrestre, marítimo e aéreo

O porto de Sines tem tudo para se converter, à semelhança do porto do Pireu na Grécia, num outro polo marítimo, por excelência, da Rota da Seda Marítima do Século XXI. Se o Pireu é o porto europeu mais próximo do Canal do Suez, Sines é o porto europeu de águas profundas que menos dista do Canal do Panamá. Por outro lado, é interessante o paralelismo geoestratégico entre os dois portos. Enquanto o Pireu está geograficamente situado na convergência entre Europa, África e

Ásia, por sua vez a localização de Sines coloca-o no cruzamento das principais artérias marítimas, acrescentando à Europa e a África as Américas (figura 1).

Apesar de não dispor de uma zona de influência estratégica (o chamado hinterland) como Roterdão, Sines tem potencial para desempenhar um papel importante no âmbito da redistribuição das cargas europeias (o denominado fenómeno de transhipment). Acresce que Sines possui terminais adequados a qualquer tipo de carga, além de ser um porto mundial de referência. Sines proporciona atualmente uma rota mais curta aos navios (em trânsito entre Oriente e Ocidente) que antes do fim dos trabalhos de expansão do Canal do Panamá eram obrigados a cruzar o Suez (implicando maior tempo e custos de frete).

Contudo, por muito que Sines seja relevante em resultado da sua posição geoestratégica, importa notar que ele não está só. Com efeito, existem outros competidores de peso, quer, por exemplo na vizinha Espanha, quer no Norte de África. Em consequência da melhoria da economia de escala, proporcionada pela nova geração de navios porta-contentores, é perfeitamente exequível percorrer hoje escassas dezenas de milhas náuticas e atracar em portos vizinhos que ofereçam melhor conetividade, maior eficácia nas operações de carga e descarga e, tão ou mais importante, melhores incentivos fiscais. São estes fatores que os governantes portugueses devem ter em conta na hora de enumerar as mais-valias de Sines a um qualquer investidor (não necessariamente chinês), sabendo que na Aldeia Global todos estamos a competir por algo, direta ou indiretamente. Caso contrário, adotar a postura de esperar para ver, apenas porque a geografia é aliciante, pode ser um erro.

Figura 1. A localização geoestratégica do porto de Sines Fonte: https://diariodigitalcastelobranco.pt/noticia/5285/

Encontrar mais-valias não é um processo fácil porque qualquer país quer rentabilizar ganhos, estando disposto a sacrificar o mínimo possível na hora de negociar com potenciais investidores. Não obstante, aproveitando o facto de Portugal se ter lançado pragmaticamente na Faixa e Rota, acredito ser interessante, no quadro da projeção de Sines, este esforçarse por oferecer o que outros portos competidores não oferecem (por enquanto). Dito isto, por que não permitir aos produtos chineses que chegassem a Sines, numa forma ainda inacabada, ser terminados in loco, ou seja em solo português, o que lhes possibilitaria ter, por conseguinte, uma marca europeia? Tal é, eventualmente, suscetível de trazer benefícios à indústria de transformação portuguesa, na medida que empregaria trabalhadores e maquinaria portugueses, proporcionando, assim, um argumento apelativo na tentativa de angariar investidores para Sines. Sines tenderá a beneficiar a médio / longo prazo do alargamento da linha férrea Yiwu-Madrid, (figura 2), no âmbito da conetividade subjacente à Faixa e Rota. Aliás, a reestruturação em curso da rede ferroviária portuguesa para tal aponta. A este respeito, importa esclarecer que os comboios que ligam atualmente Sines a Badajoz não dispõem de outra alternativa ferroviária que não seja a de subir até Vendas Novas e Entroncamento e descer, posteriormente, por Abrantes e Portalegre até Badajoz.

Porém, a construção do corredor ferroviário entre os portos de SinesSetúbal-Lisboa até à fronteira de Caia-Badajoz, tenderá a reduzir a distância percorrida em 140 Km, bem como o tempo despendido, em cerca de 3h-4h (face às atuais 8h). Ao eliminar em 30% o custo do transporte, os ganhos de competitividade serão promissores para a economia, tanto mais que a futura linha Évora-Elvas-Badajoz é suscetível de permitir a circulação de 12 comboios por dia, o que significa menos 660 camiões nas estradas nacionais. Este objetivo serve um

férrea, tal como projetado no Corredor Internacional Sul (figura 3). Dito isto, Portugal reforçará a sua posição privilegiada no âmbito da conetividade da Faixa e Rota, já que a partir do porto de Sines, os contentores de mercadorias oriundos da China por via férrea, são suscetíveis de prosseguir viagem, desta vez por mar, até às Américas. O inverso é igualmente possível na medida em que a Sines poderão chegar, por via marítima, mercadorias provenientes das Américas e de África, as quais tomarão posteriormente a via férrea até Madrid, a partir de onde prosseguirão quer rumo a outros destinos europeus, quer, eventualmente, até à China. Na prática, o porto de Sines será o responsável por complementar a longa faixa terrestre eurasiática com a Rota da Seda Marítima do Século XXI, conferindo a taneamente para o Oceano e para a Eurásia (Duarte, 2018). Consequentemente, Portugal será o grande car-

Sines tem um outro potencial de peso, que reside no facto de estar relativamente próximo (a cerca de 100 Km) do Aeroporto Internacional de Beja. Atualmente subaproveitado, o aeroporto de Beja parece ser o elo que falta para maximizar o potencial de Sines, convertendo-o numa verdadeira plataforma multimodal, assente numa conetividade tripla: marítima, terrestre e aérea. O contexto não poderia ser mais favorável já que em 2011 o aeroporto de Beja se tornou num aeroporto de uso simultaneamente civil e militar (à semelhança da base das Lajes). Dispondo de pista suficiente para a aterragem quer do Figura 2. A atual linha férrea Yiwu-Madrid maior avião de passageiros (o Airbus Fonte: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/28535/3/ProjetoNovaRota.pdf A380), quer da maior aeronave de outro: criar a logística indispensável grandes componentes (a essência Mriya), o aeroporto Beja pode prespara que no futuro seja Sines, e não diga-se) do projeto chinês: terra e tar dois grandes contributos. Um deMadrid, literalmente o fim da linha mar (Duarte & Leandro, 2020). les diz respeito ao potencial que o Portugal o papel de gateway simulcarga do mundo (o Antonov An-225 refour para onde convergirão os dois Figura 3. O Corredor Internacional Sul. Fonte: shorturl.at/fyzJW

aeroporto pode oferecer à indústria de transformação, se, de facto, vierem um dia produtos inacabados da China para ser concluídos em solo português. Por outro lado, o aeroporto de Beja pode facultar um transporte mais célere a mercadorias sensíveis (por exemplo, bens perecíveis, ou software) que não podem esperar demasiado nos portos sob pena de perderem valor.

