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Figura 2 - Reproduções de matriz xilográfica

2. O MOTE

O trabalho Não Me Deixe Intacto: Os Ex-Votos iniciou-se através de um projeto artístico pessoal de criação e confecção de serigrafias que não recebem intencionalmente numeração, assinatura e não sofre qualquer edição numérica ou plástica do artista criador sobre as mesmas. Os questionamentos que impulsionaram este trabalho surgiram durante a reprodução de uma matriz de xilogravura e também diante de uma pesquisa pessoal realizada durante a realização das Oficinas Gráficas em Xilogravura e Serigrafia entre os anos de 2012 e 2013 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV) no Rio de Janeiro. Após completar a Oficina Gráfica em Xilogravura com o Professor e artista Júlio Castro na EAV, passei a criar minhas matrizes e reproduzi-las em meu atelier. Foi durante a reprodução de uma dessas matrizes, justamente a primeira efetuada e confeccionada em madeira de cedrinho (figura 1) durante a oficina de xilogravura, que me dispus a observar mais atentamente os meus atos ao entintar e em seguida de imprensar a peça de madeira contra o papel de seda (figura 2).

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Figura 1: Matriz em cedrinho confeccionada durante Oficina de Xilogravura.

Esses cuidados me remeteram às recomendações recebidas para a produção das estampas quando participei do curso Oficina Gráfica: Xilogravura na Escola de

Artes Visuais do Parque Lage. A exemplo, cito a necessidade de um cuidado de caráter exigente quanto ao aspecto uniforme e quase homogêneo que deve vigorar na limpeza e acabamento do trabalho e a necessidade de que todas as estampas produzidas estejam extremamente similares entre si para uma posterior edição e consequente finalização com uma assinatura, um título (não obrigatório) e a numeração (número de série) conforme as regras adotadas dentro do mercado de arte de gravura.

Assim, surgiram uma série de questionamentos que impulsionaram, serviram de mote, ao trabalho aqui apresentado. Essas questões são:

• Deixariam de ser de minha autoria as cópias ali produzidas se não estivessem intencionalmente assinadas? • Seriam elas autênticas por não obedecerem àquilo que é convencionado por um mercado de arte - um rigoroso controle de similaridade e da produção do

Figura 2: Reproduções com a matriz confeccionada no Parque Lage.

número de cópias adicionado a esses a existência de uma assinatura - enfim, uma edição? • E se tais atitudes fossem deliberadamente desejadas em um trabalho gráfico?

As estampas deixariam de ser consideradas gravuras?

Colocando-nos sob as necessidades do mercado, podemos responder diretamente a essas questões apenas aceitando que para que uma gravura seja considerada como tal e também entendida como um objeto de arte autêntico e original, é necessário que possua certificado de autenticidade e carregue uma série de marcas que confirmam que ela é realmente o trabalho realizado por determinado artista. É impossível, no meu entender, não correlacionar tais colocações com o que foi escrito por Walter Benjamin em seu ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica a respeito da natureza dessas reproduções feitas através de aparatos mecânicos. Principalmente sobre o que deve ser considerado original e autêntico.

Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a história da obra. Essa história compreende não apenas as transformações que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, como as relações de propriedade em que ela ingressou. Os vestígios das primeiras só podem ser investigados por análises quimícas ou físicas, irrealizáveis na reprodução; os vestígios das segunda são o objeto de uma tradição, cuja reconstituição precisa partir do lugar em que se achava o original. O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica. (BENJAMIN, 1996, p. 167)

O que Walter Benjamin admite na colocação acima é que há transformações que são sofridas por uma obra através da passagem do tempo, mas testes para tal fim são impossíveis - ou assim o eram na época que escreveu seu ensaio - portanto, segundo ele, foram criados critérios, isto é, dispositivos para provar que determinado objeto artístico é autêntico através da criação de uma tradição (um conjunto de

regras) que assim assegura seu caráter superior em frente a um objeto banal e fruto de um ato puramente mecânico. É importante para prosseguirmos, detalhar o significado da palavra dispositivo conforme entendido nesta monografia. O significado dessa palavra neste trabalho se encontra alicerçada segundo as colocações de Giorgio Agamben no ensaio O que é um dispositivo?:

a. É um conjunto heterôgeneo, linguístico e não linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edificações, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. b. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder. c. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber. (AGAMBEN, 2009, p.29)

E mais adiante prossegue:

Certamente o termo no uso comum como no foucautiano, parece remeter a um conjunto de práticas e mecanismos (ao mesmo tempo linguístico e não linguístico, jurídico, técnico e militares) que tem o objetivo de fazer frente a uma urgência de obter um efeito mais ou menos imediato. (AGAMBEN, 2009, pp.34,35)