O outro grande contributo do aeroporto de Beja consiste na promoção do interior do país (fundamentalmente o Baixo e o Alto Alentejo), considerando que o aeroporto pode receber voos charter de curto, médio, além de longo curso (sem necessidade de escalas via Lisboa ou Faro), suscetíveis de reforçar o turismo. A costa vicentina, bem como Évora (património da UNESCO), são alguns dos destinos que poderão fazer as delícias do turista estrangeiro. Contudo, importa que haja um reforço na ligação ao terminal de passageiros do aeroporto de Beja, criando, para o efeito, infraestruturas de base (o que é, aliás, prática nos aeroportos internacionais), como linhas ferroviárias e reforço de autocarros (com ligações a destinos turísticos concretos). Não basta ter pistas para acolher aviões. É preciso, pois, facultar todo um conjunto de serviços ao turista, que, neste momento, apenas os aeroportos de Lisboa e, de certa forma o do Porto, oferecem (ao de Faro falta, por exemplo, a componente ferroviária). Caso contrário, de pouco ou nada serve (como tem demonstrado a relutância das lowcost e companhias de bandeira em voar para Beja) ter um aeroporto que custou avultadas somas, se não existirem, na prática, as condições logísticas indispensáveis para satisfazer necessidades evidentes.

Turismo e Lusofonia

O voo Hangzhou-Pequim-Lisboa, inaugurado pela Capital Airlines a 26 de julho de 2017 – entretanto suspenso e posteriormente retomado a 30 de agosto de 2019 –teve um impacto muito positivo na economia portuguesa. A este respeito, é de referir que no primeiro ano em que voou para Portugal, a Capital Airlines transportou mais de 80 mil passageiros, com uma taxa média de ocupação do voo superior a 95% na época alta, enquanto que nos restantes meses se ficou pelos cerca de 80%.

Tal ponte aérea veio alterar o panorama do turismo em Portugal, na medida em que o turista chinês ultrapassa atualmente, em termos de despesa, o turista norte-americano (506€) e o angolano (252€), despendendo uma média diária de 642€. Eu próprio presenciei, em outubro de 2017, a bordo do voo direto Pequim-Lisboa algo que me surpreendeu. De facto, na altura, constatei que um senhor chinês segurava, sorridente, um volumoso maço de notas não de 5€, mas 500€, antes de aterrar em Lisboa. Não sei se ele tinha noção de quantas vezes lhe cabia na mão o salário mínimo de vários portugueses, mas estou convicto de que Portugal agradece certamente.

Ouso indagar o quão benéfico seria para a economia insular se mais voos diretos provenientes da China, aterrassem também na Madeira e nos Açores, em vez de apenas em Lisboa. Importa relembrar que, durante muito tempo, Madeira e Açores estiveram praticamente reféns de um monopólio aéreo, que privava uma grande fatia de portugueses de conhecer estes lindíssimos arquipélagos, a não ser que pagasse caro. Hoje, porém, as lowcost trazem milhares de turistas às ilhas, algo que beneficia a indústria hoteleira, estimula o comércio local e dá vida aos arquipélagos, sobretudo aos Açores, já que a Madeira sempre foi alvo de uma maior procura turística. Dito isto, não posso, todavia, deixar de lamentar (depois de eu próprio ter feito a experiência), que os voos interilhas nos Açores chegam a ser mais caros que a passagem aérea cobrada pelas low-cost entre Portugal continental e Angra do Heroísmo, ou entre Portugal continental e Ponta Delgada, o que, de facto, não torna o turismo insular acessível a um maior número de turistas (pelo menos portugueses).

O voo da Capital Airlines (figura 4) pode contribuir (era esse, aliás, o desejo expresso, em 2017, por Wang Yinjun, diretor de marketing da companhia aérea) para fazer de Lisboa uma plataforma aérea para África e América Latina, tendo por base a ligação direta Lisboa-Pequim (Diário de Notícias, 2017). Este é um aspeto crucial, já que além de ter Sines como plataforma de convergência marítima e ferroviária entre a Rota da Seda Marítima e a futura ferrovia Yiwu-Madrid-Sines, Portugal contaria ainda com o Aeroporto de Beja para amparo logístico de Sines, e, por fim, com Lisboa como plataforma aérea de contato entre a China, África e as Américas.

Mas qual é o perfil do turista chinês, responsável por 415 882 dormidas em Portugal em 2017? São, geralmente, pessoas na faixa etária entre os 30 e os 50 e poucos anos que gostam de viajar em grupo, de preferência acompanhados por um guia local que fale o mandarim. Sucede que o turista chinês aproveita para conhecer Portugal, mas também outros países da Europa, regressando depois no mesmo voo. Importa su-

Figura 4. A ponte aérea direta China-Portugal. Fonte: shorturl.at/isvKR

blinhar – a par da classe média jovem que tem vindo a aumentar, como sublinha Y Ping Chow, Presidente da Liga dos Chineses em Portugal – um crescimento do número de reformados na China, que procuram Portugal para fazer turismo (Aicep Portugal Global, 2019). Isto é, por sua vez, benéfico para o setor dos serviços, pese embora como nota Y Ping Chow, Portugal tenha trabalho de casa a fazer, nomeadamente em convencer esses turistas a passar mais tempo no país. Mas, para que tal seja possível, é necessário que as agências de viagem, a indústria hoteleira e o governo manifestem a preocupação de oferecer pacotes e serviços atrativos que justifiquem uma estadia prolongada. Daí o exemplo que dei acima a respeito dos Açores e da Madeira poder não ser descabido, mas complementar na hora de acolher o turista e de lhe explicar que Portugal não se limita a uma faixa continental, porque, por incrível que pareça, muitos não sabem que temos dois arquipélagos extraordinários, mas que podiam (sobretudo os Açores) ser melhor rentabilizados do ponto de vista turístico.

Voltando ao setor dos serviços, que muito tem beneficiado da procura turística, as observações do Presidente da Liga dos chineses em Portugal têm razão de ser. Quando, em tempos, um jornalista estrangeiro me telefonou a pedir informações sobre o interesse chinês em Estremoz (figura 5), onde uma empresa chinesa investe 64 milhões de euros na construção de um complexo residencial (que combina saúde e lazer, sendo o maior do género na história do concelho), confesso que fui tomado de surpresa. Em verdade, a China investe em vários locais do país, alguns menos óbvios que outros, mas após uma leitura mais atenta – olhando para Portugal não através da perspetiva de um português, mas de um chinês – o país é demasiado pequeno. Por conseguinte, percorrer 400 ou 500 Km por cá é algo relativamente banal numa China onde a população e as distâncias são substancialmente maiores. Convém ter presente que os desafios e oportunidades da Faixa e Rota para Portugal não se esgotam em questões de logística ou de turismo. A conetividade pressupõe, com efeito, uma outra dimensão quiçá menos óbvia à primeira vista, mas tão ou mais importante: a projeção cultural. Por outro lado, Portugal não deve sobrevalorizar nem subestimar a sua posição face à China. Somos um pequeno estado que beneficia de um poder funcional, mas que, para todos os efeitos, está a lidar com uma grande potência, a caminho do estatuto de superpotência.

Para a China, o mercado português é insignificante. Dez milhões de pessoas (que é aproximadamente a população do nosso país) cabem perfeitamente numa das muitas cidades chinesas. O que verdadeiramente interessa à Faixa e Rota é a posição geográfica ímpar de Portugal na Europa, bem como o seu papel de facilitador da penetração chinesa nos mercados falantes do português. Convém, também, estar ciente de

que por muito que Portugal beneficie de um estatuto de interlocutor privilegiado face aos restantes países de língua portuguesa (ou regiões, como é o caso de Macau), o multilateralismo em que assentam as cimeiras, conferências, e outros fora internacionais, é interessante para a China, mas não determinante por si só. Na verdade, e aproveitando para recordar o que atrás expliquei acerca do papel do multilateralismo na política externa chinesa, quando se trata de interesses estratégicos, o bilateralismo continua a ser o instrumento por excelência no trato da China com outros países ou regiões do mundo.

Indo direto ao ponto, para não criar falsas expetativas no leitor, Macau e Portugal são interlocutores privilegiados pela China no quadro da sua relação com a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). No entanto, a sobreposição de estruturas, agravada pela inexistência de visão comum e convincente (entre outros, no seio da CPLP) para lidar com os desafios e oportunidades da Faixa Rota, pode trazer disfuncionalidade e desmotivação mútuas. A este respeito, vale a pena recordar o exemplo, pela negativa, da parceria estratégica UE-China, que de verdadeiramente estratégica possui apenas o nome, porque, na prática, se tem revelado ineficaz. Ora, aproveitando a analogia, bem como a lição do que não deve ser feito, Portugal beneficiaria em usar de pragmatismo no trato com a China.

Não é por acaso que a China se tem mostrado ativa na organização de toda uma série de iniciativas com vista ao fomento dos laços com os países lusófonos. É porque Pequim reconhece potencial na cooperação entre o mercado chinês e os países e/ou regiões falantes do português. Macau tem aí um papel notável.

Figura 5. A localização de Estremoz. Fonte: https://discoverportugal2day.com/estremoz/

Contudo, a China pode perfeitamente prescindir de Macau no seu trato com os países de língua portuguesa (até porque, como vimos, o bilateralismo tem pautado, desde sempre, a política externa chinesa), mas Macau não pode nem deve prescindir do apoio da China continental. Que o digam, por exemplo, as pequenas e médias empresas de Macau, cuja internacionalização torna premente que estas se aliem a outras empresas de maior dimensão e com experiência internacional, mas que estão localizadas no sul da China. Macau dispõe de uma impor-

tante vantagem competitiva face a Hong Kong: o trilinguismo presente em várias empresas (português, mandarim e inglês) vs o bilinguismo de Hong Kong (inglês e mandarim).

Tendo em conta o magnífico potencial dos países/regiões falantes do português, os esforços devem ser mútuos, o que pressupõe ir ativamente ao encontro da China, ao invés de ficar à espera desta. Caso contrário, Pequim tenderá a ignorar o que de promissor Macau e Portugal podem representar do ponto de vista diplomático no trato com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e, lato sensu, com a CPLP, privilegiando, ao invés, o reforço de uma relação bilateral com países como o Brasil, Angola ou Moçambique, porque são os que verdadeiramente contam em termos de matérias-primas e dimensão de mercado. Por conseguinte, Portugal deve adotar uma postura ativa, que é, em muito, dificultada pelos compromissos face à OTAN e à UE, assumindo-se como o timoneiro, dinamizador e porta-voz dos interesses dos países falantes do português na sua relação com a Faixa e Rota. O português é a quinta língua mais falada no mundo, algo altamente promissor do ponto de vista académico e científico, embora largamente inexplorado, por ora, ao invés do que sucede noutros países não-falantes do português, mas que estão cientes do potencial da Faixa e Rota.

Um outro aspeto a que não podemos ficar indiferentes é o facto de nenhum país falante do português (nem mesmo região, como Macau) possuir, por ora, um único instituto inteiramente focado na produção académica quer sobre a China, ou, ainda mais especificamente, sobre a sua Faixa e Rota. Não devemos confundir ligas de amizade ou associações que visam promover a Faixa e Rota, com algo completamente distinto que é ter centros de pesquisa credíveis e independentes acerca da China e da sua grande estratégia global de que a Faixa e Rota é, simultaneamente, meta e instrumento. Como pude constatar em 2017, por ocasião do lançamento do Centro de Estudos Chinês dos Países de Língua Portuguesa, Pequim demonstra interesse em aprofundar o seu conhecimento acerca dos países de língua portuguesa. Porém, à exceção da Universidade de Coimbra (que acordou recentemente com a Beijing Foreign Studies University criar um Centro de Estudos sobre a China e os Países de Língua Portuguesa), a CPLP tem negligenciado esta reciprocidade em mostrar à China que também está interessada em aprender mais sobre o país, a sua cultura, além da Faixa e Rota.

Existe, igualmente, um enorme potencial a explorar no que respeita aos serviços de tradução. Até hoje, falando eu na primeira pessoa porque sou disso simultaneamente testemunha e interveniente, sempre que sou convidado para discursar em cerimónias oficiais e noutras, noto não só que os tradutores chineses me pedem para ter antecipadamente acesso ao meu discurso e, em segundo lugar, que a tradução realizada apresenta, com frequência, graves erros. Ora falhar na comunicação é arriscar-se a ser mal compreendido, falhando também nas metas. Em finais de 2018, quando, a convite da embaixada da China, fui apresentar o livro A Governança da China (de Xi Jinping) no Palácio da Ajuda, perante uma ilustre plateia, notei que tinha de fazer acrescentos no discurso no momento em que falava, o que me criou um grande dilema. Comecei, então, por pedir desculpa à minha tradutora chinesa, explicando-lhe que o que iria dizer não constava no papel que lhe fizera chegar na véspera. Ora, se o tradutor não for suficientemente experiente e fluente, receio que se perca muito nas traduções simultâneas, até porque nem sempre o palestrante consegue manter-se inteiramente fiel ao guião, ou nem sempre está de acordo em ter um guião. Resolvi partilhar este episódio com o leitor para melhor o elucidar acerca do enorme potencial subjacente aos serviços de tradução português-mandarim, num contexto em que o inglês e outras línguas estrangeiras parecem cativar, por enquanto, o interesse da esmagadora maioria dos aprendizes de tradutor.