Assim, sob a descrição do significado desse conceito por Giorgio Agamben, o significado dos termos original, autêntico e aura benjaminiano são, em realidade, um conjunto de dispositivos – mecanismos – que são utilizados para qualificar determinada obra de arte, pois o direciona a um entendimento qualificador. Já nas primeiras páginas do ensaio A Era de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica, Walter Benjamin insere um conceito de aqui e agora (hic et nunc). Entretanto, ele não se aprofunda objetivamente sobre o mesmo em momento algum. Apenas faz sugestões de ordem subjetiva do que seria esse conceito, próprio unicamente de objetos produzidos pela mão dos homens. Mesmo ao falar da aura, que poderíamos compreender como um aprofundamento do aqui e agora se assim desejássemos, a sua discrição ainda se mantém superficial e subjetiva:

Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar em repouso, numa

tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. (BENJAMIN, 1996, p. 170)

Quando Walter Benjamin estipula que a aura e a obra artística original é singular e explica – comprova a existência dela – através de fatores e características tão subjetivos quanto a experiência de uma sombra projetada sobre nós, percebo uma escolha pessoal sobre algo pouco palpável. A pergunta que me faço é: estão todos que experienciam determinada circunstância descrita por Benjamin na mesma sintonia descrita por ele e consequentemente disponíveis a vivenciar o momento da mesma maneira da que foi descrita pelo autor? Cada um não compreenderá essa experiência de acordo com suas experiências anteriores e capacidades particulares? Ela está sobre o objeto ou sobre o olhar de seu observador? Se tal comprovação está relacionada a uma experiência desse tipo, ela só poderia acontecer diante de um fenômeno natural ou de um objeto único? Por que não seria possível a um objeto múltiplo que ele carregue os elementos espaciais e temporais do instante e do local em que ele é confeccionado? Ainda assim a compreensão de um aqui e agora é a base sobre a qual o dispositivo de Walter Benjamin é criado para qualificar uma obra como original, autêntica e possuidora de uma aura. Porque uma experiência tão subjetiva deveria ser a prova de algo de aspecto claramente objetivo como a qualidade de um objeto? Entendo que não há como afastar tais colocações benjaminianas da postura política de seu autor. Sua inclinação socialista e consequentemente à visão que tal conjunto de ideias proporciona, acaba por se refletir firmemente no conteúdo de seu ensaio. Podemos perceber isso sem que haja dúvidas logo após descrever o significado do termo aura. Benjamin segue a falar dos movimentos de massa e do caminho que esses seguem na modernidade, desqualificando, ou segundo suas palavras, condicionado o declínio do que ele entende por aura, o que não difere do ato de Giorgio Agamben ao definir a ideia de dispositivo e contradispositivo, esse último também por ele denominado como profanação. Giulio Carlo Argan no livro Arte Moderna, esclarece essa postura em determinados artistas e pensadores. É através desse pequeno excerto que faço aqui a ligação entre socialismo e a ideia benjaminiana de aqui e agora. Um hic et nunc que só é realmente possível, de acordo com esse linha filosófica, fora da reprodução em série típico das fabricas surgidas no século XIX.

De acordo com esses pensadores os homens estavam alienados de sua essência que só era possível encontrar através de um trabalho manual, um ideal claramente marxista:

Pintar significa dar ao quadro um peso, uma consistência maior das coisas vistas: em suma, fazer o que se vê não é o mesmo que imitar a natureza. Qual é a distância e o percurso entre a coisa vista, que logo desaparece, e a mesma coisa pintada, que permanece? Nada mais do que a feitura, o trabalho manual do artista (Marx teria dito: força de trabalho). Assim, o trabalho do artista se torna o paradigma do verdadeiro trabalho humano, entendido como presença ativa ou mesmo indistinção entre o homem social e a realidade. O artista é um trabalhador que não obedece à iniciativa e não serve ao interesse de um patrão, não se submete à lógica mecânica das maquinas. É em suma, o tipo de trabalhador livre, que alcança a liberdade na práxis do próprio trabalho. (ARGAN, 2010, p. 34)

Argan se refere, no trecho acima, exclusivamente ao ato da pintura se eximindo do desenho que era utilizado de maneira prioritária para a formulação de projetos artísticos e da escultura que possuía a funcionalidade da criação/manutenção de vultos públicos. A pintura havia sido tomada, durante séculos, como o meio principal utilizado, até o nascimento da fotografia, com a nobre função do ato de capturar a imagem e fatos históricos de um presente para relegá-los como herança às gerações futuras. Um agir completamente manual. Com o advento da fotografia esse quadro mudou. Porém, a pintura por ser um trabalho manual, não mimetizava apenas a natureza mas era o paradigma do trabalho humano versus o mecânico alienante que diminuía o homem. Na gravura, a reprodução era feita pela máquina, mas as matrizes, eram criadas de forma manual. Assim, entendia-se que as reproduções dessa que havia surgido muito anteriormente a Revolução Industrial, precisamente por volta do século XV, se prestava a finalidade de divulgação de uma imagem a um número maior de pessoas de maneira similar as cópias pintadas acima citadas por Walter Benjamin. Quando a gravura passou a fazer parte do mercado de arte, foram estabelecidas regras – dispositivos – para protegerem e resguardarem artistas e compradores de fraudes e de eventuais falsificações e determinarem quais era as originais, autênticas e possuidoras de aura.

Um dos exemplos de acontecimentos dessa natureza foi o III Congresso Internacional de Artistas realizado em Viena em 1960 e até o mais recente e prestigiado concurso internacional de obra gráfica SAGA que foi realizado em Paris no ano de 1996. No SAGA, por exemplo, se afixaram a adoção de parâmetros que são seguida pelo mercado na atualidade. Vejamos esses dispositivos conforme afixados durante o SAGA em 1996:

Definição proposta em 1996, na SAGA, elaborada pela Câmara Sindical e o comité de SAGA em forma de disposição constitucional: - A estampa original é uma expressão plástica voluntariamente escolhida pelo artista, como, por exemplo, a pintura, o desenho, a fotografia ou a escultura. - O autor cria uma matriz no suporte, que pode ser de metal, madeira, pedra ou qualquer outro material. - O autor pode utilizar um ou vários suportes diferentes, ou técnicas diferentes para criar uma estampa original. A estampa original é uma obra de arte de que podem existir vários exemplares, de acordo com a vontade do artista. As estampas que não tenham sido realizadas pelo autor da assinatura, ou sob a sua constante supervisão, devem assinalar-se claramente como <<estampas de interpretação>>. - A estampa original e uma criação total do artista, amiúde realizada por conta de um editor, em colaboração com o impressor ou uma oficina. - A estampa original contemporânea é geralmente assinada e numerada, o que a diferencia da estampa antiga (e, também, às vezes da estampa moderna). Contudo, em algumas obras de bibliófilo há estampas que não estão assinadas e que se consideram originais. - A autenticidade da assinatura, a verdade da numeração, a veracidade da documentação são responsabilidade do sócio comanditário da tiragem, do editor e do próprio artista ou do proprietário da obra. Ao vendedor compete, portanto, seja quem for, comprovar a autenticidade e garantir a documentação do trabalho que comercializa. (CATAFAL; OLIVIA, 2003, p. 11).

Tais atitudes de Walter Benjamin e do mercado, se correlacionam ao conceito de dispositivo de Giorgio Agamben, que está baseado no pensamento de Michel Foulcaut que em A Arqueologia do Saber nos anos sessenta – conforme as considerações de Agamben em seu ensaio aqui citado – utilizava um termo próximo etimologicamente, positivité e que na segunda metade dos anos setenta adotou definitivamente o termo dispositivo para analisar o governo dos homens, que é na realidade uma atitude puramente política.

Em seu texto, Agamben prossegue demostrando durante breve genealogia da palavra positivité, a ligação de Michel Foucault com o seu auto denominado mestre, Jean Hyppolite que também havia utilizado a palavra positivité em sua Indroduction à La philosophie de l´histoire de Hegel (AGAMBEN, 2009, p. 30). As ideias de destino e positividade são apontados como conceitos-chave do pensamento hegeliano e são relacionadas a oposição estabelecida entre religião natural e religião positiva. Esses dois conceitos estabelecem que a religião natural é relacionada a relação da razão humana com o divino e que a religião positiva à um conjunto de crenças, regras e ritos que são impostos para governar e gravar intimamente nos indivíduos de uma determinada sociedade em um momento histórico certos sentimentos e comportamentos, uma clara relação de comando e de obediência. Estabelecendo-se assim uma relação oposta entre natureza e positividade, liberdade e coerção, razão e história (AGAMBEN, 2009, pp. 29,30,31). A criação de termos para qualificarem um objeto como autêntico por Walter Benjamin é na realidade esse conjunto de práticas e mecanismos descrito por Giorgio Agamben. O efeito mais ou menos imediato é a valorização ou desvalorização de um objeto, isto é, dizer se o mesmo possui ou não determinadas qualidades – essas escolhidas por Benjamin ou através dos tempos por um mercado de arte – que o estabelecem como tal.

[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. (AGAMBEN, 2009, p. 40)

Não é justamente isso o que as ideias de Benjamin ou os preceitos do mercado fazem com um objeto dentro de suas fronteiras? Essas ideias não estão capturando e orientando o mesmo? Não determinam se eles têm ou não valor? Não o modelam como original ou cópia? Como autêntico ou fraude? Possuidor de aura ou não? Não asseguram assim as condutas e opiniões das pessoas em um determinado sentido? Retornando ao momento em que me fiz os questionamentos acima citados, surgiu o desejo da criação de um trabalho que não seguisse essas regras e que não deixasse de ser uma gravura. Foi assim que surgiu o mote para Não Me Deixe

Intacto: Os Ex-Votos que estaria sob uma égide diversa da que se encontram geralmente outras gravuras no momento. Assim foram criados contradispositivos próprios, unicamente meus que agiriam como métodos para a realização deste trabalho e que seguem agora abaixo relacionados: • Não assinar a cópia alguma; • Não numerar as cópias; • Não excluir nenhuma reprodução que apresente qualquer falha durante sua confecção, e • Fazer quantas reproduções desejar e a qualquer momento.

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