Notas finais

Portugal deve ter presente que está a lidar com uma cultura muito diferente, onde o fator tempo não possui a mesma relevância que no Ocidente. Na hora de fechar negócio, a confiança, a relação com o outro, o facea-face, têm preponderância sobre o impulso, o stress, ou a imediatez. Portugal deve ainda estar ciente de que tratar com a China é construir as bases para o futuro dos filhos dos nossos filhos. Não obstante, é ainda muito cedo para se vislumbrar resultados concretos face à Faixa e Rota, embora demasiado tarde para se voltar atrás. Por outras palavras, atingiuse o ponto de não-retorno. Ou seja, os parceiros europeus estão expetantes para ver o que de bom ou mau virá daquilo que consideram ser a excessiva abertura de Portugal relativamente à Faixa e Rota. Não é, portanto, do interesse nem de Lisboa, nem de Pequim, que tal postura seja mal-sucedida.

A correr bem, o caso português (que já é um case study na UE) pode ser um modelo a seguir por outros países europeus. Porém, se correr mal, a UE terá razões acrescidas para responsabilizar moralmente (pelo menos) Portugal por não ter mostrado solidariedade perante uma UE altamente reticente face à Faixa e Rota.

Portugal será, então, usado por Bruxelas como exemplo suscetível de mostrar a terceiros o que não deveria ter sido feito. Perante este cenário, é fundamental coligir esforços mútuos para levar a bom porto a Faixa e Rota. E, acima de tudo, importa ser-se consistente e coerente. Os sentimentos de receio ou, ao invés, as alegrias, se disso for caso, devem ser ora comemorados, ora debatidos de forma realista e minuciosa no final, de forma a não interferir ou bloquear o que está em devir.

Finalizo argumentando que, neste momento, o grande obstáculo da Faixa e Rota em Portugal (e na UE) não é logístico, mas psicológico/ identitário. Poderemos nós, que somos do Ocidente, da OTAN, da UE, e parceiros dos EUA, servir dois senhores ao mesmo tempo? A meu ver, não devemos estar reféns de nenhum monopólio ou de nenhum senhor, mas procurar retirar o máximo proveito da nossa costela simultaneamente atlântica e europeia, através da identificação de sinergias concretas a explorar no âmbito da atlantização da Faixa e Rota.

O caminho a seguir não tem necessariamente de se pautar por um binómio redutor: escolher entre este ou aquele. Sem deixar de sermos quem somos e permanecendo fiéis aos nossos parceiros de sempre, podemos, todavia, forjar uma relação (mais) promissora com a China. A postura de Portugal face às Lajes e ao porto de águas profundas na Praia da Vitória (Ilha Terceira) testarão não para já, porque é demasiado cedo, mas a médio e longo prazo até que ponto o Atlântico Norte será a última fronteira a ser superada pela China. Se fechamos a porta ou se a deixamos entreaberta pode fazer a diferença em tempos marcados pela incerteza nas relações transatlânticas, na busca de uma autonomia e identidade próprias por parte de um pequeno estado, outrora império, que nunca perdeu, para todos os efeitos, a sua essência marítima.

Bibliografia

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Chimerica Resistirá este casamento feito no céu às guerras comerciais e do COVID-19?

Fernanda Ilhéu Professora do ISEG/Universidade de Lisboa Administradora da Fundação Jorge Álvares e Presidente da Associação Amigos da Nova Rota da Seda

“A relação entre os EUA e a China ajudará a definir o século XXI” (Obama 27 de julho 2009)

A visita à China do presidente americano Nixon em 1972, marcou o começo do diálogo de cooperação entre a China e os EUA e teve uma importância muito positiva entre a cooperação dos países ocidentais de influência americana no processo de desenvolvimento da China.

Em dezembro 1978, Deng Xiaoping anunciou a Política de Reforma e Abertura (gaige kaifang). Esta importante reforma teve um impacto significativo em todos os setores da economia chinesa, mas duas medidas em particular foram determinantes no seu processo de crescimento económico subsequente, a abertura do país ao investimento estrangeiro e a autorização para que os cidadãos chineses iniciassem uma atividade económica privada. Embora estas medidas fossem implementadas de uma forma muito controlada mitigada e regulada, elas não tardaram a ter os seus efeitos e a jogarem no sentido de um crescimento económico baseado na indústria ligeira e no pequeno retalho.

Após a normalização das relações diplomáticas, da China com os EUA em janeiro 1979, conduzidas pelo lado americano por Jimmy Carter, os investidores americanos e europeus foram os primeiros a apro-

Visita de Nixon à Grande Muralha em 1972. Fonte: National Archives – Richard Nixon Presidential Library and Museum.

veitar as facilidades oferecidas pelas Zonas Económicas Especiais, criadas a partir dos anos 80, para serem os locais preferenciais desses investimentos em regime de Joint-Venture de empresas estrangeiras com as empresas estatais chinesas, mas também com os pioneiros do empresariado privado da República Popular da China, onde tudo tinha sido nacionalizado em 1949. Os chineses ultramarinos, nomeadamente nos EUA e na Europa, mas também em Hong Kong e Macau, tiveram um papel muito importante no arranjo destes casamentos empresariais que deram um enorme contributo na transferência da tecnologia e capital necessários à integração das cadeias de valor global americanas e europeias na China. Esses investimentos, de uma maneira geral, eram todos em indústria ligeira e pelo menos 80% dessa produção tinha de ser exportada.

Nos anos 90 e no início do milénio, mais de 60% do comércio externo da China era feito por empresas com capital estrangeiro, ainda em 2008, cerca de 56% das exportações e 55% das importações da China o era e a maioria dessas empresas realizava operações de processing trade, importando cerca de 50 a 80% do valor exportado em bens intermédios e produtos semiacabados.

Com a adesão da China à Organização Mundial de Comércio em 2001, a China tornou-se o estádio final das cadeias de valor global na Ásia, mas muitas dessas cadeias de valor eram e muitas ainda são, lideradas por empresas estrangeiras, nomeadamente americanas e de países da UE. Em 2008, o grau de internacionalização das empresas chinesas não era tão elevado como podia parecer à primeira vista, embora os produtos “made in China” e não “made by China”, invadissem já os mercados mundiais, cerca de 70 a 80% do valor acrescentado desses produtos transacionados nos países desenvolvidos, não ficava na China, mas era apropriado pelas multinacionais destes países que detinham as marcas e as redes de distribuição.

Com este modelo a China, em 2008, ultrapassou a Alemanha como terceira economia do mundo, com uma percentagem de 6,8% do PIB mundial, logo a seguir ao Japão com 7%, embora, ainda ambos distantes dos EUA que produziam 23% da riqueza mundial. Distante era também em 2009 o rendimento per capita da população chinesa com US$3700 por ano do da população americana com US$46900.

Nessa situação ninguém nos EUA parecia muito preocupado com a participação da China na economia global. Niall Ferguson, conhecido historiador e jornalista, defensor do liberalismo económico mundial referia na Harvard Business Review de julho de 2009, pág. 49, que a Chimerica (relacionamento entre e China e a América), era segundo ele, um casamento feito no céu, e fulcral para a globalização “Os chineses fizeram a exportação, os americanos a importação. Os chineses fizeram a poupança, os americanos a despesa. Os chineses fizeram o superavit comercial, os americanos o deficit da conta corrente. Os chineses intervieram para impedir que o Yuan se valorizasse, os americanos venderam-lhes um trilião de dólares em títulos do tesouro” e concluía dizendo que não podemos culpar os chineses se os americanos não fizeram uma boa utilização desta gigantesca aplicação financeira, que poderia ter sido um estímulo à economia americana e não o suporte de movimentos especulativos, baseados em bai-

Abraço de Jimmy Carter a Deng Xiaoping, 1979. Fonte: https://www.chinausfocus.com/societyculture/why-president-carter-is-popular-in-china

xas taxas de juro, como realmente aconteceu.

Na altura da crise financeira de 2008, a dependência do comércio externo chinês das estratégias das empresas multinacionais estrangeiras constituía uma ameaça elevada para a economia chinesa, visto que as exportações eram o principal motor do seu crescimento económico (cerca de 20% do crescimento do PIB). O perigo de desvalorização dos títulos de tesouro americano com a crise 2008 e de uma enorme perda para a China devido à enorme interdependência económica e financeira entre a China e os EUA, levou o então primeiro-ministro chinês Wen Jiabao, a publicamente anunciar no New York Times de 13 março 2019, a preocupação de que os títulos de tesouro americano desvalorizassem e a sua orientação no sentido de colaborar com os EUA para o evitar. Como afirmou Hillary Clinton na sua deslocação à China em fevereiro de 2009 “nós vamos realmente crescer ou cair juntos”. Algum tempo depois da declaração

Hu Jintao com Obama. Fonte: https://www.csmonitor.com/USA/Foreign-Policy/2010/0412/US-Chinarelations-warm-as-Obama-and-Hu-Jintao-meet

do primeiro-ministro chinês, o governador do People’s Bank of China, Zhou Xiaochuan, avançou com sugestões para reformar o sistema monetário internacional, nomeadamente lançou a ideia de utilizar os Direitos de Saque Especiais do Fundo Monetário Internacional para criar uma nova moeda internacional, para ser uma alternativa ao dólar na constituição das reservas oficiais dos países e propôs que a mesma fosse gerida por uma instituição global que assegurasse, quer a criação, quer o controlo da liquidez global, reduzindo os riscos e futuras crises. Esta proposta entrou na ordem do dia dos fóruns financeiros internacionais, tendo o Fundo Monetário Internacional admitido essa possibilidade embora a longo prazo e classificado essa decisão como revolucionária.

A China viu nessa crise uma oportunidade para começar a desalojar o dólar como a moeda de troca internacional mais utilizada, cerca de 88% das transações em moeda estrangeira no mundo envolvem o USD e, levar os EUA a perderem a vantagem de obterem empréstimos externos na sua própria moeda, na altura cerca de 69% do total de reservas globais em moeda estrangeira eram feitas em USD (presentemente 60,8%). No entanto, neste aspeto, o resultado dos seus esforços não foram tão positivos como a China aspirava, porque depois de 2008 as transações de moeda estrangeira em US dólares aumentaram em termos relativos e absolutos e ainda hoje de acordo com o Fundo Monetário Internacional, apenas 4% das transações mundiais em moeda estrangeira envolvem o RMB e, nas reservas financeiras globais o RMB tem o modesto peso de 1,96%, embora a China detenha a maior reserva financeira no mundo em US dólares, cerca de 3 triliões*, praticamente 27% do total global.

Mas já no que diz respeito à face económica desta situação financeira, a China aproveitou bem a crise de 2008 para se posicionar para o desafio da liderança económica mundial do século XXI, relançou a sua economia primeiro que os EUA e os países da UE. Os estímulos financeiros à economia decididos pelo Conselho de Estado do governo chinês, logo em 2008, foram fundamentalmente a redução das taxas de juro, o aumento dos empréstimos bancários e a injeção de estímulos pecuniários no valor de US$586 biliões, valor correspondente a 4 triliões de Yuan (equivalente a 13,3% do PIB da China em 2008), com o objetivo de reestruturar e subsidiar a indústria, realizar infraestruturas, aumentar o consumo interno e aumentar o rendimento dos agricultores e camponeses pobres. Com estes estímulos a economia chinesa começou logo a recuperar no 1º trimestre de 2009 a um ritmo de 8% e a partir do 3º trimestre esse crescimento passou a ser de 10%. Esta medida teve também um forte impacto no suporte à economia global – a China passou a ser responsável por 30% do crescimento da economia mundial. A partir de 2010 a China começou a apoiar a zona euro com a compra de títulos da divida soberana dos países da zona euro e a partir de 2011 começou a entrar no capital de importantes empresas desses países e realizou também significativas compras a empresas europeias, como 62 aviões A320 à Airbus no valor de €10,6 biliões. Em Portugal, recordamos a partir de 2011 a compra de capital de empresas como a EDP, a REN, a Fidelidade, o BES Investimento, a ES Saúde hoje Luz Saúde e o BCP entre outros.

Os americanos mostraram-se mais receosos que os europeus no aumento de participação da China na sua economia, quer com o reforço de títulos de tesouro americano, o que acabou por acontecer, quer da entrada de capital de empresas chinesas no capital de empresas ame-

ricanas, mas de qualquer forma na reunião do G20 em Londres a 1 de abril de 2009, sobre a crise global financeira, o Presidente Obama e o Presidente Hu Jintao concordaram “em trabalhar em conjunto para resolutamente suportarem os fluxos de comércio e investimento global” e “para resistir ao protecionismo”.

Na cimeira EUA – China em Washington DC em 27 de julho de 2009 para lançar um novo diálogo estratégico e económico entre os dois países, o Presidente Obama no seu discurso de abertura declarou “A relação entre os EUA e a China ajudará a definir o século XXI”.

Em 2012 a China era já a segunda economia do mundo depois de o seu PIB ter ultrapassado o PIB japonês em 2010 e o seu rendimento per capita anual ter crescido 60% face a 2009, situando-se em cerca de US$6000 enquanto o per capita americano tinha nesse período crescido 10,2% para um valor de US$51700.

Apesar dos progressos registados pela economia chinesa, o seu PIB per capita como vimos continuava baixo e, com uma distribuição muito desigual entre as suas províncias, a população urbana e rural, entre jovens e velhos e um grande diferença entre os mais pobres e os mais ricos, apresentava também necessidades de investimento cada vez maior para o mesmo nível de produção, estagnação das exportações, uma percentagem ainda diminuta do consumo interno no total do PIB. A economia dava sinais de capacidade produtiva excedentária, a oferta de mãode-obra estava já a decrescer, créditos mal parados, ao mesmo tempo a corrupção minava muitas empresas estatais e membros do governo.

Hu Jintao com Hilary Clinton. Fonte: https://editorials.voa.gov/a/clinton-on-north-korea-114598599/1482289.html

Em 2012 a nova liderança chinesa liderada por Xi Jinping e com o primeiro-ministro Li Keqiang introduziu mudanças substanciais para efetuar uma reestruturação estrutural da economia, com o objetivo de combater os problemas acima enunciados e a “Armadilha do Rendimento-Médio”, uma série ameaça ao crescimento sustentável da China que começava a registar um ritmo de crescimento do PIB de taxas de 7% ao ano, longe dos 10% a que estivera habituada nos últimos 35 anos e com tendência decrescente.

Alguns reputados economistas começaram a colocar em dúvida o futuro da economia chinesa. Paul Krugman em 2013 afirmou que a China estava “about to hit its Great Wall”, para ele a questão, não era se existiria um crash na economia chinesa, mas quando.

O 12º Plano Quinquenal (20112015) previa um “crescimento inclusivo” orientado pela sustentabilidade e pela qualidade com dois importantes vetores, a mudança de dependência do crescimento baseado nas exportações e no investimento para o crescimento baseado no consumo interno, e a proteção do ambiente com a redução das taxas de emissão de carbono 40 a 45% até 2020.

Mas as duas grandes iniciativas desta liderança para restruturação económica foram a “Faixa e Rota e a Rota Marítima da Seda do Século XXI” e a “Made in China 2025” a primeira foi iniciada em 2013 e a segunda em 2015.

A Faixa e Rota atualmente internacionalmente conhecida por Belt and Road Iniciative (BRI) é internamente considerada uma estratégia para o desenvolvimento das províncias mais pobres do norte e a ocidente e para uma maior globalização das províncias mais desenvolvidas a sul e a oriente e externamente é uma visão de uma nova forma dos países interconectarem as suas estratégias

A Guerra entre os EUA e a China aquece. Fonte: https://news24online.com/world/coronavirus-effect-usa-alleges-chinese-cyber-attacks-on-covid-19-research/11025/

de desenvolvimento, complementando as suas vantagens competitivas, uma dinâmica de globalização que permitirá à China aprofundar a sua abertura e fortalecer a sua cooperação sobretudo com países da Ásia e Europa, mas também com a África e o Resto do Mundo.

Em 2015 cerca de 65 países tinham declarado o seu interesse em cooperar com a China nesta iniciativa e, de acordo com o Banco Mundial, este conjunto de países em conjunto com a China, representavam 62% da população e 30% do PIB mundial e detinham 75% das reservas de energia globais. De acordo com o portal oficial da BRI em julho 2019, 30 organizações internacionais e 136 países, incluindo países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, estavam já a cooperar com a China na BRI e o número de projetos de desenvolvimento acordados entre governos era de 195, com uma cobertura geográfica que ía da Eurásia à África, à América Latina, ao Sul do Pacífico e a países da Europa Ocidental. De 2013 a 2018 o valor de comércio em bens transacionados com esses países foi de US$6 triliões, cerca de 27,4% do total de comércio externo da China e o Investimento Direto da China nesses países foi de US$90 biliões a que se deverão acrescentar mais de US$410 biliões em contratos de construção de infraestruturas. Só para referir o aumento de redes ferroviárias entre a Europa e a China, referimos que presentemente 17 000 comboios expresso circulam de 62 cidades chinesas para 53 cidades europeias em 16 países e que a carga transportada da China para a Europa ocupa 99% da capacidade desses comboios e da Europa para a China 88%. Lamentavelmente esses comboios ainda não chegam a nenhuma cidade portuguesa.

Os objetivos da iniciativa “Made in China 2025” visam colocar a China na vanguarda da ciência e tecnologia para transformar a China no país

Quadro 1. Dependência das Empresas com Capital Estrangeiro no Comércio Externo da China

Número de Empresas com Capital Estrangeiro

Número

% no Total Exportado pela China

% no Total Importado pela China

% de Exportações realizado por Unidades de Processamento de Exportações

% de valor importado de bens intermediários e semiacabados nos produtos exportados 2006

560 000

58%

60%

60%

50 a 80%

Fonte: Chinese Statistical Yearbook (2007-2018) 2017

599 878

43,1%

45,7%

32%

22%

mais inovador do Mundo até 2050. Com metas concretas de a curto e médio prazo reduzir a sua dependência da tecnologia estrangeira e aumentar a incorporação doméstica na sua cadeia de valor, com produtos intermediários e semiacabados feitos na China para 40% em 2020 e para 70% em 2025.

O Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais do governo chinês descreve esta iniciativa, diretamente inspirada pelo Plano Indústria 4.0 da Alemanha, como um projeto para mover a cadeia de valor da indústria na China para níveis de mais elevada integração e valor por forma a torná-la competitiva com a cadeia de valor industrial dos EUA. Pretende que a China deixe de ser um país dos produtos baratos e da mão de obra a baixo custo, para passar a ser terra de engenheiros e trocar a etiqueta de ‘Feito na China’ para ‘Inventado na China’. As indústrias mais visadas são a farmacêutica e de equipamentos médicos, a automóvel, o transporte ferroviário, a aeroespacial, a de semicondutores, a robótica, a tecnologia de informação, a IoT, o big data, a inteligência artificial, os serviços financeiros tecnológicos. A China sabe que no atual cenário de competitividade internacional dominar a inovação é essencial para se ter uma voz no xadrez económico e político mundial. A China está já na vanguarda de dossiers como inteligência artificial, robótica, veículos autónomos, tecnologia de telecomunicações 5G, biotecnologia, produtos farmacêuticos, fintechs entre outros.

A China tem conseguido progressivamente diminuir a dependência na sua produção e comércio externo das empresas estrangeiras nas cadeias de valor global integradas na China. Como se pode ver pelo Quadro 1, a percentagem das exportações chinesas feitas pelas empresas com capital estrangeiro era em 2017 de 43,1% no total de exportações da China, longe dos 58% registados em 2006 e com apenas 32% a ser produzido por unidades de processamento de exportação quando em 2006 essa percentagem era de 60%. Também o valor de importações registado em 2017 por empresas com capital estrangeiro era de 45,7% e em 2006 esse valor era de 60%. De referir ainda que a incorporação de bens intermediários e semiacabados importados reduziu-se de 50 a 80% em 2006 para 22% o que quer dizer uma incorporação de cerca de 78% feita na China.

Possivelmente devido ao crescimento do peso da economia chinesa na maioria dos mercados mundiais, em janeiro 2017, no World Economic Fórum em Davos, o Presidente dos Estados Unidos anunciou a sua visão protecionista e uma guerra comercial com a China. De 2017 até agora, o mundo tem vindo a assistir a essa guerra com ameaças, aumentos de tarifas alfandegárias e algumas cedências de parte a parte.

Para compreendemos a interdependência entre a China e o mercado mundial devemos ver também o peso dos produtos produzidos na China e consumidos na China em percentagem da produção mundial e do consumo mundial (Quadro 2) e nesse contexto a China, se é um grande produtor, é também um grande consumidor e os grandes produtores mundiais, nomeadamente as empresas americanas, não podem retirar-se do mercado chinês,

Quadro 2. Peso da Produção e Consumo da China na Produção e Consumo Mundial

Produtos

Computadores Equipamentos Elétricos Máquinas Automóveis Têxteis Química

Fonte: Mckinsey Global Institute 2020 Produção da China 49% 59% 47% 33% 58% 42% Consumo da China

38% 54% 44% 33% 46% 40%

onde o modo de entrada é fundamentalmente através do investimento direto e não da exportação, sob pena de perderem significativas quotas do mercado global.

Assim convém analisar o impacto desta guerra comercial nas cadeias de fornecimento das empresas americanas na China e pela leitura do inquérito sobre este tema realizado pela American Chamber of Commerce na China (AMCHAM) entre setembro e outubro de 2019 a 70 grandes empresas associadas, 96% das quais ativas na China há mais de 10 anos e 63% com operações em mais de 10 províncias na China podemos concluir o seguinte:

1. 90% das empresas inquiridas sofreram um impacto negativo nas operações das cadeias de fornecimento das suas operações o que as obrigou a diversificar a sua base de fornecimento, e a adotar uma gestão de riscos adicional e medidas de controlo de custos.

2. Metade das empresas declararam que os seus custos tinham aumentado 10% devido às tarifas alfandegárias e 30% tiveram aumento de custos em 16%.

3. Cerca de 20% das empresas declararam que nos últimos 2 anos estavam a deslocalizar a produção para fora da China para minimizar o custo dessas tarifas. 4. Muitas empresas estão a utilizar a estratégia de cadeia de fornecimentos “In China, for China” no que diz respeito à produção e fornecimentos para responder à procura do mercado chinês. Para melhorar a sua competitividade no mercado a maioria dos inquiridos está a investir em inovação e em transformação digital para ser competitivo na China.

5. Cerca de um terço destas empresas está a considerar ou já a planear uma estratégia completa de transformação das suas cadeias de fornecimento.

6. Cerca de 63% das empresas estão já a investir em novas tecnologias para produção automática e melhoria de competitividade.

7. A maioria das empresas americanas continua esperançada que a relação entre a China e os EUA seja saudável e que o meio ambiente legal chinês as encoraje a investir mais na China. Nomeadamente pretende uma maior proteção dos direitos de propriedade intelectual, políticas preferenciais para atividades industriais por empresas estrangeiras e um maior acesso aos mercados.

8. As principais preocupações de 60% das empresas são um arrefecimento da economia global e a deterioração das relações dos

EUA com a China e os seus efeitos na sua cadeia de fornecimentos nos próximos 3 anos. 9. 93% das empresas americanas inquiridas sentem que as economias chinesa e americana são demasiado grandes e interconectadas para se separarem. Essa separação irá impor danos e maior incerteza a ambas as economias.

A perda de competitividade da China em custos era já uma realidade em 2009, se analisarmos o custo de mão-de-obra por hora de trabalho nessa altura o custo na China era de US$2,03 e para citar alguns países mais competitivos para onde a cadeia de fornecimentos das empresas americanas se podiam deslocar, comparamos esse custo com praticado na altura no Vietnam US$0,44, na Indonésia US$0,7, na Índia US$0,92 e no México US$2,1.

Não entanto as empresas americanas não abandonaram as suas operações na China por causa desse aumento de custos, um estudo feito pela AMCHAM Shanghai em 2008 concluía que 90% dos seus associados não tencionava abandonar as suas operações de produção na China nos próximos 5 anos, e apontavam várias razões para isso, como um largo network de fornecedores e infraestruturas que não se encontravam em outros países, mas também o mercado interno da China.

Presentemente o fenómeno do aumento de custos na China está a ser contornado pelo novo foco da China em inovação.

De 2015 a 2019 a China subiu 15 lugares no Índice Global de Inovação passando a ocupar o 14º lugar. Em 2017 a China era já o segundo país do mundo com maior despesa

em inovação no setor público e no privado com US$452 biliões logo a seguir aos EUA com $511 biliões.

Só para referir a já liderança chinesa em termos de publicação de patentes no setor de saúde podemos ver o Quadro 3.

A China é já o maior mercado de empresas financeiras tecnológicas (fintechs) no mundo. O relatório de outubro de 2018 da H2 e KPMG referia que 4 das 10 maiores fintechs do mundo são chinesas. De acordo com a Accenture o valor das fintechs chinesas em termos de investimento foi em 2018 de US$25,5 biliões, 46% do total mundial. Em 2018 só a empresa sediada em Hangzhou, a Ant Financial ligada ao Grupo Alibaba, conhecida pelo seu serviço de pagamentos online a Alipay, conseguiu recolher US$14 biliões de investimento, a maior operação de fintech no mundo. A segunda maior operação de fintechs foi também chinesa, a Xiaoman Finantial, uma spin-off do motor de busca Baidu que obteve US$4,3 biliões em 2 operações. Esta liderança chinesa não é surpreendente porque por um lado as necessidades de capital para desenvolver os negócios à escala do mercado chinês são enormes e por outro os serviços financeiros na China, nomeadamente bancários não estão bem desenvolvidos e as fintechs têm na China um sistema regulatório menos constrangedor que no Ocidente e permitem a empresas como a Alibaba (Alipay) e a Tencent (Wechat) oferecerem serviços financeiros. Agora a maioria das transações financeiras na China fazem-se pelo telefone móvel, praticamente o dinheiro deixou de ser utilizado até para pagar um café se usa o telemóvel.

Os principais centros de transação das fintechs são Nova Iorque, Londres, Pequim, Xangai, Singapura, Hong Kong e Mumbai, os valores transacionados crescem cerca de 18,4% ao ano e em 2022 deverão alcançar globalmente os US$8,4 triliões.

Em outubro de 2019, Xi Jinping afirmou que o desenvolvimento da tecnologia blockchain é uma das prioridades do governo chinês para acelerar o crescimento da indústria. Em 25 de abril 2020, tivemos conhecimento que a China ia lançar a sua cripto-moeda que estava a ser desenvolvida desde 2014. A China irá lançar a sua plataforma nacional blockchain a BSN (Blockchain Service Network) para o setor financeiro, o que será o primeiro passo fundamental antes de lançar o seu projeto financeiro global – a cripto-yuan, a moeda digital garantida pelo governo chinês.

A China encara esta iniciativa como uma forma de competir com o dólar no mercado de pagamentos digitais. Em abril os primeiros screenshots do yuan digital apareceram online e o teste começou em 4 regiões piloto, Shenzhen, Hong Kong, Chengdu e Suzhou com uma lista de clientes do Agricultural Bank of China o 7º do mundo em termos de lucro líquido. Em abril as empresas de Suzhou tinham intenção de pagar 50% dos subsídios de transporte aos trabalhadores locais na nova moeda digital. Esta iniciativa não é inédita no mundo, os governos de países da EU, da Coreia do Sul, Rússia e Sué-

Quadro 3. Os 10 Mais em Publicação de Patentes no Setor da Saúde

Países

EUA

China

Japão Alemanha

R. da Coreia

Suíça

França Reino Unido

Holanda

Dinamarca Biotecnologia

126 581

92 107

33 818

24 094

20 451

15750

15 292

12 697

9 237

7 942 Países

China

EUA

Japão Alemanha

Suíça R. da Coreia

França Reino Unido

Rússia

Itália

Produtos Farmacêuticos

214 992

204 057

45 850

38 279

33 694

28 036

25 814

21 697

11 566

10 286

Fonte: Índice Global de Inovação 2019, Cornell SC Johnson College of Business, INSEAD, WIPO Países

EUA

Japão China

Alemanha

R. da Coreia

Holanda

Suíça

França Reino Unido

Rússia Tecnologia Médica

284 223

116 745

115 805

62 050

43 533

21 984

21 909

20 643

19 643

16 171

O COVID-19 acrescentou pressão às já tensas relações entre os EUA e a China. Fonte: https://www.npr.org/sections/goatsandsoda/2020/02/14/806096040/for-u-s-and-china-coronavirus-adds-pressure-to-relationship-already-understrain?t=1592232665425

cia entre outros já anunciaram a sua intenção de criar cripto-moedas estatais e bancos centrais de moedas digitais. Alguns analistas consideram que estamos a entrar numa nova era do fim do dinheiro físico para a nova forma de pagamento a digital e que nesta nova forma de pagamento o yuan concorrerá em pé de igualdade com o dólar americano.

De acordo com a Hurum Global Unicorn List 2019, a China reúne já o maior número de unicórnios (Startups com valor superior a US$1 bilião). Dos 494 unicórnios existentes, cerca de 206 são empresas chinesas, 203 americanas e 21 indianas. Pequim é a capital de unicórnios com 82 à frente de São Francisco com 55. Se em 2017 a preocupação expressa em Davos pelo presidente americano Donald Trump eram as trocas comerciais desfavoráveis aos EUA, o que justificava as medidas protecionistas que implementou a seguir, mas que prejudicaram também as empresas americanas, em 2020 a sua preocupação será também o elevado progresso da inovação ciência e tecnologia chinesas e, talvez por isso esteja a aproveitar o vírus COVID-19, que apareceu pela primeira vez na China em dezembro 2019, para promover uma guerra de opinião pública mundial contra a China, acusando-a de intencionalmente o estar a utilizar para criar vantagem económica e politica, mas como referia o Embaixador Francisco Seixas da Costa na revista Visão de 7 maio 2020 “Já se percebeu que os EUA optarão por alimentar cada vez mais teorias conspiratórias contra a China, que deem a Trump um inimigo externo que o ajude a renovar o seu poder externo”.

Para compreender o impacto do COVID-19 nas operações das cadeias de fornecimento das empresas americanas a operar na China e o impacto nas relações comerciais bilaterais às tensões entre o governo americano e o governo chinês, podemos analisar as conclusões do inquérito realizado pela AMCHAM de 6 a 13 março de 2020 em suplemento ao realizado em 2019 e já referido acima. O inquérito tinha por

alvo executivos seniores de grandes empresas americanas (definidas como as que tinham uma receita global superior a US$500 milhões) na China, no negócio de produtos industriais, bens de consumo, saúde e indústrias do setor de tecnologias de informação. Responderam a este inquérito 25 empresas todas com mais de 10 anos de experiência de gestão de operações na China e a maioria estava na China há mais de 20 anos.

De acordo com as conclusões deste inquérito, 68% dos inquiridos esperava o retorno à normalidade das suas atividades em 3 meses e 96% esperavam que isso acontecesse entre 3 e 6 meses. Cerca de 84% dos inquiridos a curto-prazo não tem planos para relocalizar a sua produção ou a sua cadeia de fornecimentos na China, 12% estava a considerar ajustar a sua produção e/ou cadeia de fornecimentos para outros locais na China e 4% tencionava fazê-lo para fora da China, em relação às operações de sourcing 72% das empresas americanas inquiridas não considera efetuar quaisquer alterações e 24% pensa que poderá efetuar ajustes para outras regiões da China ou fora da China e apenas 4% afirma a sua intenção de cessar a sua operação de sourcing na China. Quanto ao longo-prazo, cerca de 40% afirmaram que a sua estratégia da cadeia de fornecimentos para a China continuará a mesma independentemente do COVID-19, mas 52% consideram que é muito cedo para saber.

No entanto os entrevistados indicaram que existe agora um maior potencial de dissociação económica entre os EUA e a China em comparação com o inquérito de 2019, no entanto 36% afirmou que não existirão mudanças, 44% considera essa dissociação impossível e apenas 20% afirma que COVID-19 irá acelerar a separação.

Em 15 abril 2020, a Newsweek noticiava declarações de Jimmy Carter em que ele afirmava que Trump tinha medo da força do crescimento chinês e que os modelos de previsão indicavam que a economia chinesa ultrapassaria a americana em 2030 e que muitos falavam já no “século chinês”, ele disse que não tinha esse receio, mas adiantava que o crescimento chinês tinha sido facilitado por um investimento sensato e pela paz e afirmou “desde 1979 sabem quantas vezes a China tem estado em guerra com alguém? Nenhuma e nós temos estado em guerra” ele afirmou que os EUA apenas tiveram 16 anos de paz em 242 anos de história, tornando-o “na nação mais bélica na história do mundo” isto porque a América tem a tendência de forçar as outras nações a “adotar os nossos princípios americanos”.

Ele questionava a audiência sobre quantas milhas de caminho-de-ferro de alta velocidade tinham sido construídas nos EUA enquanto a China construía 18 000 milhas, os EUA gastavam US$3 triliões em despesas militares e acrescentava “se tivéssemos investido US$3 triliões nas infraestruturas americanas possivelmente sobrariam US$2 triliões e teríamos caminhos-de-ferro de alta velocidade, as pontes não estavam a colapsar, as estradas estariam a ser bem preservadas. O nosso sistema educativo seria tão bom como o da Coreia do Sul ou Hong Kong”.

O presidente Trump tem de facto razões para recear o crescimento da China, mas deverá considerar se a melhor estratégia será a cooperação e ajustamento como fazem as empresas americanas na China, com ganhos para ambas as partes ou o conflito e a criação de um cenário de guerra fria com uma permanente tensão militar e económica com perdas para todos. Porque passada a pandemia, a China, que já está a criar estímulos à sua recuperação económica e é o primeiro país do mundo a iniciar esse processo, vai emergir como o grande mercado e a grande fonte de capital que poderá sustentar a recuperação da economia mundial e como tal de enorme importância para as empresas americanas e para a economia americana.

* Utilizamos neste artigo a nomenclatura americana para referir os valores em US dólares.

Fonte: https://big5.ftchinese.com/story/001079497?archive

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